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Revisão: Funcionamento Executivo E Uso De Maconha


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Revista Brasileira de Psiquiatria

Print ISSN 1516-4446

Rev. Bras. Psiquiatr. vol.30 no.1 São Paulo Mar. 2008

doi: 10.1590/S1516-44462008000100013

Revisão: funcionamento executivo e uso de maconha

Review: executive functioning and cannabis use

Priscila Previato Almeida(I); Maria Alice Fontes Pinto Novaes(I); Rodrigo Affonseca Bressan(I); Acioly Luiz Tavares de Lacerda(I), (II), (III)

I - LiNC - Laboratório Interdisciplinar de Neurociências Clínicas, Departamento de Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo (SP), Brasil

II - Instituto Sinapse de Neurociências Clínicas, Campinas (SP), Brasil

III - Centro de Pesquisa e Ensaios Clínicos Sinapse-Bairral

RESUMO

OBJETIVO: A maconha é a droga ilícita mais consumida no mundo, porém ainda existem poucos estudos examinando eventuais prejuízos cognitivos relacionados ao seu uso. As manifestações clínicas associadas a esses déficits incluem síndrome amotivacional, prejuízo na flexibilidade cognitiva, desatenção, dificuldade de raciocínio abstrato e formação de conceitos, aspectos intimamente ligados às funções executivas, as quais potencialmente exercem um papel central na dependência de substâncias. O objetivo do estudo foi fazer uma revisão a respeito das implicações do uso da maconha no funcionamento executivo.

MÉTODO: Esta revisão foi conduzida utilizando-se bases de dados eletrônicas (MedLine, Pubmed, SciELO and Lilacs).

DISCUSSÃO: Em estudos de efeito agudo, doses maiores de tetrahidrocanabinol encontram-se associadas a maior prejuízo no desempenho de usuários leves em tarefas de controle inibitório e planejamento; porém, este efeito dose-resposta não ocorre em usuários crônicos. Embora haja controvérsias no que se refere a efeitos residuais da maconha, déficits persistentes parecem estar presentes após 28 dias de abstinência, ao menos em um subgrupo de usuários crônicos.

CONCLUSÕES: Os estudos encontrados não tiveram como objetivo principal a avaliação das funções executivas. A seleção de testes padronizados, desenhos de estudos mais apropriados e o uso concomitante com técnicas de neuroimagem estrutural e funcional podem auxiliar na melhor compreensão das conseqüências deletérias do uso crônico da maconha no funcionamento executivo.

Descritores: Cannabis; Neuropsicologia; Cognição; Lobo frontal; Literatura de revisão

ABSTRACT

OBJECTIVE: Cannabis is the most used illicit drug worldwide, however only a few studies have examined cognitive deficits related to its use. Clinical manifestations associated with those deficits include amotivational syndrome, impairment in cognitive flexibility, inattention, deficits in abstract reasoning and concept formation, aspects intimately related to the executive functions, which potentially exert a central role in substance dependence. The objective was to make a review about consequences of cannabis use in executive functioning.

METHOD: This review was carried out on reports drawn from MedLine, SciELO, and Lilacs.

DISCUSSION: In studies investigating acute use effects, higher doses of tetrahydrocannabinol are associated to impairments in performance of nonsevere users in planning and control impulse tasks. However, chronic cannabis users do not show those impairments. Although demonstration of residual effects of cannabis in the executive functioning is controversial, persistent deficits seem to be present at least in a subgroup of chronic users after 28 days of abstinence.

CONCLUSIONS: The neuropsychological studies found did not have as a main aim the evaluation of executive functioning. A criterial selection of standardized neuropsychological tests, more appropriate study designs as well as concomitant investigations with structural and functional neuroimaging techniques may improve the understanding of eventual neurotoxicity associated with cannabis use.

