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O preço da liberdade (hélio Schwartsman)


doutor_freud

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  • Usuário Growroom

09/12/2004

O preço da liberdade

Hélio Schwartsman

Da vasta correspondência que recebi por conta de minha coluna anterior (já publicada aqui na Grow), surgiu um apoio intrigante. Alguns leitores me escreveram para dizer que concordavam com a minha tese de que cabe ao indivíduo escolher seus próprios caminhos, exercendo a autonomia. Iam ainda mais longe e afirmavam que cada qual é livre para drogar-se, se for essa a sua opção, mas que os dependentes não deveriam ter direito de onerar o Estado com despesas médicas geradas pelo vício. Certos missivistas avançaram ainda mais e sugeriram que o poder público não deveria atender a alcoólatras, fumantes nem mesmo a pacientes de Aids.

Reconheço que há lógica por trás dessa argumentação, mas não posso concordar com ela. Acredito que, se uma dada sociedade renuncia a todos os princípios de solidariedade, como parece fazer aquela que nega tratamento médico para quem precisa, ela perde sua razão de ser. Não vivemos em grupo apenas porque calhou de sermos vizinhos. O gregarismo é elemento constitutivo da própria humanidade. Foi por viver lado a lado com outros de sua espécie, ajudando-os e sendo por eles ajudado, que nossos ancestrais puderam dispor de uma dieta rica em proteínas animais que foi fundamental para que seu cérebro se desenvolvesse da forma que o fez, tornando-os mais espertos que outros grupos de primatas.

Não estou, com isso, afirmando que o homem seja naturalmente bom, como o fez Rousseau, nem que a solidariedade seja a mais humana das virtudes. Muito pelo contrário, nossa espécie é violenta, agressiva e freqüentemente bastante estúpida. Mesmo assim, soube fazer alianças com base no altruísmo recíproco que a beneficiaram, levando-a assenhorar-se do planeta. Agora que vivemos num ambiente bem menos hostil do que o de nossos antepassados, temos ainda menos razões para abandonar o princípio da aliança de ajuda mútua.

Voltando ao caso concreto, acho que o poder público deve prestar auxílio médico e previdenciário a quem dele necessite, independentemente das escolhas individuais que possam ter levado a pessoa ao estado de precisão.

É verdade que a esmagadora maioria dos dependentes químicos fez em algum momento uma opção consciente não pelo vício, é claro, mas por correr o risco de tornar-se dependente. Não era um cálculo absurdo. A maior parte dos que tomam um copo de uísque, fumam um baseado ou cheiram uma carreira de cocaína não se viciam. Já a minoria que o faz padece de uma doença. A partir de um certo momento, instala-se a dependência. Aí as escolhas feitas pelo indivíduo já são "menos livres". Os centros de recompensa do cérebro se voltam inteiramente para a droga. Sem ela, nenhuma atividade proporciona prazer. O mundo se torna sombrio e sem graça. Para que volte a ser um lugar tolerável, é preciso conseguir uma dose da substância, pela qual o dependente fará quase tudo, inclusive roubar, prostituir-se e outros pecados burgueses. Romper esse ciclo não é de modo algum impossível, mas costuma ser difícil. É uma tarefa trabalhosa, que pode exigir acompanhamento médico.

Não creio que devamos abandonar o dependente à própria sorte apenas porque, no passado, ele aceitou correr esse risco. Se levássemos esse argumento às últimas conseqüências, o Estado também não deveria prestar atendimento ao portador de câncer fumante ou ao cardiopata que abusava do churrasco. A sugestão de deixar de distribuir gratuitamente remédios para pacientes de Aids é ainda mais grotesca. Quem ainda acredita que essa moléstia é um castigo imposto por Deus aos de comportamento dissoluto e moral pecaminosa deveria lembrar que a via sexual não é a única forma de transmissão da doença. Esse, aliás, era um preconceito que eu em minha ingenuidade já imaginava extinto.

A rigor, não faz sentido pensar num atendimento médico que não seja universal. Até as mais insuspeitas das doenças apresentam características genealógicas que podem ser ligadas a fatores ambientais relacionados a estilos de vida. Acredita-se, por exemplo, que a nuliparidade (jamais ter tido filhos) seja um fator que contribua para o surgimento do câncer de mama. Pelo raciocínio de meus missivistas, deveríamos deixar de tratar da mulher sem filhos e com câncer porque ela teria desenvolvido a moléstia ao escolher não tornar-se "uma boa mãe", nos padrões que a "natureza" nos impõe. Se as estéreis reclamarem da "injustiça", diremos que elas certamente não podem ter filhos como punição pelos erros cometidos em vidas passadas.

