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Maconha: “A Marcha Desautorizou As Decisões Da Justiça”


Bonsai Roots

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  • Usuário Growroom

Antropólogo Maurício Fiore afirma que o acordo inédito entre a Polícia Militar e os manifestantes pró-maconha significou desobediência do Estado ao judiciário paulista.

Episódio 1: poucas horas antes do início do ato, o desembargador Teodomiro Mendez, do Tribunal de Justiça de São Paulo, acata um pedido do Ministério Público e proíbe a realização da Marcha da Maconha em São Paulo, que há meses estava programada para o dia 21 de maio. Os organizadores do evento firmam então um acordo com a Polícia Militar: escondem os cartazes que fazem alusão à droga e saem caminhando na avenida Paulista por uma causa improvisada, a liberdade de expressão. Minutos após o início da passeata, a polícia decide reprimir os cerca de 1.000 manifestantes com tiros de borracha, bombas de efeito moral e sprays que provocam irritação nos olhos. Muitos correm, alguns são feridos e outros terminam presos. As imagens dos tiros, das bombas e do corre-corre inundam os telejornais.

Episódio 2: poucas horas depois da passeata fracassada, os manifestantes que correram da polícia começam a convocar pelo Twitter uma nova marcha para o sábado seguinte, essa em protesto contra a violência policial. Horas antes desse segundo ato, o desembargador Paulo Rossi, do mesmo TJ, também determina a proibição. Contra a decisão da Justiça, porém, a Marcha pela Liberdade ocorre tranquilamente. Os policiais, que pela decisão judicial deveriam impedir a passeata, apenas observaram os cerca de 4.000 manifestantes que desfilaram pela Paulista no último sábado.

Para o antropólogo Maurício Fiore, que participou das duas marchas, manifestantes e policiais fizeram um acordo inédito de desobediência à ordem judicial. Para ele, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça foram desautorizados pelos fatos. Segundo Fiore, esse tipo de acerto só foi possível graças à decisão política do governador Geraldo Alckmin. Fiore é pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) e autor do livro Uso de Drogas: Controvérsias médicas e debate público. Nesta entrevista, ele conta os bastidores desse acordo, relata o que presenciou nos dois atos e argumenta pelo fim da proibição da maconha e outras drogas:

ÉPOCA - As duas marchas estavam proibidas pela Justiça. Por que só a primeira foi reprimida?

Fiore – Houve uma decisão política do governador (Geraldo Alckmin) de evitar as cenas absurdas do primeiro sábado. Acho que ele percebeu que a proibição da marcha era um tiro pela culatra, causava efeito inverso, dava mais atenção para o tema que o contrário. Foi também uma decisão para não ter desgaste. E vou acreditar até no bom senso do governante, ao perceber que era uma decisão absurda que fere a Constituição. Foi um ato de obediência à Constituição e, ao mesmo tempo, desobediência ao judiciário Estadual.

ÉPOCA – Desobediência do governador e dos manifestantes?

Fiore – Sim. Os manifestantes estavam lá desobedecendo. Então, deveriam ser reprimidos. A decisão do desembargador Paulo Rossi era muito séria. Ele disse que a manifestação do sábado passado (a Marcha pela Liberdade) era apenas uma troca de palavras (para evitar a expressão “Marcha da Maconha”). Ele proibiu uma manifestação sob a alegação de que ela tinha um objetivo diferente do que aquele que efetivamente tinha. Então, houve uma desobediência do Estado, que disse “não, essa marcha não é a marcha da maconha e ela vai acontecer”

ÉPOCA – Isso desautoriza a Justiça?

Fiore – Eu acho, desautoriza. A marcha desautorizou, pelo menos, as decisões da Justiça. Desautorizou o Paulo Rossi e o Teodomiro Mendes. Foi uma desobediência mesmo. Não tinha nenhuma ordem (de tribunal) superior para permitir a marcha.

ÉPOCA – Na sua avaliação, por que ocorreu aquela confusão na primeira marcha, a do dia 21?

Fiore – O primeiro motivo foi a proibição da Justiça. Pelo quarto ano seguido, o Ministério Público, na véspera da marcha, pede a proibição por meio de alguns promotores. E o Tribunal de Justiça, também pelo quarto ano, na sexta-feira à noite, proíbe o evento. Isso cria uma situação ruim pra polícia, porque ela é convocada a não permitir a marcha. Dessa vez, duas mudanças foram importantes. A primeira é que, antes, o encontro ocorria no Ibirapuera, não na Paulista. A segunda é que, dessa vez, houve uma negociação com a polícia para que a marcha ocorresse com outro propósito, sem incitar maconha ou fazer referência à maconha. Estava tudo bem, até os policiais interromperem o trânsito. Eles estavam com um aparato muito grande e acabaram, de certa forma, convidando os manifestantes a ocuparem a pista inteira da Paulista e marcharem em direção à rua da Consolação. Depois disso, sem negociar, e sem qualquer tipo de aviso, a Tropa de Choque chegou e aí foi aquilo que você viu. Chegaram pra dispersar as pessoas na marra.

ÉPOCA – A polícia alegou que houve apologia e que, mesmo após a negociação, algumas pessoas ainda incitavam o uso da maconha

Fiore – Sim, de fato tinha. O movimento não conseguiu controlar os gritos. Os símbolos estavam apagados, mas é muito difícil você controlar os gritos. Tinha mais de mil pessoas ali. Nesse ponto, eu nem culpo tanto a polícia. Ela pode permitir, mas ela tinha a decisão judicial e fica numa situação complicada de reprimir qualquer grito. Como você reprime um grito? É difícil. Entendo que ela tem um pouco de razão em dizer que algumas pessoas continuaram gritando maconha, mas não justifica aquele ato todo de violência. Realmente foi muito violento. Eu estava lá e foi bem pesado.

