Pílulas para dormir, para emagrecer, para reverter o desânimo, a hiperatividade, a depressão, a ansiedade e o estresse. Diferentemente das drogas ilícitas, esses medicamentos são socialmente aceitos e sua ingestão é, muitas vezes, prescrita pelos médicos.
O ideal de uma vida sem desconfortos e de plena alegria são os motivos difundidos pela propaganda da indústria farmacêutica para incentivar o uso desses remédios. Mas será que algum grau de sofrimento não deveria ser encarado como inerente à vida? Em artigos inéditos, a psicóloga Cristiane Costa Cruz e o psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg analisam o fenômeno.
As drogas e o conceito de saúde-felicidade no século XXI
Por Cristiane Costa Crux
Há um século, um hábito que remonta há 8 mil anos virou uma sina para a humanidade. O abuso de drogas psicotrópicas tornou-se um dos maiores problemas de saúde pública na atualidade. Nem sempre as drogas foram proibidas. No decorrer da história, as drogas passaram bem mais tempo liberadas do que proibidas.
Algumas substâncias, que hoje são ilegais, já foram utilizadas para tratar dor e problemas mentais. Tanto o ópio como a maconha foram remédios tradicionais, usados por muitos séculos. A cocaína, descoberta em 1860, era produzida em laboratório farmacêutico e usada como anestésico cirúrgico.
Os problemas com as drogas começaram quando aumentaram os casos de abuso e dependência. No final do século 19, grande parte dos pacientes para quem eram prescritas drogas eram pessoas de meia-idade, que acabavam se viciando no remédio.
Também havia os trabalhadores que procuravam nas drogas algum alívio para sua vida diária. Logo surgiram as primeiras regulamentações, e as proibições miravam os trabalhadores, pois, como as drogas minavam sua capacidade de produzir, passaram a ser consideradas um obstáculo à sociedade industrial.
No início do século 20, os Estados Unidos criaram um acordo internacional para combater a venda de drogas e passaram a criminalizar os usuários. Entretanto, a distinção entre as drogas ilegais e as que eram reguladas, como as anfetaminas, não eram claras, favorecendo a indústria farmacêutica na comercialização de seus novos produtos.
O critério de legalidade de uma droga é historicamente variável e não está diretamente relacionado com a gravidade dos seus efeitos. São consideradas lícitas as drogas que são aceitas pela sociedade, produzidas e comercializadas livremente. Os dois principais exemplos são cigarro e álcool.
As drogas ilícitas são as drogas cuja produção e comercialização é proibida por lei, como maconha, cocaína, crack e heroína. As drogas ilícitas causam dependência e danos à saúde, mas álcool e cigarro matam muito mais do que as drogas ilícitas.
O motivo que leva as pessoas a consumirem drogas é o mesmo que leva a comer e fazer sexo. Não há como negar que droga dá prazer. O cérebro foi configurado para sempre repetir e querer mais do que é bom. Essa configuração, denominada circuito de recompensa, é fundamental para a sobrevivência.
As drogas que causam dependência estimulam esse mecanismo cerebral, criando uma armadilha. A função do circuito de recompensa é alterada, desviando o foco do corpo para a repetição do uso. As demais fontes de prazer perdem a importância e a única fonte de prazer passa a ser o uso da droga.
O sentido de usar drogas pode variar, dependendo da cultura e do momento, mas a busca do prazer é sempre o principal motivador. Entretanto, sabe-se que a droga não dá o mesmo prazer para todos. Muitas pessoas experimentam, mas não gostam da sensação de ter a consciência alterada. Estes não usarão novamente, pois ninguém se torna dependente de algo que causa desprazer.
Além disso, algumas pessoas têm efeitos que consideram agradáveis com certas substâncias, mas não com outras. A química do usuário interage com a da droga e é o prazer obtido com essa interação que vai definir o risco de a pessoa usar mais. Isso evidencia o fato de que o acesso às drogas não leva automaticamente ao uso.
A droga é um elemento externo, que permite ao indivíduo sair temporariamente de seu estado de plena consciência e viver em um mundo ilusório.
Muitos remédios também são utilizados para reduzir angústias, aliviar dores e eliminar a tristeza, na tentativa de proporcionar mais conforto. A difusão do uso desses medicamentos construiu a crença de que é possível viver sem sofrimento. Criou-se uma confusão entre o real e o ideal, em que deve haver um estado físico e mental de saúde e felicidade completa, sem quaisquer sintomas desagradáveis. Essa crença, imposta pelos laboratórios farmacêuticos, foi assimilada pelos médicos e hoje é amplamente difundida.