Descriptors: Cannabis; Neuropsychology; Cognition; Frontal lobe; Review literature

Introdução

A prevalência do uso da maconha é superada apenas pela do álcool e a do tabaco, sendo a droga ilícita mais consumida no mundo.(1) Ela é experimentada por muitos jovens europeus e pela maioria dos jovens nos Estados Unidos e na Austrália.(2) No Brasil, em apenas uma década, a prevalência de uso de maconha entre estudantes triplicou.(3) Em um levantamento domiciliar feito na cidade de São Paulo com uma população de indivíduos maiores de 12 anos de idade, a maconha foi a droga ilícita que teve maior freqüência de uso na vida, seguida de longe pelos solventes e a cocaína.(4)

Há séculos a maconha vem sendo utilizada para fins recreacionais; porém, ultimamente vem ocorrendo um aumento no interesse acerca do uso terapêutico desta substância em diferentes condições (e.g., tratamento de glaucoma e da perda de apetite em paciente com AIDS ou outras doenças consumptivas).(5) O potencial uso terapêutico da maconha, no entanto, deve estar condicionado não apenas à comprovação de sua eficácia nos quadros clínicos em questão, sendo necessário assegurar que o seu uso regular não esteja associado a danos à saúde, incluindo prejuízos no funcionamento cerebral. Deste modo, o estabelecimento de uma relação risco-benefício favorável é fundamental para a condução da calorosa discussão envolvendo a liberação do seu uso terapêutico. Diferentes estratégias têm se mostrado promissoras na investigação de eventuais prejuízos no funcionamento cerebral decorrentes do uso regular de substâncias, destacando-se as técnicas de neuroimagem funcional e estrutural e a avaliação neuropsicológica.

A avaliação dos prejuízos neuropsicológicos decorrentes do uso da maconha continua desafiando pesquisadores. Muitos estudos mostram prejuízos significativos no período inicial de abstinência, mas falham em demonstrar déficits residuais. Reduzir o número de variáveis confundidoras é um grande desafio, o qual é complicado por diferentes dificuldades metodológicas. Entre as variáveis que devem ser consideradas, estão o tipo de testes neuropsicológicos utilizados, o intervalo entre a última vez que a substância foi consumida e o momento da avaliação, a concentração de tetra-hidrocanabinol (THC) na maconha consumida, os efeitos do uso de outras substâncias, a presença de comorbidades psiquiátricas de eixo I, o tamanho da amostra e o tempo e a intensidade de uso.(6) Além disso, uma síndrome de abstinência da maconha tem sido bem estabelecida, especialmente em usuários crônicos e pesados.(7)

As funções executivas (FE) exercem um papel central no processo de dependência, tanto no controle do impulso em usar a droga como na dificuldade em interromper o uso. Essas funções permitem ao homem desempenhar, de forma independente e autônoma, atividades dirigidas a um objetivo específico, estritamente relacionado ao comportamento humano. Englobam ações complexas que dependem da integridade de vários processos cognitivos, emocionais, motivacionais e volitivos, os quais estão intimamente associados ao funcionamento dos lobos frontais.

A volição é a capacidade de gerar comportamentos intencionais, a qual necessita de motivação, iniciativa e autoconsciência. A perda da capacidade volitiva acarreta um importante comprometimento funcional, quando o indivíduo pode se tornar apático e sem iniciativa.

O planejamento requer capacidade de abstração, pensamento antecipatório, capacidade de organizar uma seqüência de passos, controle de impulsos, fazer escolhas, sustentar a atenção e ter a memória preservada, além da motivação e autoconsciência.

A ação propositiva demanda a capacidade de iniciar, manter, alterar e interromper seqüências de comportamentos complexos de maneira integrada e ordenada, além de flexibilidade para mudança de set perceptivo, cognitivo e comportamental. Já o desempenho efetivo compreende a auto-regulação.(8)

Assim, o funcionamento executivo pode ser definido como a capacidade de se extrair informações de diversos sistemas cerebrais, verbais ou não verbais, e agir sobre essas informações de modo a produzir novas respostas, fornecendo aos sistemas funcionais orientações para um processamento eficiente das informações. Os processos cognitivos que sustentam as funções executivas são: memória operacional, set preparatório e controle inibitório. A memória operacional é a capacidade de manter e manipular a informação de curto prazo para gerar uma ação num futuro próximo. O set preparatório se define como prontidão de estruturas sensoriais e, principalmente, motoras para o desempenho de um ato contingente a um evento prévio, representado na memória operacional. O controle inibitório é um processo que objetiva suprimir influências internas ou externas que possam interferir na seqüência comportamental em curso.(9)

Estas funções primárias, somadas aos processos de natureza emocional, motivacional ou volitiva, podem ser consideradas a base das funções executivas. Déficits mais amplos na capacidade de abstração, planejamento e memória, assim como alterações de linguagem, são, em parte, reflexo de perturbações que acometem estas funções básicas.(10)

