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Mesa “Drogas E Cidadania”


bukergooney

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  • Usuário Growroom

Do conceito antropológico de drogas: drogas são culturais, não naturais ou artificiais. E se

são culturais, é porque se dão nas relações; assim também sendo a lógica do preconceito. O pré-

conceito, conceito sobre o mundo do outro: raramente falamos das drogas que usamos.

De imediato trago minha fala para o lugar das drogas de modo geral, então quando eu

falar a palavra drogas, lembremos de fármacos, lícitas ou ilícitas. Essa é uma posição saudável

porque as leis são reflexos de questões históricas - que sim, são concretas, estão presentes no

dia a dia; mas isso quer dizer que podemos e devemos desnaturalizá-las. É bom podermos

lembrar que as leis não são naturais, foram inventadas. É bom poder lembrar que a divisão entre

lícitas, ilícitas ou fármacos é arbitrária. A lista de drogas permitidas podia ser outra, e podia o

café ser proibido, etc.

Mas na minha opinião, eu acho que também é arbitrária a ideia de que existe um uso que

seja medicinal ou terapêutico, ou outros recreativos (recreativos aliás me lembra recreio), ou

então a ideia de uso abusivo, problemático. Pra antropologia e para as ciências sociais em geral

talvez essas palavras não nos ajudem a pensar sobre drogas, e portanto não façam muito

sentido. Principalmente se quisermos falar em cidadania. Talvez essas palavras e essas leis, como

muita gente desconfia, sirvam mais para contribuir com os processos de tutela. Quanto às

palavras, sabemos haver uma questão importante na luta antimanicomial e nos processos da

Reforma Psiquiátrica quanto aos poderes dos diagnósticos, ou seja, dos conceitos científicos que

definem, como diz Foucault, o conceito que define é o mesmo que aprisiona. Mas não vamos

entrar no assunto sobre diagnósticos, que na minha opinião já seria uma outra coisa; sendo bom

ressaltar que não parece saudável demonizarmos isso também, diagnóstico pra mim é uma

ferramenta de trabalho, pra pensar ou fazer coisas, que como qualquer outra ferramenta, deve

ser vista e usada caso a caso.

A questão principal da qual eu quero falar aqui, e que na minha opinião se encontra na

raiz do debate entre drogas e cidadania, é um mecanismo sutil que permite que a tutela

aconteça. Sobre como nomearmos esse mecanismo, ao pesquisar uns artigos e escrever esta fala

não consegui achar um jeito melhor, mas o que permite que a tutela aconteça é como um

mecanismo de captura da subjetividade das pessoas que usam drogas.

Subjetividade, ou intersubjetividade podem ser também palavrões, ou ideias muito

amplas. Mas podemos pensar na antropologia como ciência que estuda relações intersubjetivas.

Um antropólogo norte-americano, Thomas Csordas, diz que o corpo não é um objeto a ser

estudado para ali se pensar a cultura; que o corpo seria o sujeito da cultura. Na verdade isso

replica o Howard Becker, que já na década de 50 foi fazer umas pesquisas entre pessoas que

fumavam maconha. Ele tava tentando fornecer outras vias de reflexão sobre o assunto que não

aquelas que ele considerava como psicologizantes, o que talvez fale do contexto de produção de

conhecimento, e de demanda por um conhecimento mais instrumental, nas disciplinas como um

todo; que era definir, agrupar e intervir sobre comportamentos sociais, engendrando em

definições fechadas... Mas no estudo dele, Tornando-se um usuário de maconha (do livro

Outsiders), ele permite pensarmos como se aprende a perceber os efeitos também diante de

técnicas corporais de pessoas que usam há mais tempo a maconha, e então que se aprende a ser

maconheiro, inclusive a diferenciar os efeitos, num processo que é intersubjetivo, que é uma

troca entre pessoas. Então para pensar conceitos sobre os usos do corpo, e usar de novo um

palavrão, o Thomas Csordas fala sobre uma elaboração cultural do engajamento sensório...

