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Descriminalização já é realidade em países das Américas e na Europa. Repressão violenta ao longo dos últimos 50 anos não obteve resultados convincentes, aponta um novo relatório da Universidade das Nações Unidas.
América Latina, Estados Unidos e Europa buscam alternativas à repressão violenta ao uso de drogas, como a descriminalização do consumo pessoal. Foto: ONU/Staton Winter
A Universidade das Nações Unidas (UNU) destacou mudanças recentes nas políticas de controle de drogas de diferentes países, que têm buscado alternativas à criminalização do uso de determinadas substâncias.
Em relatório publicado nesta semana, a instituição de pesquisa avaliou tendências que podem servir de parâmetro para o novo Plano de Ação da ONU sobre drogas, a ser discutido a partir de abril do próximo ano, em sessão especial da Assembleia Geral, e adotado oficialmente em 2019, após outras rodadas de diálogos.
A pesquisa consultou 50 Estados-membros das Nações Unidas, 16 organismos da Organização e mais 55 instituições da sociedade civil.
Números atestam ineficiência de políticas passadas e atuais
Desde 1988, quando foi estabelecida a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas, que criminalizou o comércio ilegal em escala global, países buscaram soluções na instituição de penas mais severas e na consolidação dos sistemas criminais. O cenário atual, porém, revela que a “guerra às drogas”, em especial, no Ocidente geopolítico, não obteve resultados convincentes.
Estimativas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) indicam que, atualmente, 5% da população global consome drogas ilícitas.
De acordo com a agência da ONU, 246 milhões de pessoas usaram ao menos uma substância ilegal em 2013. Desse contingente, 10% apresentaria algum distúrbio ou dependência associada a entorpecentes, segundo a avaliação do UNODC. A Organização Mundial da Saúde (OMS), porém, calcula que essa proporção seja maior, podendo chegar até 60%.
A América Latina permanece a principal fornecedora de cocaína e o Afeganistão, junto com Mianmar, a maior fonte de heroína, afirma a UNU. O comércio ilegal movimenta cerca de 320 bilhões de dólares por ano. A repressão dura ao mercado “negro” das drogas, que orientou as políticas de controle por mais de 50 anos, não conseguiu, de fato, acabar com o tráfico. Na América Latina, os efeitos parecem ter sido o contrário do esperado.
A tentativa de combater a venda ilícita de forma agressiva teria gerado mais violência e também corrupção, segundo o UNODC e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), uma vez que os cartéis, quando pressionados, ameaçam as instituições dos Estados e os processos políticos com subornos e compras de votos, além de controlar territórios onde violações dos direitos humanos das populações são recorrentes.
Ao mesmo tempo, o surgimento de novas substâncias psicoativas abre uma brecha para o uso abusivo de drogas consideradas legais. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que, todos os dias, 44 pessoas morrem por overdose de analgésicos obtidos com receituários e outras sete mil vão parar em emergências devido ao consumo em excesso de opioides também adquiridos com prescrições médicas.
Descriminalização no Ocidente
Alternativas que deixam de privilegiar a repressão mais dura têm surgido já há algum tempo na Europa e nas Américas.
Desde os anos 1970, a Holanda afrouxou as penas relativas à posse e à venda de maconha e outros alucinógenos. Nos anos 1990, a Suíça adotou uma política de drogas que combina prevenção, redução de danos, reforço da lei e tratamentos para a dependência que incluíam o uso de opioides durante reabilitação.
Em 2000, Portugal implementou a descriminalização do consumo de todas as drogas e criou um sistema focado em serviços de saúde para usuários.
Entre 2012 e 2013, a Bolívia lutou para regulamentar os usos tradicionais da folha de coca no país, chegando a se retirar da Convenção mais antiga das Nações Unidas sobre drogas, de 1961. O país retornou ao acordo em 2013. O Uruguai recentemente criou leis que permitem o consumo recreativo da maconha e que regulam o mercado da droga no país. E, nesta semana, a Suprema Corte do México emitiu uma decisão que abre a porta para o uso recreativo da maconha, ao autorizar que um grupo de quatro ativistas cultive a droga para consumo pessoal.
Os Estados Unidos também têm realizado, sob a administração Obama, experiências de liberação da maconha a nível estadual. O uso medicinal da canabis é liberado em 23 estados. A posse e o consumo recreativos já foram descriminalizados em 18 unidades federativas, em alguns dos quais foi autorizada a atividade de comerciantes e fornecedores.
