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Campanhas antidrogas valem a pena?


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  • Usuário Growroom

Gilberta Acselrad*

Tem havido bastante debate em jornais e canais de televisão sobre o tema das drogas. As mídias universitária e comunitária também discutem o assunto. Com alguma sistematicidade, a opinião de especialistas se soma à opinião popular.

A discussão parece inesgotável, quanto mais aprofundamos, novas questões surgem, e é muito comum, no calor do debate, perder o pé. Quando isso acontece, em meio a informações mais ou menos claras, em meio a falsas verdades e muitos pré-conceitos, prevalece o preconceito, contribuindo para agravar ainda mais as relações entre as pessoas.

O tema da produção, comércio e uso de drogas é de alta complexidade e, hoje, assume uma gravidade cada vez maior. Face à urgência em encaminhar o que se tornou um problema cada vez mais dramático, muita gente acredita que uma frase-chave dará conta do problema, frase-varinha de condão que tudo resolverá de uma vez por todas. As campanhas antidrogas sempre escolhem uma frase de efeito. O ponto de partida é viciado, e o percurso então se complica.

Devemos questionar esta escolha, especificamente pensando a mais recente campanha antidrogas que escolheu a frase "O que você faz com o seu dinheiro é problema seu. O que o tráfico faz com o seu dinheiro também é problema seu", ou ainda "O usuário é responsável pela violência do tráfico", campanha elaborada pela APC, apoiada por autoridades governamentais e especialistas na área. Esta campanha se sucede a outras semelhantes do tipo "Droga é brega" , "Droga é triste", "Droga é uma merda".

Com uma frase de efeito, simplifica-se a questão, localizando alguém como o responsável por todos os males que afligem a sociedade. Esta sempre foi uma saída, ainda que não uma solução – já foi o louco, mais tarde o subversivo, hoje é o usuário de drogas, mais ainda se for jovem, não-branco, morador de periferia. Uma vez afirmada essa ‘verdade’, ficamos nós, os cidadãos respeitáveis, na margem correta da vida. Do lado de lá, na marginalidade, aqueles que passam a ser depositários de todo o mal.

Ficamos a salvo, não somos responsáveis pelo problema, o único responsável é o usuário e o, tantas vezes, "suposto traficante morto em conflito com os representantes da lei". Entorpecida nossa razão, perdemos de vista a reflexão de que problemas não surgem do nada, são criações históricas, políticas e sociais de homens e mulheres que produzem conhecimento e formas de relação ora democráticas, ora autoritárias.

Entender o fenômeno da produção, do comércio e do uso de drogas tornou-se um mistério não por acaso, afinal obscurecer o tema, torná-lo coisa de especialista, tornar o discurso hermético, ameaçador, é uma constante. Não é qualquer um que fala sobre qualquer coisa e em qualquer lugar: tabu do objeto, ritual da circunstância, autoridade exclusiva de quem tem delegação para falar. Não se aceita que o cidadão comum possa refletir e agir conscientemente. A ele só caberá repetir "Drogas, tô fora" – mantida a vigilância e o controle constantes. Há muitos anos esse tem sido o discurso dominante e o fracasso parece evidente.

Ajuda na manutenção do mistério pensar o uso de drogas como se fosse uma doença infecto-contagiosa, uma catapora, um sarampo. Se encostar no usuário, pega. Ora, em se tratando de uso de drogas não se pode pensar que a opção de uso possa ser transmitida de um sujeito a outro – doença que só uma vacina pode resolver.

Identificar uma situação à outra é abrir caminho para que os pré-conceitos formem o quadro conhecido: sujeito jovem (por que só o jovem, se os adultos e idosos também usam substâncias psicoativas?), potencialmente em perigo (porque tenta pensar e fazer suas primeiras opções com autonomia, e isso ameaça), faz uso de drogas (principalmente as consideradas ilícitas; as que são vendidas legalmente sempre se beneficiam de alguma proteção), vivendo em meio propício à produção e comércio (morador de favela, periferia identificado ao tráfico) e ao uso (jovens de classe média, em ambientes alternativos quaisquer).

Este parece ser o caldo de cultura que justifica as verdadeiras campanhas de vacinação antidrogas baseadas na pedagogia do medo, do terror. De fato, não têm conseguido ter o êxito da abstinência pretendida: a cada dia o uso de drogas se generaliza e se banaliza, perdendo-se os referenciais substantivos que poderiam garantir, para a experiência, formas democráticas de convivência.