ÉPOCA – Aconteceu algo contigo ou com algum conhecido seu?

Fiore – Eu cheguei a ser prensado numa grade no (cinema) Belas Artes, mas tive três amigos feridos, um deles com uma gravidade um pouco maior por conta de um ferimento de bala de borracha na cabeça. Os outros dois foram feridos por estilhaços de bomba. Também vi gente que talvez tenha se machucado muito mais ali. Isso não foi levantado depois. Na hora, vi pessoas cruzando a Paulista, que não estavam percebendo o que estava acontecendo, e de repente elas se viam no meio de manifestantes e da Tropa de Choque. E elas iam cruzando porque o trânsito não podia ser interrompido. O trânsito foi fechado por trás, mas não fecharam as transversais. E aí você via as pessoas em pânico, dentro dos carros, com criança, sem saber o que fazer, e com bombas explodindo muito perto delas. Para os manifestantes, foi horrível. Para as outras pessoas que estava por lá, também.

ÉPOCA – O desembargador justificou a proibição da primeira marcha falando sobre “possíveis danos à coletividade”, inclusive com crianças e adolescentes que eventualmente estivessem passando pelo local.

Fiore - Pois é, o cara proíbe pela ordem, mas o que a decisão dele gera é mais desordem, mais caos e, no fim das contas, mais repercussão.

ÉPOCA –- Outra alegação é sobre o caráter de apologia da maconha durante essas marchas.

Fiore – O desembargador alegou isso com o intuito de proibir a marcha, considerando que ela estaria incentivando o consumo público e coletivo de maconha, sendo que isso não é verdade, mesmo. A organização da marcha deixa claro, desde o início, por meio de avisos enormes: “Não portar, nem consumir substâncias psicoativas no momento da passeata”. Tem gente que descumpre? Tem. Tem gente que fuma maconha. No Ibirapuera isso não acontecia, mas na Paulista, talvez até pelo caos, alguns consumiram. Minha interpretação é a de que se ele (Teodomiro Mendez) quisesse de fato coibir, ele permitiria a marcha, que é o direito democrático, mas deixaria expresso, por exemplo, uma vigilância da Polícia Militar para que o consumo não acontecesse. Isso, inclusive, daria respaldo para os organizadores.

ÉPOCA – Teve algum tipo de diálogo com o Ministério Público antes da marcha?

Fiore – Não. Eu não sou da organização, mas vou falar um pouco do que sei: o Ministério Público nunca propõe um diálogo com os organizadores da marcha. No ano passado houve uma tentativa de diálogo lá no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, quando foi convidado um promotor que já tinha pedido a proibição de outra marcha. No fim, acabou indo até um promotor diferente do esperado, ele debateu um pouco, até disse que entendeu as ponderações, mas não avisou se iria pedir a proibição. No fim, acabou pedindo do mesmo jeito. Então o Ministério Público não está disposto a conversar e não estabeleceu nenhum contato com a organização da marcha para pedir algumas coisas, negociar. Eles não estabelecem o diálogo e partem do princípio de que é apologia do tráfico e do consumo. Isso é muito ruim.

ÉPOCA – Como avalia o papel do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que faz palestras, discursos e, agora, participou até de um documentário em defesa do uso regulado da maconha?

Fiore – A sensação é que o debate sobre drogas só pode ocorrer em alguns espaços e para poucas pessoas. Na academia, no Congresso e em alguns fóruns climatizados e distantes da rua você pode discutir. É como se houvesse algum tema que o povo não pudesse discutir nas ruas. É uma visão autoritária e elitista de democracia: determinadas questões só podem ser discutidas por especialistas ou políticos.

ÉPOCA – Por que legalizar o uso de drogas e, mais especificamente, da maconha?

Fiore – São duas grandes objeções à proibição das drogas. Primeiro porque é uma ingerência indevida do Estado na autonomia dos indivíduos adultos no uso de seu próprio corpo. Segundo porque aquilo que a proibição busca proteger -a saúde coletiva, o bem-estar, a ordem- não ocorre. Na verdade, a proibição acaba produzindo o contrário: a violência, a corrupção. A proibição sujeita as pessoas ao mercado ilícito; e sujeita a polícia à corrupção e ao confronto. No caso da maconha, é uma droga cujas características de consumo e os padrões de consumo já possibilitariam a regulação da produção e do comércio, da forma como já há em outros países. É uma droga em que não há letalidade. Ela tem um padrão de consumo razoavelmente controlado, ainda que possa ter compulsão e trazer alguns problemas. Mas são problemas menores que outras drogas legais, como álcool. Então já é possível estabelecer esse controle agora.

ÉPOCA – E as outras drogas?

Fiore – No plano ideal, defendo o fim da proibição para todas as substâncias. Mas ao longo do tempo. A maconha seria a ponta de lança da mudança da política de drogas, pois com a maconha já dá para fazer. Seria o primeiro experimento para tentar educar a sociedade para lidar com as substâncias de uma maneira mais saudável. Não quer dizer que não teremos problemas. Sempre vai ter problemas, de qualquer jeito. Mas não teríamos todo o dano causado pela proibição. Sobre as outras drogas, as formas de regulação precisam ser específicas para cada tipo de substância. É isso que acabaria, de fato, com o tráfico.

Matheus Paggi e Ricardo Mendonça

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI237739-15228,00-MACONHA+A+MARCHA+DESAUTORIZOU+AS+DECISOES+DA+JUSTICA.html

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