Em cima dos eixos do seminário, preparei uma fala diante de três momentos que tem me

afetado e que eu acho essencial dividir aqui antes:

1) O primeiro momento é o das impressões sobre as marchas da maconha pelo país, de

um modo geral. Está havendo um crescimento do movimento, nos diversos amadurecimentos do

debate sobre política de drogas, e isso não é quando as pessoas convidam maconheiros(as) pra

falar num programa de rádio ou tevê. Acho que o amadurecimento possível já é interno, ou seja,

já é de diversidade de opiniões dentro do movimento. Em certa medida, acontece é que

milhares de pessoas fumam maconha, e agora que elas tem se conhecido e organizado

politicamente, estão surgindo as nuances que não são só as de torcer por times de futebol

diferentes, são também as diferenças de entendimento político, ou de quais projetos de cidade

se defende; ou se votamos, em quem é que votamos; que apoios desejamos compôr, etc... E

estas diferenças de linhas de opinião e diversas correntes “puxam” a ideia da legalização para

diversas formas de legalizar. Este é um momento que vivemos e que afeta minha fala.

2) Outra coisa que permeia meus comentários são algumas impressões iniciais enquanto

pesquisador que agora no mestrado acompanha uma pesquisa chamada GAM: Gestão Autônoma

de Medicamentos. Ela já existe há uns cinco anos, e têm reunido grupos de pessoas que acessam

serviços em saúde mental, geralmente os substitutivos, e dialogando, em rodas, sobre enfim o

que diabos se está prescrevendo a estas pessoas, o que são estas prescrições, e o que isso pode

dizer de um trabalho em saúde, e até de uma política de saúde, comprometida com que as

pessoas tenham um aprendizado através das drogas. Reuniram-se diversas contribuições em um

Guia, que é como um cartão individual com várias perguntas interessantes, boas para pensar.

Pude acompanhar um grupo onde pessoas sentam-se em roda pra discutir suas relações com os

fármacos prescritos a elas, e uma das coisas que tem me implicado é que diante da primeira

versão do guia, senti também vontade de responder, testar, e também no grupo senti vontade de

falar sobre os meus próprios usos - porque pesquisador também usa drogas - e ver de que jeito

isso pode ser trabalhado, etc.

3) O terceiro momento que afeta minha fala é que participando desses grupos me senti

mais interessado nesse debate sobre autonomia e me senti mais feliz, mais à vontade, pra

assimilar umas coisas que me interessavam quando concluí o curso nas Ciências Sociais. Em 2009

protagonizei uma pesquisa de conclusão de curso que foi sobre usos de maconha entre pessoas

vivendo com HIV/aids. E pensando a ideia da autonomia e da saúde. Então, participando dessa

pesquisa no mestrado, dos grupos de usuários falando sobre os fármacos e suas prescrições, pude

dar outros sentidos pra um trabalho que já havia feito.

Pra resumir, essas ideias que tem me afetado, se pensadas em palavras-chave,

aproximariam:

1) Marchas da Maconha = pessoas nas ruas = controle social = cidadania

2) Gestão Autônoma de Medicamentos = trocas de experiências entre pessoas que usam

drogas = aprendizado através das drogas

3) Dicotomia trabalhada no TCC sobre usos de maconha entre pessoas que vivem com

HIV/Aids, quanto as associações diretas... Geralmente associamos usos de drogas prescritas a

autonomia e saúde, e usos proibidos/proscritos a dependência e doença.

Coloco essa rede de significados pra desenhar um pouco as conexões entre as palavras...