A descriminalização envolve, geralmente, a remoção ou suspensão de algumas penalidades criminais para infrações legais associadas ao uso pessoal de drogas, mas não necessariamente de todas, enquanto a legalização acaba com todas as penas relativas ao consumo individual e pode permitir o cultivo pessoal o estabelecimento de mercados legais.
Políticas penais variam no mundo todo
De acordo com a UNU, reformas voltadas para a descriminalização e a conscientização são fruto de um crescente ceticismo quanto aos modelos tradicionais de controle, que confiavam na aplicação de penas severas.
Em muitos países, o reforço da lei teve consequências negativas, como a superlotação dos presídios em função do número elevado de detenções de usuários. Nos Estados Unidos, em 2014, 14% de todas as prisões foram associadas a drogas, sendo 83% destas detenções relativas à posse. Outra pesquisa aponta que, em 2013, 48% da população dos presídios federais havia sido detida por infrações relacionas a substâncias ilícitas.
Tanto o UNODC quanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Painel Internacional de Controle de Narcóticos (INCB) já emitiram diferentes pronunciamentos criticando a centralidade do encarceramento nas políticas de controle, o que coloca o tratamento dos usuários e os serviços de saúde em segundo plano.
Segundo a UNU, discussões sobre a descriminalização se espalham por países europeus, como Itália e Inglaterra, e por nações americanas e caribenhas, como o Chile, Trinidad e Tobago e os Estados Unidos, onde cortes especiais têm sido criadas para julgar infrações.
Apesar da perspectiva de reformas nessas regiões, muitos países ainda adotam penas duras e acreditam que a discussão da política de drogas a nível internacional pode ferir a soberania dos Estados para lidar com assuntos domésticos.
É o caso da China, onde estrangeiros foram executados recentemente por crimes associados a drogas. Na Indonésia e na Malásia, a lei marcial também tem sido aplicada a indivíduos de outros países. O Irã estima que 80% dos prisioneiros no seu “corredor da morte” foram condenados por infrações também relativas a substâncias proibidas. Formas de lidar com a questão das drogas consideradas “ortodoxas” pela UNU – embora nem sempre envolvam pena de morte – são comuns nesses países e também na Rússia, Índia e Japão.
Em muitas nações do Oriente Médio, a difusão do consumo não veio acompanhada do crescimento da violência registrado na América Latina, fato que é utilizado como justificativa para que as autoridades continuem seu trabalho de controle e restrição. Na Ásia, o surgimento de uma classe média com mais poder aquisitivo é um dos fatores que contribui para a expansão do uso de drogas e gera preocupação para os Estados.
No Brasil, superlotação dos presídios está vinculado à ‘guerra às drogas’
A população carcerária do Brasil aumentou 74% entre 2005 e 2012. Esse crescimento foi impulsionado principalmente pela prisão de jovens, de negros e de mulheres.
O perfil dos encarcerados deixa evidente que a seletividade penal recai sobre segmentos específicos (jovens e negros), uma vez que a faixa etária que mais foi presa é a de 18 a 24 anos; negros foram presos 1,5 vezes a mais do que brancos; e a proporção de negros na população prisional aumentou no período.
Além disso, embora o número de homens presos seja maior que o de mulheres, o crescimento da população carcerária feminina foi de 146%, e o da masculina, 70%.
Os dados são do “Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil”, publicação da Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), lançada em junho deste. Um dos dados da publicação demonstra que a categoria de presos que mais cresceu está relacionada a drogas e entorpecentes, representando 25% do total.
“Muitas vezes, a lei fala que os usuários não devem ser punidos, mas sim os traficantes; mas a legislação não delimita critérios objetivos sobre quantidade e tipo de drogas para a distinguir o traficante do usuário. As pessoas recebem a mesma pena por portar um grama ou uma tonelada de maconha, por exemplo”, lembrou o representante do PNUD à época.
O estudo mostrou também que, em um sistema prisional superlotado, 18,7% dos presos não precisariam estar encarcerados e poderiam estar cumprindo penas alternativas. A análise conjunta das taxas de encarceramento e das taxas de homicídio por estado brasileiro, segundo a ONU, indicou que prender mais não necessariamente reduz os crimes contra a vida, pois as políticas de policiamento enfocam os crimes patrimoniais e de drogas.
Acesse o estudo da Universidade das Nações Unidas (UNU) em http://bit.ly/1KZhBM6
Acesse o estudo “Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil” em http://bit.ly/1KZhxfq