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O Vira-Lata E Os Maconheiros


Bas

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O vira-lata e os maconheiros

BOTECO SUJO

— Vou te contar. Tem muita delegacia por aí em que aquele aquele cachorro vira-lata que fica na porta é o único do distrito que não cheira.

Ouvi uma vez de um investigador da zona leste, isso há uns oito anos, quando eu trampava de repórter da madrugada. Não era uma confidência, o segredo sussurrado de uma fonte de longa data. O tira havia acabado de me conhecer e falou isso diante de outros jornalistas. De boa. E ninguém se espantou. Ele não dizia nenhuma novidade.

Eu já estava me dando conta conta de que, quando o assunto era droga, policiais e jornalistas viviam de fazer um teatrinho tosco encenado para acalentar a hipocrisia geral. Era sempre a mesma coisa. Os policiais ligavam para as redações: olha, apreendemos centenas de quilos, prendemos traficantes perigosos, estão aqui à disposição de vocês. Repórteres e fotógrafos iam lá, tiravam fotos da droga apreendida e do mala algemado, entrevistavam os policiais. Todo mundo sabia que aquela apreensão não mudaria nada, que as biqueiras continuariam a funcionar nos mesmos lugares com as mesmas mercadorias, mas, porra, era um teatrinho. Os policiais fingiam que estavam combatendo as drogas e a gente fingia que aquilo era notícia. E a gente ainda aproveitava para fumar um beque no carro a caminho da redação. Eu pessoalmente evitava fazer isso antes de escrever, porque sou um maconheiro fracassado, do tipo que vira um inútil e acaba desabando adormecido sobre a mesa minutos após a primeira tragada. Mas conheço gente que fuma todo dia e consegue trabalhar de boa. Como também tem gente que é capaz de vez ou outra praticar um caratê colombiano e levar vida com emprego, família e todos os opcionais. Se você vive no mundo real, também conhece alguém assim. O problema é que o mundo real não parece ter muito espaço nessa discussão.

Para mim, é inacreditável ver os policiais do governador Geraldo Alckmin distribuindo porrada, bombas e gás lacrimogêneo nos manifestantes que ousaram pedir a liberação da maconha. Um absurdo que começou na decisão sem-pé-nem-cabeça de um desembargador, Teodomiro Mendez, para quem defender mudanças na lei e cometer um crime é a mesma coisa, e terminou por deixar a cargo de um grupo de policiais militares, loucos para dar porrada, decidir o que é ou não aceitável nos termos da liberdade de expressão. Será que agora Fernando Henrique Cardoso (tão tucano quanto o governador que jogou o Choque contra os maconheiros desarmados), na próxima em vez em que resolver dar uma entrevista defendendo a liberação da maconha, corre o risco de ver um PM entrar no seu apartamento em Higienópolis jogando spray de pimenta na sua cara e berrando “MÃO NA CABEÇA, SOCIÓLOGO VAGABUNDO”?

Eu me pergunto quantos dos policiais que se atracaram com os manifestantes da Marcha da Maconha já não fumaram, cheiraram ou encheram a cara — afinal, embora legalizado, o álcool é a mais prejudicial das drogas. Ah, isso não importa. O que vale é a encenação.

Isso me lembra de um antigo colega, peça rara, jornalista maconheiro como poucos. Vamos chamá-lo de Scooby (a eterna larica e a mania de ver fantasmas daquele cachorro nunca me enganaram). Pois Scooby, que além de maconheiro era bandeiroso, um dia foi pego quando um comando da polícia resolveu revistar o carro da reportagem em que ele voltava de uma pauta. (Polícia não costuma revistar carro de reportagem, mas Scooby deu o azar de estar num dos táxis alugados pela empresa, justamente daqueles que circulavam sem o logotipo do jornal.) Scooby estava com tudo em cima, como sempre, e rodou. Levado ao Distrito Policial, ouviu um tremendo sermão da delegada de plantão sobre o perigo das drogas e o bom exemplo que a sociedade esperava de um jornalista como ele. Disse que ia autuá-lo por porte de drogas. Scooby implorou, chorou, pediu por todos os deuses e santos diante da delegada: ela não podia fazer isso com ele, ia destruir a sua vida de jornalista. No final, sabe-se lá se por pena ou para evitar dores de cabeça, a delegada cedeu. Registrou um boletim de ocorrência de encontro de entorpecentes, sem mencionar indiciados (ficou como se a droga tivesse sido encontrada no piso do táxi, sendo impossível determinar qual passageiro a teria deixado ali etc.), e liberou Scooby.