Poderiam ser outras conexões também, essas são as que me vem em mente. Mas então, falar de

drogas e cidadania não é só falar sobre como responder a problemas, ou como construir

melhores políticas públicas, é também falar da gente mesmo; podemos todos e todas aqui, neste

exato momento, refletir sobre que lugares as drogas tem em nossas vidas. É este o ponto de

partida que talvez seja o mais interessante. E talvez seja a partir daí que, já visando o debate

nas rodas durante a tarde, nossas contribuições possam ter um lugar mais interessante.

Indo para a fala em si, pensei em trazer cenas de coisas “reais”, que vivenciamos, ou que

poderiam ter acontecido. O que une todas elas são as questões que falam de uma sociedade

que, ao contrário do que parece, não ignora a subjetividade como elemento intrínseco aos

diversos usos de drogas. Muito mais do que ignorada, a subjetividade das pessoas parece sofrer

processos de domesticação que agregam vários interesses distintos. Com essa ideia em mente,

vamos a elas.

CENA 1 – SOBRE AS VERTENTES RADICAIS DO CRISTIANISMO E A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

Li num livro do historiador Henrique Carneiro que, na época entre Renascenças e as

grandes navegações, pessoas curiosas e metódicas observavam o mundo e escreviam numa lista

suas riquezas, diferenciando entre as coisas, gerando a necessidade de algumas palavras novas

em seus vocabulários. Essas enciclopédias traziam relatos de experiências e estudos

aprofundados, ensaiando diálogos e enfrentamentos com os textos da cosmologia cristã

tradicional. Usos de drogas antes pecaminosos começavam a ser reinvindicados como um direito:

o direito à utilização do ópio como anestésico, por exemplo, foi possível de pactuar. Os usos de

alucinógenos se realizavam em rituais diversos que pareciam fugir das enciclopédias, porque as

pessoas talvez prefiram mais sentir do que julgar. Se divertir ou entrar para a história, são

direitos que temos. O anestésico pareceu ter uma função coletiva que reuniu demandas nas

situações mais críticas, visíveis, como em cirurgias, por exemplo. O alucinógeno, que só irá

possibilitar aprendizados para as próprias pessoas que usam, não tem função alguma a ser

definida em uma enciclopédia, a não ser entre dicotomias entre certo e errado, contrários ou

favoráveis, lícitos ou ilícitos. O corpo, sujeito da cultura, é atravessado por olhares de mundo

que não parecem desejar um consenso.

CENA 2 - SOBRE AS MARCHAS

2007 depois de Cristo, várias pessoas no mundo desejam ir às ruas para falar sobre

drogas. Viram na tevê imagens de conflitos e bombas de gás lacrimogêneo. É interessante

observar a intolerância diante de uma caminhada pacífica de pessoas alegres, entorpecidas ou

não, vinda da parte de grupos midiáticos. Os mesmos grupos são os que fazem o serviço de

marketing social da repressão para tornar mais aceitável a ideologia antidrogas entre leitores de

seus jornais – repetindo de outro modo, tornar mais aceitável a ideologia antidrogas tal como se

fosse mais um produto à venda e que precisa ser maquiado. A ideologia antidrogas maquiada em

artigos e opiniões ditas neutras são peças tão distantes da realidade quanto modelos em

photoshop. Diante da Marcha da Maconha, os batalhões agendam algumas centenas de policiais e

o comando de policiamento da capital comunica aos manifestantes que haverá repressão diante

de quaisquer signos, gestos ou desenhos que sejam interpretados como atos de apologia - e

fazem questão de lembrar que, provavelmente, todas as coisas serão interpretadas como atos de

apologia. Os manifestantes articulam-se com juristas, advogados, e juntos ingressam com um

pedido para que o Estado não cometa violências sobre as pessoas que desejam dar sua opinião

sobre a guerra às drogas. O pedido deles se chama Habeas Corpus, ou em uma tradução livre,

tenha o seu corpo. O movimento social comemora o fato de que o Estado e o MP tiveram

tolerância em relação a existência das suas ideias na sociedade. O cientista político Thiago

Rodrigues nos lembra que a tolerância também é uma relação de poder. As marchas acontecem e

a sociedade aprende a duras penas a olhar constrangida para o seu silêncio. Marcos Rolim nos diz

que mais do que tolerar, é preciso desejar a diferença.