Estudos com usuários de substâncias ilícitas têm detectado vários déficits cognitivos semelhantes aos encontrados em pacientes com lesões frontais, como, por exemplo, incapacidade para utilizar conhecimentos específicos em uma ação apropriada, dificuldade de mudar de um conceito para o outro e alterar um comportamento depois de iniciado, dificuldade em integrar detalhes isolados e de manipular informações simultâneas.(11)

Um sintoma central na síndrome de dependência de substâncias é a ingestão compulsiva e o desejo intenso de usar a substância a despeito das conseqüências desse comportamento em curto ou em longo prazo.(12) A existência de prejuízos em diversos aspectos do funcionamento executivo em usuários de diferentes substâncias (álcool, cocaína, anfetaminas, opióides e maconha) envolve a maneira pela qual o indivíduo lida com as propriedades de reforço da substância, assim como a deficiência no controle dos mecanismos de respostas e a qualidade de tomada de decisões. Desta maneira, as funções executivas desempenham um importante papel no processo de dependência, no impulso em usar a droga e nas dificuldades para interromper o uso.(13)

Deste modo, problemas no funcionamento neuropsicológico, especialmente das funções executivas, podem influenciar negativamente na motivação para o tratamento e a aderência ao programa de recuperação, aumentando as chances de recaída.(14) Neste caso, prejuízos em tais funções apresentariam uma potencial importância etiológica ou, pelo menos, influenciariam a cronicidade do problema.

As alterações executivas podem ainda ter um considerável impacto negativo na dinâmica e nos resultados do tratamento da dependência de substâncias. Esta importância aumenta conforme aumentam as demandas cognitivas destes tratamentos. Os sujeitos podem ter dificuldades para tomar consciência de seus próprios déficits, para entender instruções complexas, inibir respostas impulsivas, planejar suas atividades diárias e tomar decisões que fazem parte do seu cotidiano.(15)

Portanto, é importante relacionar os prejuízos nas funções cognitivas com suas possíveis implicações na vida diária do paciente, assim como suas reações emocionais e seu padrão de raciocínio com o objetivo proposto pelo tratamento.(16)

O presente artigo tem por objetivo revisar criticamente os estudos que avaliaram o funcionamento executivo de usuários regulares de maconha, discutindo a persistência de eventuais prejuízos cognitivos residuais e as suas possíveis implicações para a síndrome de dependência. O termo residual vem sendo empregado na literatura para descrever os efeitos de longo prazo do uso da maconha; porém, permanece ambíguo e em muitos estudos não é bem definido. O termo residual pode se referir a prejuízos devido a resíduos de canabinóides agindo no sistema nervoso central (SNC) depois de cessado o período de intoxicação aguda ou pode se referir a danos no SNC que persistem mesmo depois de não haver mais resíduos da droga no organismo.(17) Assim, a presente revisão propicia uma atualização dos achados referentes ao funcionamento executivo de usuários de maconha, com especial ênfase na investigação de possíveis prejuízos cognitivos residuais decorrentes do uso crônico desta substância.

Método

Esta revisão foi conduzida utilizando-se bases de dados eletrônicas, tais como MedLine, Pubmed, SciELO e Lilacs, com os termos " cannabis" , " marijuana" , " neuropsychol*" , " cognit*" , " executive functioning" , " mental flexibility" , inhibitory control" , " abstraction ability" , " concept formation" e " decision-making" .

Estudos examinando os efeitos da maconha e suas implicações neuropsicológicas envolvem tradicionalmente dois tipos de desenho: 1) aqueles nos quais são administradas doses de THC em voluntários com história de uso leve e não regular; 2) estudos que analisam o desempenho neuropsicológico de usuários crônicos de maconha. Os primeiros são mais apropriados para a avaliação dos efeitos agudos causados pela intoxicação, enquanto que estudos com usuários crônicos fornecem informações a respeito dos efeitos do uso prolongado da droga, assim como potenciais efeitos residuais que persistem após a suspensão do uso.(18) Portanto, a discussão foi subdividida entre estudos que avaliaram o efeito agudo da maconha (Tabela 1) e estudos que avaliaram seu efeito de uso crônico (Tabela 2).