A história ficou famosa no jornal, graças à língua grande dos motoristas, que em matéria de fofoca conseguem concorrer com os mais maledicentes dos jornalistas. Scooby foi muito zoado. Mas nem por isso largou as baforadas diárias de maconha. Talvez tenha se tornado mais cuidadoso, ou nem isso.

Anos depois, outro dia vejo na tevê uma daquelas “reportagens-bomba” que se propõem a denunciar fatos terríveis. No caso, a matéria denunciava o consumo de maconha nos estádios. E dá-lhe imagens com câmera escondida mostrando torcedores nos alambrados fumando seus baseados antes, durante e depois dos jogos. Matéria enorme, vários minutos de maconheiros flagrados em seus delitos. Indignado, repetindo muito a palavra ABSURDO, o apresentador vomita adjetivos e advérbios sobre as drogas que matam e como quem consome alimenta os crimes do tráfico e...

— Vou aproveitar e chamar aqui no palco o produtor dessa reportagem. Venha cá, conta o que você viu, Scooby.

E entra Scooby, bem mais na estica do que nos tempos de jornal, fazendo cara de Charles Bronson e engrossando a voz para tentar entrar no mesmo clima de indignação do apresentador:

— É isso mesmo, Marcelo. É um ABSURDO. Os torcedores ali fumam MACONHA em plena luz do dia, ao ar livre, na frente de todo mundo. Na frente de CRIANÇAS. E fumando MA-CO-NHA...

Foda-se se a maconha faz muito menos mal do que outras drogas legalizadas. Foda-se se a sua proibição, como a de outras substâncias, tenha sido historicamente motivada por preconceitos sociais e interesses econômicos, como qualquer um que pesquisar um pouco o assunto logo vai descobrir. Foda-se, enfim, a própria realidade. Quem liga para o mundo real? O importante é encenar direito o velho teatrinho de sempre, para que a opinião pública continue a dormir de conchinha com suas velhas certezas, tão fiéis e inabaláveis.

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  • Usuário Growroom

Será que agora Fernando Henrique Cardoso (tão tucano quanto o governador que jogou o Choque contra os maconheiros desarmados), na próxima em vez em que resolver dar uma entrevista defendendo a liberação da maconha, corre o risco de ver um PM entrar no seu apartamento em Higienópolis jogando spray de pimenta na sua cara e berrando “MÃO NA CABEÇA, SOCIÓLOGO VAGABUNDO”?

falou bonito hein , vamos mandar esse recadinho pro nosso paraninfo

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  • Usuário Growroom

Isso é o que eu chamo de uma crônica de verdade.

Faltou só contar o nome do santo... hehehe

O vira-lata e os maconheiros

BOTECO SUJO

— Vou te contar. Tem muita delegacia por aí em que aquele aquele cachorro vira-lata que fica na porta é o único do distrito que não cheira.

Ouvi uma vez de um investigador da zona leste, isso há uns oito anos, quando eu trampava de repórter da madrugada. Não era uma confidência, o segredo sussurrado de uma fonte de longa data. O tira havia acabado de me conhecer e falou isso diante de outros jornalistas. De boa. E ninguém se espantou. Ele não dizia nenhuma novidade.

Eu já estava me dando conta conta de que, quando o assunto era droga, policiais e jornalistas viviam de fazer um teatrinho tosco encenado para acalentar a hipocrisia geral. Era sempre a mesma coisa. Os policiais ligavam para as redações: olha, apreendemos centenas de quilos, prendemos traficantes perigosos, estão aqui à disposição de vocês. Repórteres e fotógrafos iam lá, tiravam fotos da droga apreendida e do mala algemado, entrevistavam os policiais. Todo mundo sabia que aquela apreensão não mudaria nada, que as biqueiras continuariam a funcionar nos mesmos lugares com as mesmas mercadorias, mas, porra, era um teatrinho. Os policiais fingiam que estavam combatendo as drogas e a gente fingia que aquilo era notícia. E a gente ainda aproveitava para fumar um beque no carro a caminho da redação. Eu pessoalmente evitava fazer isso antes de escrever, porque sou um maconheiro fracassado, do tipo que vira um inútil e acaba desabando adormecido sobre a mesa minutos após a primeira tragada. Mas conheço gente que fuma todo dia e consegue trabalhar de boa. Como também tem gente que é capaz de vez ou outra praticar um caratê colombiano e levar vida com emprego, família e todos os opcionais. Se você vive no mundo real, também conhece alguém assim. O problema é que o mundo real não parece ter muito espaço nessa discussão.

