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Uso Terapêutico Da Maconha Amplia-se Aos Poucos


Na_Bruxa

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  • Usuário Growroom

EL PAIS

Havia passado poucas horas desde sua primeira sessão de quimioterapia. As dores de Tatiana Enriquez, médica cubana de 39 anos, eram insuportáveis. Seu hematologista, um homem mais velho, sugeriu: "Fume um cigarro de maria".

Ela levou na brincadeira, como uma forma de suavizar a situação. Não que entre eles houvesse uma confiança reforçada pelos anos;se coneheceram quando ela foi diagnosticada com câncer linfático, alguns meses antes. Depois da segunda sessão de químio, os vômitos e as náuseas não cessavam. O médico insistiu em sua idéia. Não podia fazer mais nada. "Ele viu claramente, acontece que não podia me receitar", diz Tatiana.

Nas dez sessões seguintes, antes e depois de cada uma, Tatiana decidiu consumir maconha. "Era um momento da minha vida que eu tinha de superar ou morreria, por isso o fiz da forma que eu sofresse menos", conta hoje, quatro anos depois, com o câncer praticamente superado. Tatiana também se sente uma agraciada.

A equipe médica que a tratava em um hospital público de Madri, cujo nome prefere omitir devido a possíveis conseqüências, permitia que ela fumasse maconha nas instalações. "Pode trazer aqui, e se alguém disser alguma coisa diga para falar comigo que eu autorizei", lembra as palavras de seu hematologista. Desde então, o consultório da psicóloga, que também estava inteirada, foi o lugar onde tentava superar a quimioterapia.

Embora seu caso seja peculiar, não é o único. O uso terapêutico da Cannabis evoluiu notavelmente na Espanha desde o final da década de 1990 e sobretudo no início do século 21. As campanhas de sensibilização de diversas associações, e uma mudança importante quanto à percepção da substância dentro da classe médica, fizeram que o interesse pelo uso medicinal da maconha, para atenuar algumas doenças concretas, seja cada vez maior.

Será possível que algum dia a Cannabis seja receitada como um medicamento convencional? Quanto falta para que chegue esse momento? A Cannabis deve ser analisada dentro do contexto sociológico. Cerca de 162 milhões de pessoas a consomem em todo o mundo. É a droga ilegal com mais adeptos. Existe um núcleo da população, sobretudo de pessoas jovens, que não vê efeitos nocivos no consumo de maconha.

Segundo a última Pesquisa sobre Drogas e Álcool do Ministério da Saúde da Espanha, cerca de 28,6% da população consumiram Cannabis alguma vez e 8,7% o fazem todos os meses. Nos últimos dez anos, além disso, se multiplicou por três o número de pessoas que a consomem diariamente.

O Código Penal proíbe a venda de maconha, assim como sua posse e consumo em lugares públicos. Mas não em lugares privados, onde pode ser consumida. A venda de sementes é permitida há alguns anos. Mas a lei não diferencia entre o uso terapêutico e o lúdico. "É preciso romper essa barreira, desvincular a utilização da maconha como remédio de seu uso recreativo; há muitos doentes que poderiam se beneficiar dos princípios dos canabinóides se as duas discussões forem separadas", afirma Joseba Pineda, professor de farmacologia da Universidade do País Basco.

Embora haja indícios de que era empregada para tratar reumatismo e gripe cerca de 2.700 anos antes de Cristo, foi somente no século 19 que a Cannabis se transformou em uma das substâncias a que a medicina recorre como anticonvulsivo, analgésico ou antiemético. O aparecimento de fármacos sintéticos e a pressão social e política, sempre por seu caráter recreativo, conseguiram isolá-la desde o início do século passado. Nada que não tenha ocorrido em outros casos. Qualquer substância que hoje é ilegal— heroína, êxtase, etc— foi pensada em um primeiro momento como medicamento.

O caso dos opiáceos —a morfina é o mais conhecido— é o que mais se adapta, segundo o professor Pineda, ao que o mundo médico vive hoje em dia. Como ocorre há anos, "a classe médica está evoluindo para a elaboração de testes clínicos, vendo quais produtos derivados da Cannabis podem ser prescritos com total segurança; o problema é que hoje há mais exigências, mais restrição para determinar o que é um medicamento ou não", explica Pineda, que não duvida de que "todos, em ritmos diferentes", acabarão aceitando o uso medicinal dos canabinóides.

Que algo acontece na Espanha ficou demonstrado no início deste século. Em 2001, Agata, associação catalã de ajuda a doentes de câncer de mama, iniciou uma campanha de sensibilização e pressionou as autoridades para que permitissem o uso terapêutico da Cannabis.