A pedagogia do medo, do terror, infunde culpa individual e solitária pelo uso de drogas e pode ter um resultado imediato de diminuição do consumo, ainda que as pesquisas de opinião do tipo Ibope sejam discutíveis e o resultado das campanhas não seja duradouro e/ou suficiente. Segundo o Ibope, 19% dos entrevistados conhecem alguém que deixou de usar drogas por não querer se sentir associado à violência. Mas, a qualquer momento, qualquer ser pensante, fazendo uma reflexão mais profunda, perceberá que, além da responsabilidade individual, outros fatores contribuem para a cena da violência, de forma estrutural. Vítima do desemprego, das condições precárias de emprego, órfão de políticas de habitação, educação e saúde que lhe garantam um bem-estar no mundo, poderá descobrir que não é justo ser responsabilizado com exclusividade.

A legalidade ou a proibição de uso das substâncias psicoativas tem se alternado, ao longo da história, sem que maiores reflexões acompanhassem as mudanças, não tendo sido pensados controles sociais do uso. A cocaína, que já foi tônico fortificante, vendida pelo reembolso postal nos EUA no início do século passado, e a heroína, usada durante as grandes guerras mundiais (seu nome derivado de seu uso pelos heróis de guerra), hoje são consideradas ilícitas. As bebidas alcoólicas que já deram motivo a muitas mortes e máfias, hoje gozam da benção das indústrias produtoras. A passagem de um status a outro não foi objeto de reflexão. Excepcionalmente, mas como prova de que é possível viver melhor com as drogas, o cigarro de nicotina, que já foi motivo de prisão, hoje tem uso controlado e a população conseguiu aceitar os controles sem que nenhuma "guerra às drogas" fosse implantada.

Tentar responsabilizar essencialmente o usuário pela violência do comércio ilícito de drogas é responsabilizar o elo mais frágil de uma sociedade extremamente violenta no seu ritual de consumo como forma de existência, nas suas relações competitivas, na exclusão dos que sobram e incomodam a festa financeira. Sem dúvida, o usuário é sujeito de sua história e as campanhas poderiam incentivá-lo a pensar – "quem faz o meu caminho sou eu, não a droga", frase elaborada por Ziraldo em campanha educativa em 2002. Reflexão que contribui para fortalecer a decisão do sujeito e que pode valer tanto para quem usa maconha como para quem só dorme com tranqüilizante, ou depende de remédio para emagrecer ou de anabolizantes para ter o corpo sarado da moda.

Não somos tão livres como se quer fazer pensar. Em que medida nosso uso de drogas é hoje genuíno, a partir de quando passa a ser produção dos meios de comunicação, necessidade provocada pelo mercado? Muita gente usa drogas para agüentar o pique do trabalho, a exigência de alta produtividade. Outras, para dormir melhor e estar dispostas a enfrentar a vida difícil e tão rarefeita de prazeres, no dia seguinte. Outras, porque as drogas se tornaram objeto de consumo.

Dizer que o que você faz com o seu dinheiro é problema seu é estimular o individualismo, a fragmentação dos laços entre os humanos, porque tudo que fazemos afeta o outro e o espaço em que vivemos. Dizer que o que "o tráfico faz com o seu dinheiro também é problema seu" é uma meia verdade. Sem dúvida, o usuário precisa levar em conta o contexto em que vive e, se a sua opção for por uma droga ilícita, o caminho quem sabe deva ser o de se integrar num movimento antiproibicionista, lutar por uma legalização com controles, dizendo não à violência e recusando-se a se tornar exatamente o cidadão compulsivo da sociedade de mercado: aquele que consome qualquer coisa, de forma acrítica, mesmo que seja em seu prejuízo. Mas é também uma meia mentira porque reduz o tráfico ao comércio das drogas consideradas ilícitas. Afinal, existem muitos outros tráficos.

A campanha atual não me parece propriamente de "mau gosto". Tem como objetivo incentivar o preconceito. Aos que insistem em falar em "dependência química", como se a questão pudesse ser reduzida a uma substância em si inerte, gostaria de reafirmar a existência de sujeitos que precisam, com urgência, entender que este vasto mundo onde vivemos nos propõe enigmas: ou optamos pela reflexão que nos levará a agir de forma protetora de nós mesmos e de nossa coletividade ou a esfinge nos devora.

* Coordenadora do curso de extensão universitária "Drogas e aids: questões de direitos humanos", Programa Cidadania e Direitos Humanos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

http://www.ibase.org.br/pubibase/cgi/cgilu...oid=358&sid=127

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