Quem trabalhou bem a questão do peso de nossas escolhas foi o pensador francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). O ponto de partida do filósofo, como bom materialista que foi, é o de que a existência humana precede a essência. Se uma casa foi uma idéia --uma essência-- na mente do arquiteto antes de ser construída, o mesmo não se dá com o homem. (Para Sartre, Deus não era uma opção). Nós apenas existimos, sem determinações. Vamos fabricando nossa essência por meio de nossas ações e decisões.

A existência sartriana é um processo, uma projeção das inúmeras possibilidades que temos diante de nós e que realizamos ou rejeitamos mediante escolhas. E ela nos torna indesculpavelmente responsáveis pelo que fazemos ou deixamos de fazer.

Só o que resta, para Sartre, é a liberdade, ainda que "situada", ou seja, sob condições externas não controladas pelo indivíduo. O usuário de drogas pode escolher consumi-las e acabar dependente, tendo assim diminuída sua capacidade de tomar decisões que não sejam mediadas pela química. Ainda assim sua condição presente será resultado de suas opções passadas. E até o dia de sua morte ele conservará o poder de tornar-se o que escolher ser dentro das circunstâncias que lhe são dadas externamente.

Essa liberdade é muito mais uma tortura do que uma dádiva. Daí que Sartre dizia que estávamos "condenados à liberdade". Não escolhemos existir e muito menos no miserável, angustiante e nauseabundo mundo existencialista. Mas, uma vez lançados na vida ao nascer, somos responsáveis por tudo o que fazemos.

É uma filosofia radical, admito. No limite, justifica-se o ato terrorista. O seqüestrador que explode uma escola cheia de crianças nos confins da Rússia não age contra inocentes porque não existem inocentes. A responsabilidade é tanta que todos seríamos culpados desde o nascimento.

OK. Podemos rejeitar Sartre lembrando que ele era ateu e ainda por cima comunista. Mesmo assim, é difícil rechaçar certos elementos de seu pensamento. A negação da responsabilidade implica um mundo regido pelo acaso ou pelo destino. Se não sou eu o responsável pelo que me acontece, ou ninguém o é ou tudo é parte de um plano divino.

Na primeira hipótese, matamos o Deus onisciente. Ora, foi justamente daí (da existência anterior à essência) que Sartre partiu para deduzir seu existencialismo radical. Na segunda hipótese, resgatamos o Deus onisciente, mas daí sacrificamos a noção de livre-arbítrio que é nuclear para o cristianismo (tudo já está escrito no livro do destino). "O homem tem livre-arbítrio. De outro modo, conselhos, exortações, ordens, proibições, recompensa e punição seriam vãos." O autor da frase é insuspeito: santo Tomás de Aquino ("Summa Theologica", Questão 83).

Se eu fosse cínico, diria que precisamos legalizar as drogas para que o plano de Deus faça sentido. Como não o sou, afirmo apenas que, seja para o diabólico Sartre, seja para o Divino Doutor, somos --gostemos ou não-- os responsáveis por nossas ações. E o fato de os infortúnios que acometem uma pessoa muitas vezes decorrerem de escolhas feitas por ela não deve impedir-nos de ajudá-la quando ela precisa de auxílio e quer recebê-lo. Essa solidariedade não se justifica porque desejamos ser salvos e ir para o céu, mas tão-somente porque escolhemos, sartrianamente, ajudar.

Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Escreve para a Folha Online às quintas

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata...lt510u174.shtml

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  • Usuário Growroom

Muito bom o texto, acredito que nos, seres humanos temos livre arbitrio, mas como nao sou ateu, sou agnostico (para quem nao sabe, eh quem acredita em uma força maior, mas nao tem religiao), acredito tambem que nossos atos tem consequencias que definem nossos rumos, faça uma escolha e tomara um certo caminho, outra, e tomara outro, e dentro de qualquer um desses caminhos, ha outros, com outras escolhas a serem feitas, ou seja, uma vida inteira pela frente, nunca igual a de seu semelhante, parecida talvez, mas nunca identica.

Há males que vem para o bem, acredito muito nisso, muitas vezes, me arrisco ateh a dizer que na maioria das vezes, quando passamos por algum infortunio ou algum problema, por qualquer q seja, ele foi colocado em vc para vc evoluir como pessoa, supera-lo e seguir em frente, com uma vida melhor, acredito que estamos nesse planeta para evoluir, somos mto primitivos, ateh os mais geniais tem defeitos, nada eh por acaso, mas nao existe destino, o destino somos nos que o fazemos, o q penso que exista eh um plano de vida a ser seguido ,nao definido, com escolhas e mais escolhas a serem feitas, e cada uma seguira um caminho diferente, boa sorte pra nós.

=)

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  • Usuário Growroom
Reconheço que há lógica por trás dessa argumentação, mas não posso concordar com ela. Acredito que, se uma dada sociedade renuncia a todos os princípios de solidariedade, como parece fazer aquela que nega tratamento médico para quem precisa, ela perde sua razão de ser

o nome disso é hipocrisia

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