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  1. Mais perigosa que a vida A relação dos artistas com as drogas, mais especifica- mente dos escritores, reescreve o dilema moral que cerca o assunto fora do âmbito da arte. De um lado há a afirma- ção da possibilidades de expansão de estados de consciên- cia, gerando uma representação artística única e seminal; de outro os limites dramáticos da expressão desta mesma consciência, retalhada em doenças, crimes, violência, mar- ginalidade e esterilidade criativa. O que, então, estes artis- tas têm a ensinar, tanto pelo seu exemplo de sucesso co- mo nas derrotas mais decorrentes? Talvez a mais direta li- ção esteja na busca incessante. Levar a vida e a procura de prazeres ao limite não é um mérito de artistas, mas uma consagração da humanidade. O que diferencia um e outro é a narrativa correspondente. Para uns a vida é a própria história, para os demais a vida só existe para ser história. A mais recente e instigante reflexão sobre as drogas, “O Prazer e o Mal: Uma filosofia da droga”, da italiana Giulia Sissa, recoloca a questão, sem qualquer viés moralista ou celebratório, da relação entre o prazer e a droga. Recor- rendo a exemplos de autores como Baudelaire e Thomas De Quincey, a fenomenologia da experiência dos drogados se dá em torno da busca do prazer. Mais tecnicamente, a autora encerra o debate a partir da noção psicanalítica de desejo. E o desejo não tem fim. Literalmente. A insaciabilidade Se existisse do prazer, que se manifesta na vida eró- uma droga tica, acaba servindo de modelo para que não uma busca tóxica da realização. Saco causasse sem fundo desejante, o drogado acaba mal, mesmo por perfazer o cruel caminho qualitati- assim ela vo que retira do prazer da droga todo seria dado positivo de satisfação para gerar um mal ? a completude pelo avesso: droga-se para evitar a evidenciação do vazio. Os sinais se alteram. O prazer é apenas o adiamento do desprazer. A pensadora italiana vai a raiz filosófica platônica para entender e confi- gurar esta operação. O desejo é o pai de todos os des- caminhos e a outra face do castigo da impossibilidade de supri-lo. Uma “ álgebra da necessidade ”, nas palavras lú- cidas do junky Willian Burroughs. Mas ficam perguntas difíceis de responder. Se existisse uma droga que não causasse mal, físico ou psicológio, que garan- tisse a ampliação do prazer e da consciência, mesmo assim ela seria um mal ? Quem se eximiria da experiência de alterar seu estado de consciência, com direito a visões e outra perspectiva intelectual e sensorial se não houvesse risco ou proibição? O prazer artificial ( e os paraísos arti- ficiais ) são em si um mal? São questões desta ordem que impulsionaram muitos escritores a buscar nas drogas por- tas para novas percepções. Para alguns deles, o resultado foi surpreendente positivo e praticamente inofensivo. Foi o caso de Quin- cey (1785-1859) que viu no láudano ( uma espécie de vinho de ópio) a panacéia para todos os problemas da humani- dade, a felicidade ao custo de uma moeda. Suas “memó- rias de um comedor de ópio” trazem um relato de uma experiência vivida em todos os níveis, inclusive inconscien- tes, representados posteriormente em outras obras literárias do autor. De Quincey se torna viciado por um acaso, não por projeto ( chega a classificar de “ farmacêutico sublunar ” o colega que o aconselha o láudano para dirimir uma nevral- gia facial ). Por isso, sem qualquer tom proselitista, fala de uma igreja da qual é o fundador o único membro. Alfa e ômega da religião do ópio, que professou por quase 50 anos. William Burroughs foi outro drogado escritor que não se gabou de ser junky( nome de seu primeiro romance que popularizou a expressão no mundo inteiro). “ Alguém se torna drogado por não ter fortes motivações em qualquer outra direção” , escreveu. Ou seja, as drogas não valiam em si para Burrroughs, mas pela opçõa existêncial que aponta- vam, no caso, a ausência de opção ou assentimento à cul- tura norte-americana dos anos 40 em diante. Burroughs é um escritor poderoso. Seus dois livros mais conhecidos, “Junky ” e “Almoço Nu”, são siderados pela droga em todos os aspectos. No primeiro com uma naturalidade quase científica e neutra, narra o desenvolvimento de sua teoria da droga, sua matemática da necessidade pura. Em “Al- moço Nu” a linearidade se esfacela em um painel multifor- me de cenas grotescas, violentas, conduzidas por uma ló- gica inconsciente. Burroughs ficou associado historicamente aos beats, geração que vem depois da dele ( mas que ele ultrapas- sou cronologicamente, não se sabe como, afogado em química em todas as suas células sedentas), formada por Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Neal Cassady e Lawrence Ferlinghetti, entre outros, também