Uma vez criado esse valor, começou uma jornada em busca da pílula milagrosa, apoiada na crença de que o ideal é viver sem nenhum desconforto. Essa busca também envolve a pseudoprevenção de doenças, através do consumo de vitaminas e suplementos alimentares e ainda a questão estética, para a qual são desenvolvidos diversos medicamentos e cosméticos.
É cada vez mais frequente o consumo exagerado de medicamentos e é comum os pacientes reagirem negativamente quando um médico não receita medicamentos. Nos grandes centros urbanos, onde doenças cardiovasculares matam mais que vírus e bactérias, o grande causador de muitas doenças crônicas é o estilo de vida sedentário e a alimentação hipercalórica.
Mas, como qualquer mudança exige esforço, acaba-se priorizando a solução do remédio. A crença no poder da medicação é tão forte que o simples ato de tomar um comprimido sem nenhuma droga ativa pode até produzir resultados: é o chamado “efeito placebo”, quando uma droga falsa cura uma doença verdadeira.
Devido a esse processo de medicalização, que tem o objetivo de criar um mercado consumidor para produtos farmacológicos, a indústria farmacêutica desenvolveu, no final do século 20, o conceito dos “remédios de estilo de vida”. A promessa incutida nesses medicamentos é tornar a vida mais agradável e confortável. Pode-se entender que a ideia vendida é aperfeiçoar a vida, tornando-a melhor do que o normal.
Dessa forma, o foco não está na cura, mas envolve o conceito de aprimoramento. O objetivo principal da medicação deixa de ser o tratamento de doenças e passa a ser o aperfeiçoamento do funcionamento do corpo. São medicamentos para estresse, impotência sexual, emagrecimento, calmantes, problemas estéticos como celulite e calvície, além das vitaminas e suplementos.
Entre os medicamentos mais vendidos atualmente estão os que reduzem a ansiedade. A ansiedade é necessária para a adaptação do indivíduo ao meio ambiente e funciona como um alerta, indicando que algo deve ser feito para mudar a vida. Dessa forma, a ansiedade saudável pode funcionar como uma espécie de antídoto contra outras doenças, por ser uma advertência, permitindo tomar medidas contra o perigo possível.
Entretanto, sabemos que a ansiedade traz uma sensação desagradável. Há milhares de anos, diversas drogas são utilizadas para aliviar a ansiedade, sendo a mais comum o álcool. Atualmente, há uma grande oferta de tranquilizantes e muitos só conseguem dormir com calmantes e assim poder enfrentar um outro dia.
Pesquisas mostram que o uso de drogas pode ser consequência de um desequilíbrio psíquico ou desespero emocional. A prevalência de transtornos psíquicos antes do contato com drogas indica que as drogas podem trazer alívio a quem as consome. Assim, as drogas não seriam a causa do desequilíbrio, mas apenas uma consequência desse desespero emocional. Pessoas que se sentem socialmente excluídas apresentam maior tendência a se tornarem usuárias compulsivas de drogas, lícitas ou ilícitas.
A pressão social também pode favorecer o consumo de drogas, uma vez que somos constantemente influenciados pelas mensagens que são transmitidas à sociedade. Aprendemos que a felicidade está ligada ao que se consome e que a tristeza deve ser sempre evitada. Ou seja, a felicidade pode ser comprada e a tristeza deve ser eliminada.
E, como hoje existem medicamentos capazes de eliminar a tristeza, torna-se uma relação de consumo.
Tradição ou maldição? Diversão ou desvio de comportamento? Presente dos deuses ou maldição do diabo? Não há uma resposta fácil e não há um consenso. Talvez o uso de drogas faça parte da natureza do ser humano, como uma espécie de fuga da existência rotineira.
Muitas pessoas têm necessidade de fazer coisas diferentes do habitual: alguns praticam esportes radicais, outros buscam aventuras sexuais, alguns se envolvem em cultos religiosos e outros usam drogas. A grande questão é encontrar o limite. Já diziam nossos avós que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.
“Devido a esse processo de medicalização, que tem o objetivo de criar um mercado consumidor para produtos farmacológicos, a indústria farmacêutica desenvolveu, no final do século 20, o conceito dos ‘remédios de estilo de vida’. A promessa incutida nesses medicamentos é tornar a vida mais agradável e confortável”
Cristiane da Costa Cruz é psicóloga, atua na linha cognitivo-comportamental e é especialista em transtornos mentais.
