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O Uso De Drogas E O Direito à Liberdade


CanhamoMAN

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  • Usuário Growroom

O uso de drogas e o direito à liberdade<IMG height=10 width=1>Pedro Estevam Serrano

http://oglobo.globo.com/vivermelhor/mat/20...a-546716007.asp

Decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo, muito bem comentada pelo colunista e professor Luiz Flávio Gomes neste sítio, me estimula a retornar a tema que já ofereci meu ponto de vista por aqui.

A nossa doutrina de direito constitucional trata do direito à liberdade em sua dimensão de garantia formal, pelo estabelecimento da lei como veículo introdutor democrático das limitações inerentes a sua conformação como direito, de forma adequada. Determina realmente o inciso II do artigo 5º de nossa Carta Magna que só a lei pode obrigar alguém a realizar ou proibir condutas.

Efetivamente a lei como forma é uma conquista humana e civilizatória. Submeter as limitações à liberdade humana a prévio debate e aprovação parlamentar, tendo o Parlamento como representação livremente eleita pelo povo, implicou a substituição de um modelo policial, absolutista de Estado pelo contemporâneo Estado de Direito.

O debate público e processos decisórios regulados substituem a luta física e o uso da força como mecanismos de solução de conflitos entre os grupos sociais e fundam a lei como vontade heterônoma determinadora do agir estatal em substituição à vontade autônoma do soberano, transformando o governante de dono em gerente dos interesses estatais e públicos, parafraseando a célebre expressão de Cirne Lima.

Mas parece faltar uma questão a saber ou ao menos a mais bem divulgar, qual seja, o direito à liberdade garantido em nossa Constituição encontra satisfação no mero atendimento de uma garantia como a da reserva legal das limitações ou implica também um direito material fundamental em nosso sistema?

Parece-me que a resposta, se não óbvia, é de difícil refutação consistente.

Mais que estabelecer a lei como fonte primária de proibições e garantir o mero direito de ir e vir, nossa Constituição, ao estabelecer o direito à liberdade como esfera materialmente protegida por nossa ordem jurídica fundamental, oferece à pessoa a possibilidade de agir segundo sua vontade autônoma salvo quando proibida por lei e quando tal proibição implique proteger a esfera jurídica de terceiros ou da sociedade. Cabe à pessoa agir livremente, segundo sua vontade, desde que não atinja direta e imediatamente direitos de terceiros.

Este, me parece em essência, o sentido jurídico do direito à liberdade estatuído no artigo 5º, “caput”, de nossa Carta Magna.

Por conseqüência cabe a cada pessoa gerenciar seu corpo da forma que bem entender. Mais que um mero direito entre tantos garantidos pela ordem jurídica, um valor civilizatório, uma conquista humana que cotidianamente é solapada por condutas estatais desatentas a este direito constitucionalmente garantido.

Inconstitucionais, portanto, a nosso ver, os dispositivos legais que tipificam como crime o consumo de substâncias entorpecentes. É direito das pessoas usarem em seus corpos as substâncias que bem entenderem; o coletivo não pode querer invadir essa esfera íntima, como tem feito, sob pena de carrear ao Estado democrático de Direito conduta própria de um estado policial já superado tanto em seu momento histórico pré-iluminista, quanto em suas formações autoritárias à direita e à esquerda no bojo do capitalismo industrial do século XX.

Restrições à publicidade e estimulação ao consumo de qualquer substância que entorpeça recreativamente os sentidos, do álcool, nicotina à maconha e outras drogas tidas como ilícitas, são válidas, haja vista tratar-se de condutas humanas que visam convencer terceiros consumidores usando poderosos artifícios de mídia que afetam exatamente a livre e autônoma formação da vontade pessoal, essência última da liberdade.

Trata-se a publicidade de conduta interveniente na vida de terceiros, sendo razoável sofrer limitações em lei com vistas à proteção da saúde pública e à garantia da correta informação dos consumidores quanto às propriedades e às características do produto e dos malefícios que seu consumo pode ocasionar ao bem-estar físico e corporal, para que assim a autonomia da vontade seja efetivamente exercida, resultando em conduta responsável, e não alienada.

Relacionar o consumo de álcool, da nicotina à beleza e às praticas esportivas ou o da cannabis sativa a uma prática natural, equilibrada e inocente esconde os efeitos deletérios que tais substâncias podem ocasionar na saúde do usuário, induzindo-o a erro evidente quanto a características dessas substâncias. Tal indução a erro implica evidente prejuízo a terceiros, devendo ser reprimida pela legislação.

Da mesma forma, vedar o consumo de tais substâncias em locais cuja natureza amplie em demasia a possibilidade de danos a terceiros pelo seu uso indevido, como nas estradas de rodagem, também não me parece dispositivo em tese incompatível com nosso direito constitucional à liberdade.

Obviamente a maioria das pessoas que consomem álcool ou cannabis não o fazem irresponsavelmente na hora em que estão dirigindo automóvel, mas como numa estrada o risco de abusos se amplia, uma maior cautela se justifica.

Condiciona-se neste caso a gestão do corpo pela pessoa como forma de evitarem-se danos a terceiros, e não como interferência indevida na intimidade decisória que deve caracterizar a existência humana livre.

O argumento que usar drogas implica danos à saúde e, portanto implica ônus aos serviços públicos de assistência médica não merece prosperar. A imensa maioria dos problemas de saúde é ocasionada pelo comportamento humano livre, nem sempre adequado à preservação do organismo.

Admitir que ônus aos serviços públicos de saúde devem implicar restrições à liberdade levaria a considerar também crime o consumo de gorduras e carboidratos em excesso, o sedentarismo, o consumo de álcool e fumo, o fazer exercícios em excesso, o ser gordo ou magro em demasia (reis momos e modelos anoréxicas seriam aprisionados sem complacência), o trabalhar em atividades estressantes como a advocacia ou a própria medicina, por exemplo, etc.

Viver fora de um padrão comportamental ditado pelas regras de preservação da saúde corporal seria proibido. Nova servidão contemporânea substituindo a cidadania livre. Ideais apolíneos de corpo e saúde substituindo a liberdade de escolha e o acolhimento dos erros dessas escolhas como perturbações naturais da convivência humana pluralista. Eugenia nazista e estética corporal operária-estanilista ressurgindo das cinzas do século XX. Fernandinho Beira-Mar traficando Big Macs!

O serviço público de saúde, como qualquer atividade administrativa deve procurar atender aos fins que a ordem jurídica lhe determina, buscar atender aos valores que esta mesma ordem estabelece. Deve, portanto, ser escoro e amparo às vicissitudes inerentes ao viver livre, e não motivo para sua interdição.

Mais do que nos manter sobrevivendo, o serviço de saúde deve servir a um modelo de vida que acreditamos e transformamos em norma cogente. Um viver pautado na livre gestão de nossos corpos. Na liberdade como valor e sentido de nossa existência.

Quinta-feira, 5 de junho de 2008

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