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Contra o conservadorismo - Pedro Dória


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Contra o conservadorismo

Pedro Dória

08.01.2005 | Com a guinada conservadora dos EUA, é preciso um contrabalanço de influência cultural, não apenas no Brasil mas em todo o mundo. Obviamente não é saudável um planeta dominado por uma única potência, mas jamais isso esteve tão claro quanto agora. Do ponto de vista econômico, a China parece candidatar-se. Mas é uma ditadura e ditaduras não têm nada a dizer quando o assunto é liberdade. Nos sobra a Europa.

Porque, se no debate econômico a turma liberal parece estar levando franca vantagem, no debate cultural a discussão está em aberto ainda. E é justamente neste tipo de assunto que é preciso, sim, fazer valer o credo liberal de mais e mais liberdade para o indivíduo. É onde questões como casamento homossexual, a legalização de drogas e aborto e permissão de pesquisa científica com células-tronco surgem. No fundo, é um debate entre religiosos e seculares.

A Europa equilibra-se desigualmente do ponto de vista econômico mas, culturalmente, caminha junto no sentido oposto ao dos EUA. O casamento entre homossexuais, por exemplo, é legal na Holanda e na Bélgica e, agora em 2005, será legalizado na Espanha e Suécia. Na França, 64% da população é favorável à medida e o Partido Socialista, principal da oposição, diz que vai implantá-la tão logo torne ao poder. De qualquer forma, uniões civis entre parceiros do mesmo sexo, ou casamento sem o nome, já são legais na própria França, como o são na Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Islândia, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça.

Quando o assunto é drogas, vê-se a mesma sintonia. Em dezembro agora, o Parlamento Europeu reconheceu oficialmente que a guerra às drogas é um fracasso. O Relatório Catania, como é chamado o documento, não apenas recomenda penas alternativas à prisão como sugere que a Europa estude projetos-piloto de industrialização de maconha e cocaína. A posse para consumo recreativo de maconha é legal em países como Alemanha, Luxembugo, Holanda e Portugal, além de ser tolerada na Bélgica, Reino Unido e Suíça.

O aborto é virtualmente legal em todos os países da UE e, quando há restrições, referem-se ao período da gravidez em que ele é permitido ou, em casos como o da Espanha, exigem que se declare o motivo previamente. O uso de células-tronco embrionárias para pesquisa é legal na Suíça, Finlândia, Grécia e Holanda. No Reino Unido, vão temerariamente além: lá, é permitido criar embriões humanos para estudo.

É verdade que, para mostrar-se como potência alternativa, a Europa ainda precisa conseguir equilibrar-se. Este será um ano decisivo. É quando virá o plebiscito em vários países para homologação da Constituição da União Européia e teme-se uma derrota na França, o que atordoaria as negociações. A Igreja não gostou quando o documento tomou um viés laico, não declarando as raízes católicas do continente. Será uma boa idéia, também, que as negociações diplomáticas com o Irã para impedir o país de armar-se com ogivas nucleares dêem resultado. É mais difícil, claro, mas por outro lado é preciso apresentar ao Oriente Médio uma alternativa ao jeito Bush de resolução de problemas.

O dilema maior será, eventualmente, a entrada da Turquia na União Européia – as conversas estão começando. Quando vier, em uma década, é capaz de vir como o país de maior população da União e também o mais marcadamente religioso e conservador. Nos próximos anos, haverá também um novo papa. João Paulo II foi um homem importante na promoção da queda do comunismo mas também forçou uma guinada conservadora do catolicismo. Quem estiver no Vaticano terá alguma influência nos destinos europeus – vai facilitar se for alguém disposto a reformas mínimas. Tolerar o uso de preservativos, por exemplo, é bom começo.

Mas, independentemente disso, nada justifica que o Brasil abafe tais debates – com a honrosa exceção, recente, do aborto dos anencéfalos. Sim, claro: é característica pátria. A cordialidade que nunca discute. Veja-se, no entanto, a vizinha Argentina. A união civil entre pessoas do mesmo sexo é legal na província de Buenos Aires (onde vive metade da população do país). E um estudo realizado no país chegou à conclusão de que a cannabis pode ajudar no tratamento de tétano, cólicas, esterilidade, impotência, tuberculose e várias outras. Por conta disso, foi ao Congresso, em 2001, um projeto pela legalização de seu uso médico. Como empacou, 12.000 argentinos foram às ruas da capital cobrar mudança em 2003. Pode parecer pouco, mas foi a segunda maior manifestação pública pela maconha jamais feita.

Essa mudança social tem motivos. Conforme a liberdade deixa de ser um anseio de gente que vive em ditaduras, é preciso mais dela. O Estado provavelmente não tem o direito de impedir que adultos capazes consumam o que bem quiserem, como não tem o direito de conceder garantias a um tipo de casal e negar a outro. E é preciso ter um coração de pedra para não possibilitar o uso de um punhado de células para pesquisas que possam combater doenças que afetam a mente dos velhos ou a capacidade de andar dos jovens. Mas, no fim, é também uma questão de pragmatismo. Nem o consumo de drogas nem o aborto, por exemplo, vão acabar. Torná-los ilegais, muitas vezes, pode ser uma condenação à morte. Não raro, em todos os casos, aqueles que saem mais prejudicados são os pobres.

www.nominimo.com.br

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