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Devido à complexidade e aos diversos componentes ligados ao funcionamento executivo, foram considerados de interesse primário os estudos que relatavam o uso de testes neuropsicológicos levando-se em consideração a descrição de funcionamento executivo proposta por Lezak, comentada na introdução. Além disso, deve-se salientar que a realização de tarefas padronizadas, como os testes neuropsicológicos, envolve diversos mecanismos cerebrais e sofre a influência de fatores ambientais, o que não permite avaliar isoladamente uma única função e vai depender da preservação da capacidade de atenção do sujeito.(19) A atenção é condição necessária para a capacidade de concentração e para a realização de atividades mentais.

Desta maneira, foram selecionados artigos que avaliaram aspectos como planejamento, capacidade de abstração, habilidade em solucionar problemas, mudança de estratégias, flexibilidade mental e comportamento orientado para um objetivo - os quais estão associados ao funcionamento do córtex pré-frontal dorsolateral -, por meio dos seguintes testes: Wisconsin Card Sorting Test, Torre de Londres, Figura Complexa de Rey, Fluência Verbal (FAS) e Trail Making Test.

O controle inibitório, juntamente com a memória operacional e o set preparatório, desempenha papel na organização temporal do comportamento, e tem como função impedir estímulos distrativos de alterar a estrutura global da ação decorrida no tempo. Os substratos neurais do controle inibitório incluem o córtex pré-frontal orbitomedial, além da região parietal e estruturas subcorticais, tais como o caudado e o giro do cíngulo.(20) Dentre os estudos, foram selecionados aqueles que utilizaram Stroop Test, Stop Task, Go/no Go e Delay Discounting Test.

Discussão

A despeito de tal relevância, existem poucos estudos examinando a existência de prejuízos cognitivos em usuários de maconha. No que se refere ao funcionamento executivo em adultos, foram encontrados apenas nove artigos, sendo três sobre o efeito agudo e seis sobre o efeito do uso crônico. Os estudos encontrados avaliam, em grande parte, outros aspectos neuropsicológicos, porém serão descritos aqui apenas aqueles que se referem às FE.

Estudos avaliando os efeitos da intoxicação aguda

O estudo conduzido por Hart et al. em 2001(21) examinou os efeitos da intoxicação aguda por maconha, avaliando diferentes aspectos das FE, tais como raciocínio, abstração, flexibilidade mental e controle inibitório, por meio de uma bateria computadorizada (MicroCog: Assessment of Cognitive Functioning). Foram avaliados (18) sujeitos que fumavam, em média, quatro baseados por dia, seis vezes por semana, por um período médio de quatro anos. Os sujeitos passaram por três sessões experimentais, nas quais consumiram diferentes concentrações de THC (0%, 1,8% e 3,9%), com um intervalo de pelo menos 72 horas entre as sessões. Não foram observadas diferenças significativas no desempenho dos sujeitos em função da concentração de THC consumido. Segundo os autores, uma possível explicação para tal achado seria a de que usuários crônicos acabam desenvolvendo estratégias compensatórias e tendem a ser mais cuidadosos na execução de tarefas após o consumo.

O estudo realizado por McDonald et al.(22) investigou os efeitos agudos do THC em comportamentos impulsivos definidos pelos autores como incapacidade de inibir ações inapropriadas, insensibilidade a conseqüências, percepção distorcida do tempo e perseveração de comportamentos, aspectos intimamente ligados ao funcionamento executivo. Foram avaliados 18 homens e 19 mulheres, os quais tinham feito uso de maconha ao menos 10 vezes na vida. Os participantes foram randomizados e receberam cápsulas contendo placebo, 7,5 mg ou 15 mg de THC. Foram utilizados os seguintes testes: Stop Task, Go/No Go e Delay Discounting test. O THC aumentou as respostas impulsivas no Stop Task, porém, não afetou significativamente o desempenho nos outros testes. Os autores concluíram que o THC pode afetar certos comportamentos impulsivos e sugerem que a impulsividade é resultado de diversos componentes.