CENA 3 - SOBRE A IDEOLOGIA ANTIDROGAS (MELHORES MOMENTOS)

A reportagem

A repórter bem maquiada vai às ruas para, com a ajuda de uma câmera e um microfone,

fazer uma reportagem com a opinião do público sobre “A” legalização. As perguntas são

fechadas, já incluem resposta e só admitem duas respostas: contrária ou favorável. As pessoas

que argumentaram algo fora da dicotomia contrário ou favorável não foram mostradas aos

telespectadores, na edição final.

O ter opinião sobre tudo

Uma pessoa é abordada por uma repórter bem maquiada que lhe pergunta ser contra ou a

favor a liberação das drogas. Antes de responder, em alguns segundos ela olha à sua volta e

diante de uma série de histórias violentadas, cuja complexidade pode até fazer com que ela

tenha medo de entendê-las, esta pessoa poderá se dizer “contra as drogas”. Sua opinião tem

uma coerência inabalável, porque o que ela vê é concreto, existe, e é significado como sendo o

famoso mundo da droga - esse que vira notícia. Por acaso, ela não sabe que as outras notícias

que ela leu também foram construídas assim, fazendo perguntas fechadas a dezenas de pessoas

e selecionando-se cirurgicamente as coisas que devem ou não ser ditas. E as duas ou três coisas

ditas na edição final da reportagem são sempre as moralidades, o debate medíocre, o mundo

dividido entre duas opinões, contrários ou favoráveis, lícitos ou ilícitos.

O que é apologia ao uso indevido de drogas

Se essa ideologia se retro-alimenta e não parece ter um centro de onde emana, não nos

importa tanto. A lógica antidrogas, onde quer que surja, assim espetacularizada; assim

colocando as drogas como causas únicas de grandes males sociais, acaba encarando as drogas

como coisas mais poderosas do que elas realmente são. E porque é cultural, essa lógica

antidrogas não tem a ver só com as drogas que são proibidas, ela está presente quando se fala

em lícitas e também quando se fala em fármacos. Assim esperamos a cura milagrosa na

farmácia, ou acusamos os venenos mortais nas bocas de fumo, e isso é parte de uma mesma

lógica. Essa ideia que entende as drogas como tão poderosas é que deveria ser interpretada

como uma apologia ao uso indevido de drogas. Ninguém parece entender esta como criminosa,

talvez justamente porque nos constitua, com o que passaria a ser uma espécie de cerne da

racionalidade médico-industrial, já que está presente nas famílias, na clínica (seja quando

demandamos cuidado ou quando estamos “do outro lado”)...

CENA 4- SOBRE O CONSTRANGIMENTO DA CLÍNICA DA SAÚDE DIANTE DA AUTONOMIA DO

USUÁRIO

Trago aqui dois relatos verídicos, numa conversa com uma pessoa vivendo com HIV,

contando como era o diálogo com profissionais infectologistas, sobre seus usos de maconha. São

duas conversas, com dois profissionais diferentes. Ao ouvir a conversa que tive com Jonas

(pseudônimo da pessoa entrevistada), convido para que pensemos sobre como a clínica em saúde

pode domesticar um corpo, como mutilar a experiẽncia de viver o corpo, e que posturas

parecem mais interessantes. Aliás essa cena aqui lembra muito outra que estava sendo

comentada na mesa anterior, pelo psicanalista José Escobar, a Cama de Procusto (instrumento de

tortura e execução), que é o impôr de um jeito ou de outro uma só medida e um só lugar para as

coisas.