Sociedade Anestesiada
Por Jacob Pinheiro Goldberg
Remediando a vida. Expressão quase folclórica que exprime uma concepção catastrófica do mundo. A utopia de um mundo sem dor, sem sofrimento, acompanha a civilização desde a consciência do que a dor e o sofrimento sempre provocaram no ser humano e de que culminam na doença e na morte. A tanatofobia com os horrores da fantasia da finitude, a solidão, a perda dos entes queridos, a ameaça insuportável da loucura povoaram a mente do indivíduo a partir do instinto de sobrevivência da espécie.
De alguma maneira se pode fazer a narrativa dos esforços da arte, da cultura, da ciência, como a luta contra o estresse, o desconforto da existência, o mal-estar da castração. Em contrapartida, a vontade de exuberância, da alegria, do estado de bem-estar no gozo do êxtase e da felicidade implicam um trabalho constante que, através da medicina, das ciências da saúde, da indústria farmacêutica, da psicologia, acabou por estabelecer um consenso de superação da dor, por recursos os mais variados.
Cicatrizar as frustrações inevitáveis que marcam os limites de nosso corpo e de nossa mente, anestesiar as reações aos estímulos que a natureza impõe, feiura, deficiência intelectual e corporal, acidentes malignos, genética deficitária – enfim o rol das dificuldades do concreto, do real, do objetivo se transformou numa corrida de obstáculos que permeabiliza nosso cotidiano.
Comprimidos para enganar a tristeza, sob o diagnóstico da depressão, para frear a vitalidade, sob o diagnóstico que substitui a exuberância pela hiperatividade. Se espraiando por todos os ângulos, medidas, enquadramentos possíveis e imagináveis. A obesidade, doença física ou psíquica a ser tratada e corrigida, e até problema ético de caráter (personalidade desidiosa ou fraca); a magreza, idem. A timidez ou contenção, como sintoma introspectivo suspeito, a extroversão como proximidade da transgressão, merecendo a atenção médica e, eventualmente, policial.
Sem respeito à faixa etária ou condição social. Na infância, a desatenção na escola, distúrbio ou transtorno, a adolescência com sua agitação e insegurança, ela mesma vista como “aborrecência”, um certo desajuste na probabilística certeira de moléstia contagiosa (o barulho, a efervescência, o “esquenta”).
A insônia estimulada por dificuldades autênticas, exigindo soníferos que, por sinal, segundo a revista científica BMJ Open [revista online de acesso público ligado ao British Medical Journal], triplicam o risco de morte e de o “paciente” desenvolver câncer. Aliás, já escrevi em O Direito no Divã (Saraiva, 2011) que a nomenclatura correta deveria ser “impaciente” e o profissional apurar a sua “paciência” na inversão humanística do relacionamento.
Aldous Huxley, em As Portas da Percepção [livro de 1954, edição em português da Globo lançada em 2002], faz a apologia às drogas, lícitas ou ilícitas (segundo conflitos de entendimento legal); ele, que estava praticamente cego e buscava compensações e sublimação no fantasmático e no simbólico, acabou legitimando essa vida artificial para escamotear as quimeras que a poesia de Rimbaud, ele mesmo uma vítima do alcoolismo, genialmente definiu em metáfora belíssima: “Mas, não, chorei demais! Magoam-me as auroras. Todo sol é dolente e amargo todo luar”.
As questões essenciais de nossa vida ligadas ao sofrimento e à dor não podem e não devem ser reduzidas ao tremendo jogo de fortunas incalculáveis da indústria da ilusão medicamentosa. Indústria que inventa doenças e inventa curas para aquilo que segundo Goethe é “humano, demasiadamente humano”. Sofrer e lidar, chorar e rir, a emoção respeitada e não fiscalizada pelo “Big Brother” do superego pronto para qualificar o normal e o anormal segundo fundamentalismos pseudocientíficos.
O que, obviamente, não significa deixar de minorar a dor no horizonte da dignidade. A alienação como instrumento de subjetividade permite que o Eu se encontre com a Dor, na esperança que nos transcende.
“As questões essenciais de nossa vida ligadas ao sofrimento e à dor não podem e não devem ser reduzidas ao tremendo jogo de fortunas incalculáveis da indústria da ilusão medicamentosa. Indústria que inventa doenças e inventa curas para aquilo que segundo Goethe é ‘humano, demasiadamente humano’”
Jacob Pinheiro Goldberg é doutor em psicologia, psicanalista e escritor. É autor de Cultura da Agressividade (Landy, 2004), Mocinhos e Bandidos – Controle do Conteúdo Televisivo e Outros Temas (Lazuli/Sesc, 2005), Psicologia em Curta-Metragem (Novo Conceito, 2008), entre outros.
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