Já o estudo realizado por Ramaekers et al.(23) avaliou os efeitos agudos da maconha através de uma curva dose-resposta (250 µg/kg e 500 µg/kg de THC) em um estudo cruzado, duplo-cego e controlado por placebo, com 20 usuários recreacionais, os quais tinham entre 19 e 29 anos, e fumavam, em média, três vezes por mês há aproximadamente quatro anos. As FE foram avaliadas por meio dos seguintes testes: Torre de Londres, Stop Signal Task e Iowa Gambling Task (IGT). Ao comparar o desempenho dos indivíduos com o grupo placebo na Torre de Londres, observou-se uma diminuição no número de respostas corretas nos dois grupos que utilizaram THC. Já na tarefa de controle inibitório do Stop Signal Test, observou-se um pior desempenho apenas no grupo que recebeu a maior dose de THC. Não houve diferença significativa em relação ao IGT. Os autores concluem que há uma relação dose-resposta no desempenho dos sujeitos no que se refere ao controle inibitório. É importante salientar, porém, que os sujeitos examinados eram usuários leves e podem ser mais sensíveis aos efeitos agudos da maconha se comparados com usuários pesados.

Nos estudos de efeito agudo, os prejuízos encontrados relacionam-se a dois aspectos relativos ao funcionamento executivo: o controle inibitório, ligado à impulsividade, e a capacidade de planejamento. O controle inibitório é um processo que objetiva suprimir influências internas ou externas que possam interferir na ação em curso. Memórias sensoriais ou motoras e estímulos distratores são impedidos de alterar a estrutura global da ação decorrida no tempo.(24) O planejamento requer capacidade conceitual e de abstração, capacidade de organizar passos em seqüência, gerar alternativas e fazer escolhas.(25)

Existem algumas limitações metodológicas em relação a esses estudos que merecem ser comentadas. Em primeiro lugar, está a diferença de idade dos sujeitos avaliados. Nos estudos de Hart et al. e Ramaekers et al., a diferença de idade dos sujeitos variava em torno de 10 anos, ou seja, estavam dentro de uma mesma faixa etária, enquanto que no estudo realizado por McDonald et al. essa diferença de idade se estendia em 27 anos.

Além disso, deve-se salientar que prejuízos em relação ao controle de impulsos e à capacidade de abstração foram encontrados em estudos que examinaram sujeitos que faziam uso esporádico de maconha. Diferentes estudos examinando os efeitos agudos da maconha encontraram menores prejuízos cognitivos em usuários pesados quando comparados a usuários leves.(26) Enquanto que no estudo de Hart et al., os sujeitos eram experientes e fumavam em média seis (1,3) vezes por semana há quatro anos; os sujeitos avaliados no estudo de McDonald et al. fumavam em média 1,55 (2,02) vezes por semana; e os sujeitos avaliados no estudo de Ramaekers et al. fumavam em média 3,4 (3) vezes por mês há quatro anos. Deve-se levar em conta a quantidade, a freqüência e a duração do uso da droga, já que esses aspectos estão relacionados com o desenvolvimento de tolerância por parte dos usuários.

Em estudos de efeito agudo, o ideal seria administrar a substância a um indivíduo que nunca a usou ou a um usuário abstinente. Como isso não é possível devido a questões éticas, os grupos de comparação são geralmente usuários ocasionais. Os sujeitos que fazem uso leve da maconha podem ser mais sensíveis aos efeitos agudos do THC quando comparados com usuários experientes. Além disso, como nestes casos os sujeitos são seus próprios controles e já possuem uma história prévia de consumo, poucas administrações dificilmente levariam à produção de decréscimo no seu desempenho,(27) situação que explicaria este achado aparentemente contra-intuitivo.

Pode-se concluir que doses maiores de THC encontram-se associadas a um maior prejuízo no desempenho de usuários leves em tarefas de controle inibitório e planejamento, ou seja, parece haver um efeito de dose-resposta no desempenho dos testes que avaliam tais funções. Porém, este efeito de dose-resposta parece não ocorrer em usuários pesados.