viveu e escreveu sob o impacto da inspiração das drogas. Quanto à inspiração, é preciso que se diga que ela se alimentou sempre re- troativamente das experiências alucinógenas. Escrever bêbado ou drogado gera um texto a ser destruido de- pois. Os autores beats sabiam disso. Mesmo as mais ou- sadas tentativas de escrita automática eram feitas de ca- ra limpa. Mas foram muitos trechos de romances, poe- mas e manifestos escritos com o intuito político de defen- der a droga. Estes autores acabaram marcando a prosa e a poesia contemporânea pela absoluta sinceridade de seus relatos. Entre suas contribuições estão a capacidade de criação de alternativa intelectual, mesmo que destrutiva ou nii- lista; e de uma realização artística inovadora. A narratriva realista nunca mais seria a mesma nos Estados Unidos. Segundo a história ( boa demais para ser verdade e não um relato de Burroughs), o poeta Ginsberg insistiu para Bur- roughs escrever uma história comercial, que lhe garantis- se algum dinheiro. O criador de “Junky” aceita o desafio e começa um romance em que um ventríloquo ensina seu ânus a falar. E ele acaba falando com tanta independência que abandona seu proprietário e fala por conta própria. Depois da recusa desta história, Burroughs veio para a sel- va amazônica a procura do yage, do qual esperava a ilu- minação definitiva. Thimoty Leary foi um Sócrates do século XX, pelo me- nos na sua missão de corromper a juventude. O que era acusação na Grécia foi um projeto caro ao papa da contra- cultura. Leary foi o mais fiel e capacitado defensor do uso do LSD e das drogas psicodélicas. Jogou seu prestígio acadêmico nesta defesa e perdeu. Foi expulso de Har- vard, preso várias vezes e não mudou de idéia. Realizou estudos, fundou comunidades, fez política a vida toda. Até na morte – de câncer – não cessou de provocar, auto- rizando que fossem filmados seus últimos momentos. Sua cabeça foi cerrada em frente a milhões de pessoas e conge- lada para possível uso no futuro. Leary marca uma mudança no padrão dos beats, com quem conviveu. Di- ferente deles, que faziam da experiência individual a rea- lização máxima, ele quis democratizar o barato. Sua perspectiva era salvacionista, escatológica, generosa. Suas memórias “ Flashbacks – Surfando no Caos” Termi- nam com uma postulação ultraliberal em relação ao uso de substâncias psicoativas ( que ele considerava um ali- mento para o cérebro, assim como a água ou a comida), dizendo que era uma necessidade patriótica combater as visões policial, médica e ideológica dos que queriam im- pedir os adultos de colocar para dentro de seus corpos o que achavam conveniente. No Brasil, foi Paulo Mendes Campos quem melhor des- creveu o efeito de drogas alucinógenas na percepção indi- vidual. Influênciado por Adouls Huxley, que havia publica- do o célebre “As Portas da Percepção”, o poeta mineiro to- mou ácido licérgico sob supervisão médica de um amigo e escreveu um límpido relato sobre o evento, descrevendo suas alterações de tempo, sua capacidade de observar co- res e a tonalidade das vozes das pessoas. “Experiências com LSD” , de 1962, foi republicado em vários livros do au- tor e tem algumas conclusões psicológicas que são poesia pura. Por exemplo: “Não existem ruídos lancinantes. Nós é que somos lancinantes”. Não há conclusão possível sobre o assunto. Além disso, É possível examiná-lo distante do contexto no qual a cri- minalidade se acerca da droga e a torna violenta, indepen- dente de sua ação. Há , além disso, a destruição de vidas pelas mais diferentes drogas, que nem sempre se dão ao consumidor de forma amena e criativa ( neste sentido, o re- lato dos escritores pode ser considerado uma perigosa ex- ceção). A busca de experiências psicodélicas gera, no en- tanto, algumas poucas conclusões provisórias: a insaciabi- lidade do desejo não torna o desejo equivocado; as repre- sentações estéticas e intelectuais do uso e sentido das dro- gas ajudam a compreender o fenômeno mais que as pos- turas ideológicas a priori ( que medicalizam e policializam o problema, gerando soluções tão equivocadas do ponto de vista epidemiológico como repressivo); viver é muito peri- goso. E, em meio a tanto barato, talvez o título de um livro do terapeuta francês Claude Olivenstein seja a melhor sín- tese: “Os drogados não são felizes”. Embora o próprio Oli- venstein afirmasse que não se enfrenta o vício sem a pres- suposição de que as pessoas buscam com a droga e, algu- mas vezes ( muito poucas) conseguem, prazer. Como Ca- mus disse de Sísifo, é preciso imaginar o drogado feliz. Só assim se compreende o desejo, seus triunfos e seus fracassos. * João Paulo é jornalista do jornal Estado de Minas, onde este artigo foi originalmente publicado.
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