Nesse mesmo ano, o Parlamento catalão aprovou de forma unânime uma resolução dirigida ao governo central na qual o instava a "tomar todas as medidas administrativas necessárias para autorizar o uso medicinal da Cannabis". Quatro anos depois começaram os primeiros testes clínicos, coordenados pelo Instituto Catalão de Farmacologia.

Esse plano piloto não foi um estudo de eficácia, mas de observação, enfocado em um grupo de 200 pacientes com esclerose múltipla, anorexia produzida pelo HIV ou náuseas e vômitos em conseqüência da quimioterapia, entre outros sintomas. "São pessoas com um estado de saúde bastante precário, que haviam recorrido a quase todos os tratamentos possíveis e nenhum deles havia surtido efeito", explica a doutora Marta Durán, chefe de farmacologia do Hospital Vall d'Hebron, um do centros que participaram desse projeto inovador.

À falta de dados definitivos, que serão conhecidos brevemente, e que nenhum de seus promotores —Departamento de Saúde do governo catalão, Instituto de Farmacologia ou os próprios hospitais— quis adiantar, só se conhece o relatório preliminar publicado no ano passado. Sessenta e cinco por cento dos doentes reconhecem ter experimentado algum benefício, 10% não sentiram melhora alguma e 25% tiveram de abandonar o tratamento. As partes envolvidas só confirmam que se mantém essa tendência e que os dados finais são "bastante esperançosos".

"Abriu-se a porta para pacientes que não tinham nenhum tipo de esperança. Portanto, estamos no bom caminho", explica Durán, sempre cautelosa em seu raciocínio: "Os resultados não são espetaculares, é preciso ser muito prudente, mas não há dúvida de que podem ajudar. É preciso ver o perfil, a doença, o tipo de paciente, mas sempre que se possa ajudar vale a pena".

Nesse plano piloto, o medicamento utilizado foi o Sativex, o único extrato de Cannabis comercializado como fármaco. Desenvolvido pela GW Pharmaceutical, foi importado do Canadá, onde seu uso está aprovado para o alívio da dor neuropática com esclerose múltipla. Na Espanha só se pode recorrer a ele se o paciente estiver incluído em um programa de medicação estrangeira ou de uso compassivo.

O Sativex é utilizado como spray. O nebulizador é aplicado quatro vezes por dia embaixo da língua. Cada jato do spray administra uma dose fixa de 2,7 mg de tetrahidrocannabinol (THC) e 2,5 mg de cannabidiol (CBD), os principais canabinóides exógenos ativos.

Para os médicos, conhecer previamente a composição do medicamento é primordial, pois não representa a mesma coisa que consumir a planta, que tem muita variabilidade de proporções e em muitos casos pode representar um risco para o paciente.

Por isso também recusam muitas vezes a via fumada e recomendam mais a oral ou sublingual, como é o caso do Sativex. "Fumar pode danificar muito mais o corpo, e além disso as concentrações de THC e CBD podem variar muito. No primeiro caso, tanto se consome 0,5% quanto 20%", adverte Raphael Mechoulan, diretor da Faculdade de Ciências Naturais da Universidade Hebraica de Jerusalém.

Em Israel, comenta o pesquisador, o uso de Cannabis está autorizado para pacientes com doença de Crohn, em algumas enfermidades neurológicas e para abrir o apetite de certos pacientes.

Poucos duvidam de que o Sativex marcou um antes e um depois, mas tanto os médicos como associações aprovam canábicas reivindicam que se continue pesquisando e testando com outra porcentagem de doses além de 50% THC e 50% CBD. Se os canabinóides são bons, é preciso aproveitá-los. Essa parece ser a máxima a partir da qual muitos médicos e pesquisadores querem trabalhar.

Têm a mesma eficácia que um fármaco convencional? Rafael Borrás, porta-voz do Colégio de Farmacêuticos de Barcelona, é bastante claro a respeito: "Até agora os fármacos de Cannabis que têm sido investigados são de segunda e terceira linhas; melhoram a sintomatologia do paciente, mas não são uma cura. Por isso há duas opções: fechar os olhos e argumentar que, como se trata de uma substância ilegal, não é possível fazer nada, ou continuar trabalhando para ajudar alguns doentes".

Essa última premissa, e o conhecimento de que cada vez mais pessoas consomem maconha com fins medicinais, fez que Borrás e seus colegas farmacêuticos elaborassem o prospecto da Cannabis, um documento informativo de ajuda que qualquer pessoa pode obter na Internet.

Mas no mundo da medicina muitos continuam fechando os olhos e não conseguem acreditar, apesar do paradoxo, nas evidências científicas. "Em geral, para qualquer tratamento é melhor empregar substâncias do que extratos; qualquer iniciativa deve estar dentro de um âmbito claro, o que fizermos deve contribuir com algo", argumenta Ramón Colomer, presidente da Sociedade Espanhola de Oncologia. "Não existe informação científica suficiente, o uso terapêutico tem mais riscos e incertezas que benefícios e certezas", acrescenta.