Estudos avaliando os efeitos do uso crônico

No estudo conduzido por Solowij et al., que analisou o uso crônico da maconha, foram examinados os efeitos do tempo de uso da maconha nas funções cognitivas, comparando 51 usuários de longo prazo (média de 23,9 anos de uso), 51 usuários de curto prazo (média de 10,2 anos de uso) e 33 não usuários. No momento da avaliação, os usuários estavam abstinentes por um período médio de 17 horas. As FE foram avaliadas através do Wisconsin Card Sorting Test (WCST) e do Stroop Test. Não foram observadas diferenças entre os grupos no desempenho do Stroop Test. Já no WCST, os usuários de longo prazo apresentaram mais falhas em manter o set do que os usuários de curto prazo e os controles. Porém, alguns autores sugerem que esta medida representa, na verdade, um prejuízo na atenção ao invés de disfunção executiva.(28)

O estudo realizado por Pope et al. em 1996 avaliou se o uso freqüente de maconha está associado com prejuízos neuropsicológicos residuais.(29) Dois grupos de estudantes foram examinados: 65 usuários pesados, os quais tinham fumado em média 29 dias no último mês (de 22 a 30 dias), com resultado de urina positivo para canabinóides; 64 usuários leves, os quais tinham fumado em média um dia nos últimos 30 dias (de 0 a 9 dias), com teste de detecção de canabinóides na urina negativo. Foi administrada uma bateria de testes neuropsicológicos após 19 horas de abstinência. As FE foram avaliadas através do WCST. Os usuários pesados tiveram um pior desempenho quando comparados aos usuários leves, com maior tendência à perseveração. Esta diferença persistiu quando da análise de cada sexo separadamente.

Em outro estudo realizado por Pope, em 2001,(30) foram recrutados indivíduos de 30 a 55 anos, dividindo-os em três grupos: 63 usuários pesados e freqüentes que tinham fumado ao menos 5.000 vezes na vida e que fumavam diariamente quando da entrada no estudo; 45 usuários pesados que haviam fumado ao menos 5.000 vezes na vida, mas não mais que 12 vezes nos últimos três meses; e 72 sujeitos controles que tinham fumado ao menos uma vez, mas não mais que 50 vezes na vida e não mais que uma vez no último ano. Foi solicitado que os sujeitos ficassem abstinentes por 28 dias, sendo realizadas avaliações nos dias 0, 1, 7 e 28. No último dia, foram aplicados o WCST e o Stroop Test. Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos em nenhuma das medidas neuropsicológicas. Os autores concluíram que pelo menos alguns déficits neuropsicológicos parecem ser reversíveis e relacionados com a exposição recente à droga.

Em 2003, Pope et al. avaliaram a relação entre a idade de início de consumo de maconha e o desempenho cognitivo de 122 usuários comparados com 87 controles, os quais já haviam feito uso de maconha ao menos uma vez, mas não mais que 50 vezes na vida e não mais que uma vez no último ano.(31) Os usuários entraram no estudo após 28 dias de abstinência, monitorados diariamente por meio de testes de urina, e foram divididos em dois grupos: 1) usuários pesados que fumaram ao menos 5.000 vezes na vida e diariamente antes da entrada no estudo; 2) usuários que haviam fumado 5.000 vezes na vida, mas menos que 12 vezes nos três últimos meses antes do estudo. Estes dois grupos foram, então, subdivididos entre aqueles que haviam iniciado o consumo antes dos 17 anos (n = 69) e depois dos 17 anos (n = 53). Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos em relação aos testes de FE aplicados, entre eles o FAS (fluência verbal, categorias semânticas), o WCST e o Stroop Test.

Bolla et al. avaliaram(32) se déficits neurocognitivos associados ao uso crônico de maconha persistem após 28 dias de abstinência e se estes estão relacionados com o número de baseados fumados por semana. Os usuários do estudo fumavam há pelo menos dois anos e ao menos três vezes por semana. Foram divididos em três grupos: sete usuários leves (média de 10 baseados/semana); oito usuários medianos (média de 42,1 baseados/semana) e sete usuários pesados (média de 93,9 baseados/semana). Os testes usados para avaliar as funções executivas foram o Stroop Test, o WCST e o Trail Making Test (partes A e B). Os usuários pesados apresentaram um desempenho pior do que os usuários leves no WCST. Ainda, houve uma correlação negativa entre o número de baseados fumados e o desempenho nos testes.

Finalmente, um estudo conduzido por Lyon et al. examinou(33) 54 pares de gêmeos monozigóticos discordantes para o uso de maconha. Um mínimo de um ano havia se passado desde o último episódio de uso e os sujeitos haviam usado a substância regularmente por um período médio de 20 anos. Os testes utilizados para avaliar o funcionamento executivo foram: WCST, Stroop Test, Trail Making Test (partes A e B) e Figura Complexa de Rey. Não houve diferença no funcionamento executivo dos dois grupos.

