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O dia em que Hunter Thompson inventou a antimatéri


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  • Usuário Growroom

O dia em que Hunter Thompson inventou a antimatéria

Livro de estréia do pai do jornalismo gonzo abre caminho para a edição de toda sua obra no Brasil

http://jbonline.terra.com.br/papel/caderno...0040730009.html

FURIO LONZA

Em 1985, li o livro Las Vegas na cabeça. Dois anos depois, fui convidado para integrar a seleta equipe da revista Chiclete com Banana. Nunca saberei se esses dois fatos tiveram uma ligação. Na medida do possível, tentei esquecer o que aprendera na faculdade de comunicação e botei em prática tudo o que tinha aprendido com Hunter Thompson. Misturei jornalismo com ficção, humor e alucinações de vários graus e calibres. Foi um laboratório legal. A primeira regra a ir pro espaço foi a objetividade. Regra número 2: jornalismo informativo, especulativo, interpretativo e opinativo se mesclaram num cavernoso caldeirão de frases e ênfases, títulos e entretítulos, a linguagem formal explodiu em dissertações e narrações de caráter coloquial. Erudição e cotidiano mais rasteiro começaram a fazer parte do mesmo diapasão.

Em alguns tablóides mais alternativos, perdeu-se toda a vergonha e pudor: perceberam que a subjetividade poderia sim fazer parte dos artigos sem que necessariamente se transformasse num altar do ego. A gíria brotou no intestino das matérias como a erva do diabo. Não tínhamos mais escolha, o rebu estava armado, era uma viagem sem volta, a nova vertente tinha escancarado o bom mocismo informativo de matérias com começo, meio e desfecho. Lide e sublide deram lugar a um ensandecido jorro de palavras que vibravam como os 12 compassos de um blues de Robert Johnson.

Escrevia-se no mesmo ritmo dos shows do Grateful Dead ou Jefferson Airplane. Hunter Thompson inventara a antimatéria: o rock e a física nuclear tinham definitivamente vendido a alma para o Diabo numa improvável encruzilhada entre os becos fétidos do Bronx e as quebradas de Madureira, marcando o ritmo e a cadência da leitura.

Depois disso, foi o silêncio. Um silêncio de exatos 19 anos. A frivolidade passou a fazer parte de nosso cotidiano jornalístico. Surgiram revistas de amenidades e a vida glamourosa dos famosos começou a fazer parte da nossa pauta diária. Matérias investigativas se restringiam a prontuários e dossiês montados por senadores e deputados no intuito de derrubar inimigos políticos e fritar ministros. Esse silêncio só foi rompido agora, em 2004, com a edição do livro de estréia de Thompson: Hell's Angels: medo e delírio sobre duas rodas, da editora Conrad, uma trip fundamental para quem se interessa em saber como tudo começou.

Ao contrário de Las Vegas na cabeça, que é uma peça lisérgica de teatro boulevard, este livro é mais formal. Mas o espírito é o mesmo: derrubar a farsa montada pela mídia conservadora americana em relação aos ''motoqueiros fora da lei'' que infernizavam a vida de cidades inteiras na década de 60, uma autêntica antimatéria onde Thompson é implacável: Time, Newsweek, New York Times, Life, Los Angeles Times, The Nation, New York Herald Tribune, San Francisco Examiner e Oakland Tribune mentiram, distorceram, exageraram, criando uma ameaça fictícia que em absoluto tinha algo a ver com a realidade. Em 276 páginas de petardos, ele assegura que aquela orgia de informações erradas e alarmantes tinha um objetivo explícito: vender jornal, sem compromisso algum com a ética ou a moral: nesse contexto, ele derrubou mitos, escancarou a arrogância de promotores públicos, colocou a polícia no seu devido lugar, detonou divagações apocalípticas de jornalistas meia boca, mostrou o outro lado da notícia.

O livro sobre os Hell's Angels é de 1967, dois anos depois da publicação de A sangue frio, de Truman Capote, e um ano antes de Os exércitos da noite (Os degraus do Pentágono), de Norman Mailer. É difícil dizer quando exatamente (e com quem) começou o new journalism americano, mas com certeza foi com essa trilogia que ele escreveu suas páginas mais admiráveis. Infelizmente, isso tudo não influenciou nada por aqui, pois Thompson sempre foi um autor esnobado e pouco conhecido no Brasil. É hora de tirarmos o atraso. Afinal, sua irreverência e os insultos dirigidos à máquina, ao sistema como um todo e aos leitores pragmáticos, hoje, são um clássico do jornalismo moderno e da literatura contemporânea. Sem Hunter Thompson, não haveriam Beavis & Butt Head, South Park, o seriado inglês Absolutamente fabulosas e toda uma série de franco-atiradores politicamente incorretos que salpicam a mídia e as artes em geral. Na realidade, muita gente bebeu na sua fonte. A idéia de dessacralizar o intocável mercado de consumo, mexer com a mitologia da classe média, ridicularizar o gosto perverso do público letrado, tocar no tabu das drogas e do alcoolismo e brincar com o non sense da vida sempre fizeram parte da escala de valores invertida do autor. É bem possível que o tipo de humor do grupo inglês Monty Python seguisse outros rumos, que as peças de Mário Bortolotto demorassem um pouco mais para aparecer ou que os poemas de Glauco Mattoso não ousassem tanto em sua escatologia lírica. Atores do porte de Jack Nicholson, Jane Horrocks, Tim Roth, John Cleese e Jennifer Saunders devem a ele a irreverência e o sarcasmo de suas interpretações.

Na verdade, o estilo gonzo (por ele mesmo assim denominado) de escrever teve mais influência sobre a liberdade de encararmos a vida estúpida e autofágica nas grandes metrópoles do que propriamente na maneira de fazer jornalismo. Uma pena que isso não tenha se entranhado na cabeça de nossos editores (poderíamos ter tido nossa versão do National Lampoon), uma pena que não tenha gerado frutos abaixo do Equador (poderíamos ter tido nosso Michael Moore, por exemplo, imaginem o estrago que ele estaria fazendo), uma pena que nossas minorias étnicas não tenham se indignado o suficiente (poderíamos ter tido nossos Malcolm X, Angela Davis e Martin Luther King), uma pena que nossa civilização tenha descambado justamente naquilo que Hunter Thompson mais odiava.

Mas agora temos uma nova chance. Depois deste Hell's Angels, a editora Conrad promete radicalizar: ainda este ano, sairá A grande caçada aos tubarões e, para 2005, vem aí Screwjack e The run diary, ainda sem títulos em português. Vamos esperar pois, afinal, a luta continua

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