Com a comercialização do Sativex, que os especialistas estimam para daqui a pelo menos alguns anos, a maconha como planta pode ficar relegada a um segundo plano no uso medicinal. Enquanto isso, milhares de doentes continuam a consumi-la para aliviar suas dores.

Nenhum estudo indica quantas pessoas podem estar consumindo a substância ilegal com fins medicinais, mas estimativas de alguns médicos apontam para cerca de 50 mil pessoas. Fabian Quintela, 43 anos, está há cinco em uma cadeira de rodas, em conseqüência da esclerose múltipla que sofre. Como muitos outros, seu médico lhe receitou um tratamento à base de relaxantes musculares. O único objetivo era diminuir a intensidade das dores, mas só conseguiu deixar seu estômago destruído e abrir seu esfíncter. "Eu tinha de me controlar para não fazer as necessidades", comenta resignado.

Um amigo lhe sugeriu que provasse a maconha, já que um conhecido que sofria da mesma doença havia aprovado. O boca-a-boca nesse caso parece ser o melhor teste clínico. O problema de Fabian não foi tanto decidir-se a consumir Cannabis, mas consegui-la, já que nunca havia consumido. A opção mais simples foi perguntar a seu sobrinho de 19 anos, que certa vez lhe confessara que fumava "baseados".

No dia seguinte tinha uma sacola cheia de folhas verdes em cima de sua mesa. Pouco tempo depois começou a plantar diversos tipos de maconha para ver qual era a mais conveniente. Fabian está orgulhoso de sua decisão. "Agora pelo menos posso ter uma vida normal", afirma.

Recorrer ao mercado ilegal é a única solução que resta a muitos doentes, com os inconvenientes que isso representa: preço elevado, não saber realmente a substância que estão recebendo... No caso da esclerose múltipla, a Cannabis pode melhorar a espasticidade e aliviar a dor, mas no mercado ilegal a substância que se encontra em doses muito baixas de CBD, o princípio que age sobre a espasticidade muscular.

"Também ocorre uma situação absurda: os que devem ser protegidos do acesso à maconha, que são os jovens, são os que a conseguem mais facilmente. Os doentes, porém, são os que encontram mais obstáculos", critica Martín Barriuso, presidente da Federação de Associações Canábicas (FAC). Barriuso também é um dos responsáveis pela Pannagh ("maconha" em sânscrito), uma associação basca de usuários dessa substância, um clube de consumidores composto por 230 pessoas, das quais 60% -quase todos maiores de 50 anos- a empregam com fins medicinais. Na Espanha há cerca de 30 associações canábicas, e uma dezena de clubes como o Pannagh.

Todo doente que quiser se associar deverá passar primeiro por uma entrevista pessoal e apresentar um certificado médico demonstrando que sofre de uma doença que pode estar sujeita a um tratamento com Cannabis. Além de uma cota de sócio, cada pessoa paga a maconha que consome -são cultivadas até 12 variedades diferentes-, sempre a preço de fábrica, isto é, muito mais barato que no mercado ilegal. Por exemplo, para um ciclo de quimioterapia normal, Barriuso calcula que sejam necessários 5 g, o que representaria 22,50 euros para o doente.

Embora seja aparentemente simples, eles tiveram vários problemas. Em outubro de 2005 a polícia deteve três membros da entidade e apreendeu 150 kg brutos de maconha, que depois do processo de secagem e análises ficaram em 18. O Ministério Público de Vizcaya, alguns meses depois, absolveu a associação por entender que a plantação cumpria os requisitos para ser considerada de "uso compartilhado". Naquela época a Pannagh tinha 70 membros.

A principal crítica que se faz a esse tipo de associação é que por mais que se saiba que a maconha é cultivada não tem as mesmas garantias que uma dose fixa como no caso do Sativex. "É um fármaco interessante, mas não nos enganemos, não passa de uma tintura alcoólica, algo que estamos tentando fazer na associação mas que nenhum laboratório quer analisar. É a história de sempre, tratamos com doentes que é uma atividade legal, mas quando queremos analisar a maconha nos impedem de conseguir essa segurança."

A separação do uso medicinal do lúdico chega a tais extremos que muitos que são contra a autorização da maconha para atenuar enfermidades argumentam que, depois de terminado o tratamento, os doentes correm um risco muito sério de continuar consumindo maconha com fins recreativos. Tatiana, a médica cubana, dá uma gargalhada: "Olhe, se alguém entrar agora neste bar e começar a fumar 'maria' ao meu lado eu tenho de ir para o outro extremo. É um cheiro que na época relacionei ao alívio, mas passado o tempo eu associo a um dos piores momentos da minha vida".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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