Em relação aos estudos de efeito do uso crônico citados, no trabalho de Pope realizado em 1996, os usuários pesados tiveram pior desempenho no WCST em relação à quantidade de erros perseverativos quando comparados com os usuários leves, após 19 horas de abstinência. Esta medida está relacionada com a flexibilidade mental, ou seja, a capacidade do indivíduo em mudar ou manter um comportamento a partir de um feedback do ambiente. O autor conclui que não se pode determinar se este prejuízo é devido a efeitos residuais da maconha no cérebro ou se está relacionado à síndrome de abstinência.

A suspensão abrupta do uso pode se seguir de sintomas de abstinência, tais como inquietação, ansiedade, insônia e alterações motoras. Uma dose diária de 180 mg de THC entre 11 e 21 dias já é o suficiente para produzir uma síndrome de abstinência bem definida.(34) Além disso, a maconha tem uma meia-vida de aproximadamente sete dias e, devido ao seu acúmulo no tecido adiposo e extensiva recirculação entero-hepática, a completa eliminação de uma simples dose pode levar até 30 dias.(35) Assim, neste estudo os déficits encontrados são decorrentes de efeitos residuais da maconha, ou seja, devido à possível existência de canabinóides agindo no sistema nervoso central.

Esses aspectos podem representar importantes variáveis que se sobrepõem quando da análise dos resultados deste estudo, bem como do estudo de Solowij et al. Neste último, em que usuários de longo prazo são comparados com usuários de curto prazo e controles, a avaliação foi realizada com os sujeitos abstinentes por um período médio de 19 horas. Os resultados encontrados pelo estudo demonstram que os usuários de longo prazo apresentam mais falhas em manter a regra no WCST do que os usuários de curto prazo. Esta medida está relacionada à atenção(36) e, além do mais, estudos sugerem a presença de prejuízos na atenção em usuários de maconha(37) após consumo entre 12 e 24 horas, o que pode explicar os resultados encontrados.

Outro fator relevante refere-se ao tipo de grupo controle utilizado. No estudo de Solowij et al., foram utilizados como grupo-controle sujeitos que nunca tinham feito uso de maconha. Nos estudos de Pope et al., realizados em 2001 e 2003, os autores usaram como controles sujeitos os quais já tinham experimentado maconha, mas não mais que 50 vezes na vida e não mais que uma vez no último ano, sugerindo que estes seriam mais parecidos com os usuários, numa tentativa de minimizar uma eventual influência de variáveis como estilo de vida e hábitos de estudo.

Outros estudos procuraram minimizar a influência de efeitos residuais da maconha ao avaliar sujeitos há mais de 28 dias abstinentes. Assim, os possíveis déficits seriam resultantes do efeito do uso prolongado da droga.

Contudo, estudos comparando usuários pesados, usuários leves e controles, e usuários pesados com usuários leves, levando em consideração a idade de início de uso, após 28 dias de abstinência, não encontraram diferenças significativas entre os grupos em relação ao funcionamento executivo. Embora não tenham sido encontradas diferenças no desempenho dos sujeitos no WCST, foram encontradas diferenças na tarefa de fluência verbal, que também contém um componente executivo, já que requer a capacidade de organização de estratégias cognitivas para a recuperação de memória semântica.(38)

Em contrapartida, estudo de Bolla et al., ao avaliar três grupos de usuários classificados de acordo com a intensidade de uso em pesados, medianos e leves, após 28 dias de abstinência, encontraram diferenças significativas entre os grupos, com um maior prejuízo entre os usuários pesados em relação ao número de categorias completadas no WCST.

A freqüência e a duração do uso são aspectos extremamente relevantes para tais estudos; porém, muitas vezes são dados pouco confiáveis, já que dependem da integridade da memória e honestidade no relato dos sujeitos.(39) Nos estudos de Pope et al. foi utilizado um limiar de 5.000 exposições para uso pesado, o que é equivalente a fumar ao menos uma vez por dia durante 13 anos. Assim como o efeito agudo difere entre usuários experientes e inexperientes, efeitos de longo prazo variam de acordo com a duração e freqüência de uso. Usuários crônicos parecem apresentar mecanismos neuroadaptativos que compensariam eventuais prejuízos cognitivos,(40) o que é consistente com resultados de estudos de ressonância magnética funcional que demonstraram a ativação de áreas compensatórias durante a realização de tarefas cognitivas.(41-43)

No estudo de Bolla et al., os sujeitos fumavam em média há 4,8 ± 3,1 anos e foram classificados como usuários pesados aqueles que fumavam em média 93,9 baseados por semana ou 13,41 baseados por dia. Esse pode ser considerado um padrão de consumo muito pesado quando é comparado ao consumo de baseados relatado para os diversos estudos, o que pode não refletir o padrão típico de uso da maioria dos usuários de maconha. Isto pode explicar, pelo menos em parte, os resultados positivos do referido estudo.