Para mim, é inacreditável ver os policiais do governador Geraldo Alckmin distribuindo porrada, bombas e gás lacrimogêneo nos manifestantes que ousaram pedir a liberação da maconha. Um absurdo que começou na decisão sem-pé-nem-cabeça de um desembargador, Teodomiro Mendez, para quem defender mudanças na lei e cometer um crime é a mesma coisa, e terminou por deixar a cargo de um grupo de policiais militares, loucos para dar porrada, decidir o que é ou não aceitável nos termos da liberdade de expressão. Será que agora Fernando Henrique Cardoso (tão tucano quanto o governador que jogou o Choque contra os maconheiros desarmados), na próxima em vez em que resolver dar uma entrevista defendendo a liberação da maconha, corre o risco de ver um PM entrar no seu apartamento em Higienópolis jogando spray de pimenta na sua cara e berrando “MÃO NA CABEÇA, SOCIÓLOGO VAGABUNDO”?

Eu me pergunto quantos dos policiais que se atracaram com os manifestantes da Marcha da Maconha já não fumaram, cheiraram ou encheram a cara — afinal, embora legalizado, o álcool é a mais prejudicial das drogas. Ah, isso não importa. O que vale é a encenação.

Isso me lembra de um antigo colega, peça rara, jornalista maconheiro como poucos. Vamos chamá-lo de Scooby (a eterna larica e a mania de ver fantasmas daquele cachorro nunca me enganaram). Pois Scooby, que além de maconheiro era bandeiroso, um dia foi pego quando um comando da polícia resolveu revistar o carro da reportagem em que ele voltava de uma pauta. (Polícia não costuma revistar carro de reportagem, mas Scooby deu o azar de estar num dos táxis alugados pela empresa, justamente daqueles que circulavam sem o logotipo do jornal.) Scooby estava com tudo em cima, como sempre, e rodou. Levado ao Distrito Policial, ouviu um tremendo sermão da delegada de plantão sobre o perigo das drogas e o bom exemplo que a sociedade esperava de um jornalista como ele. Disse que ia autuá-lo por porte de drogas. Scooby implorou, chorou, pediu por todos os deuses e santos diante da delegada: ela não podia fazer isso com ele, ia destruir a sua vida de jornalista. No final, sabe-se lá se por pena ou para evitar dores de cabeça, a delegada cedeu. Registrou um boletim de ocorrência de encontro de entorpecentes, sem mencionar indiciados (ficou como se a droga tivesse sido encontrada no piso do táxi, sendo impossível determinar qual passageiro a teria deixado ali etc.), e liberou Scooby.

A história ficou famosa no jornal, graças à língua grande dos motoristas, que em matéria de fofoca conseguem concorrer com os mais maledicentes dos jornalistas. Scooby foi muito zoado. Mas nem por isso largou as baforadas diárias de maconha. Talvez tenha se tornado mais cuidadoso, ou nem isso.

Anos depois, outro dia vejo na tevê uma daquelas “reportagens-bomba” que se propõem a denunciar fatos terríveis. No caso, a matéria denunciava o consumo de maconha nos estádios. E dá-lhe imagens com câmera escondida mostrando torcedores nos alambrados fumando seus baseados antes, durante e depois dos jogos. Matéria enorme, vários minutos de maconheiros flagrados em seus delitos. Indignado, repetindo muito a palavra ABSURDO, o apresentador vomita adjetivos e advérbios sobre as drogas que matam e como quem consome alimenta os crimes do tráfico e...

— Vou aproveitar e chamar aqui no palco o produtor dessa reportagem. Venha cá, conta o que você viu, Scooby.

E entra Scooby, bem mais na estica do que nos tempos de jornal, fazendo cara de Charles Bronson e engrossando a voz para tentar entrar no mesmo clima de indignação do apresentador:

— É isso mesmo, Marcelo. É um ABSURDO. Os torcedores ali fumam MACONHA em plena luz do dia, ao ar livre, na frente de todo mundo. Na frente de CRIANÇAS. E fumando MA-CO-NHA...

Foda-se se a maconha faz muito menos mal do que outras drogas legalizadas. Foda-se se a sua proibição, como a de outras substâncias, tenha sido historicamente motivada por preconceitos sociais e interesses econômicos, como qualquer um que pesquisar um pouco o assunto logo vai descobrir. Foda-se, enfim, a própria realidade. Quem liga para o mundo real? O importante é encenar direito o velho teatrinho de sempre, para que a opinião pública continue a dormir de conchinha com suas velhas certezas, tão fiéis e inabaláveis.

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  • Usuário Growroom

Concordo em genero , numero e grau!!!!!!!!!!!!!!!!!!Agora me da raiva é da classe artistica que usa p caralh....e ninguem poe a cara, so o Tico teve peito e foi , o resto chega a dar nojo!!!!!!!!!!!!!!!!Cade esses atores e atrizes que poderiam aproveitar e usar a midia ao nosso favor???!!!!!!!!!!!!!Aqui nao tem ...

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