Aparentemente, os sujeitos avaliados no estudo conduzido por Lyon et al. se aproximam mais dos usuários de maconha relatados nos estudos citados no que se refere ao padrão de consumo. Porém, não foram encontradas diferenças em relação às FE no estudo conduzido com 54 pares de gêmeos discordantes para o uso de maconha. Havia se passado um período médio de 20 anos em que não faziam uso diário e ao menos um ano desde o último episódio de uso. Como apenas metade dos pares de gêmeos identificados participou do estudo, é possível que o estudo tenha sido influenciado por um viés de seleção, já que os indivíduos com funcionamento cognitivo comprometido poderiam encontrar maior dificuldade e estar menos motivados para participar do estudo. Alternativamente, este resultado pode indicar a ausência de efeitos do uso prolongado da maconha nas habilidades cognitivas destes usuários.

O prejuízo do funcionamento executivo em usuários de maconha parece mais evidente em observações clínicas; porém, os achados dos poucos estudos sistematizados ainda se mostram pouco consistentes. Além das diferentes limitações metodológicas previamente discutidas, é possível que, por se tratarem de déficits sutis, estes não se tornem evidentes quando do exame de pequenas amostras em condições laboratoriais. Ainda, grande parte dos estudos não teve como objetivo principal a avaliação do funcionamento executivo.

Conclusões

Nos estudos de efeito agudo, foram encontrados déficits no controle inibitório e no planejamento, parecendo haver uma relação entre dose ingerida e aumento de comportamentos impulsivos em sujeitos que faziam uso leve da maconha. Já nos estudos de efeito do uso crônico da maconha, os déficits encontrados dizem respeito à capacidade de abstração, formação de conceitos e flexibilidade mental. Apesar de controvérsias, déficits persistentes no funcionamento executivo parecem estar presentes ao menos em um subgrupo de usuários crônicos após 28 dias de abstinência.

Existem ainda muitas questões não respondidas a respeito dos efeitos do uso crônico da maconha e da reversibilidade ou não dos déficits. As dificuldades para responder a estas perguntas estão ligadas à escassez de pesquisas, sobretudo a respeito do funcionamento executivo desse tipo de população, e às inúmeras diferenças entre os estudos existentes no que concerne ao tamanho da amostra, intensidade e duração do uso da droga, os testes neuropsicológicos utilizados e o período de abstinência. Além disso, nenhum dos estudos descritos avaliou todos os domínios das FE.

A proposta de estudos longitudinais avaliando a melhoria ou o declínio do funcionamento executivo em usuários de maconha seria especialmente elucidativa no que se refere às questões etiológicas no comportamento de drogadição.

Estudos futuros devem priorizar a avaliação das FE em seus diferentes aspectos, a partir de uma criteriosa seleção de testes padronizados para a comunidade em questão, utilizando desenhos de estudos mais apropriados assim como técnicas de neuroimagem estrutural e funcional, que possam, por meio de uma convergência de achados, auxiliar na melhor compreensão das conseqüências deletérias do uso crônico da maconha e suas repercussões no tratamento.

Referências

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Correspondência

Priscila Previato de Almeida

Rua Dr. Bacelar, 334

04023-001 São Paulo, SP, Brasil

Fone/Fax: (55 11) 5084-7060

E-mail: priscilapreviato@yahoo.com.br

Submetido: 29 Outubro 2007

Aceito: 17 Janeiro 2008

Financiamento: Bolsa de Mestrado Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Conflito de interesses: Inexistente

O trabalho faz parte da dissertação de mestrado da primeira autora.

© 2008 Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1

04039-032 São Paulo SP Brazil

Tel.: +55 11 5081-6799

Fax: +55 11 5579-6210

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