Primeira conversa: a aula de história

Jonas: Eu falava pra ele da história do baseado, e ele dizia assim: olha, eu prefiro

mil vezes que tu fume o teu baseado, do que tu beba. Beba, quero dizer assim, não

que beba socialmente, mas que tome teu porre, tome lá, vários... Sabe? Bêbado,

que fique dependente do álcool - ele disse pra mim – ou que comece a tomar

boleta. Até antidepressivo, ele disse pra mim aquilo: que o antidepressivo é uma

coisa que é muito legal, um Prozac da vida, etc, mas enquanto tu tá bem na tua

vida, tudo é o Prozac, é tudo maravilhoso, mas no momento que tu não quer mais

saber daquilo, aí... É aquilo, tu vai cair no fundo do poço. E o baseado não, ele me

disse assim, que o baseado é uma planta medicinal, é uma planta que..

Rafael: Ele falou do negócio.

Jonas: Falou do negócio. Falou assim, que era uma planta medicinal, que era uma

planta que já vinha desde as épocas dos índios... Ah, ele me deu uma... Me deu um

histórico, assim...

Segunda conversa: o desabafo

Jonas: Não está sendo tão bom quanto o primeiro.

Rafael: O que é que você acha ruim, assim?

Jonas: Essa já discorda, diz que já fumou baseado...

Rafael: Ah, tu falou a ela que fuma, já.

Jonas: Claro. E ela...

Rafael: Tipo: “doutora, eu fumo”.

Jonas: Fumo. Só que eu acho que ela teve um problema. Acho que por isso que ela

não... Ela disse: “ah, eu também já fumei”, e... Só que eu achei que desencadeou

algum problema, que ela não consegue falar do negócio. Ela não consegue. Tipo:

"ah, eu adoro o cheirinho"... Sabe? Aquelas coisas... Minha médica pergunta pra

mim, como se eu tivesse que saber: “como é que tem muita gente que fuma e que

pode, e que leva sua vida adiante e eu não pude fumar, não pude”?

Para mim, ambas as conversas e posturas aqui relatadas entre médicos infectologistas e

um usuário do SUS poderiam ocorrer também com redutores de danos, manicomiais ou não; ou

psicólogos, antropólogos, astrólogos, ou qualquer outra especialidade que tenha na ética seu

elemento mais interessante. Como mero pesquisador, minha opinião foi a de que o primeiro

médico, embora, como se diz, tenha todo o jeito de quem fuma um, fez um histórico sobre a

maconha em um tom permissivo sobre algo que o paciente já usava, com um tom de palestra

(meio careta). Então diferente do que pensa o Jonas, achei que o médico não foi tão bom

quanto a médica, porque ela foi além de não reprimir, ela fez muito mais do que uma aula de

história: expôs suas dúvidas e experiências com drogas abertamente com o usuário do SUS.

Então, falar sobre estas nossas experiencias é uma matéria-prima para pensarmos de modo mais

eficaz a questão das drogas.

Como observou na mesa de abertura ontem o Gojoba, poucos dias após a marcha proibida

em São Paulo e as violências cometidas, um ex-sociólogo dá entrevistas na rede aberta de

televisão, falando sobre aquilo que é proibido falar nas ruas. Ativistas da marcha saem da

delegacia, ligam a tevê, veem no FHC uma tolerância à causa, e comemoram, diante da sua

miserável condição cidadã. Outros ativistas comemoram de fato, pois a legalização que desejam

não admite nuances ou discussões coletivas, ela deve também ser prescrita de cima pra baixo.

As alternativas não querem ser debatidas. Nos Estados Unidos, vários(as) maconheiros(as)

votaram contra a Proposição 19, que legalizaria a maconha mais como produto a ser pago, do

que como planta a ser consagrada livremente. Na marcha da liberdade, um cartaz reproduz o

famoso refrão 'paz sem voz não é paz, é medo'. Pode-se liberar e continuar tudo tal como está.

Ou pode-se a tudo reprimir e isso não continuará impedindo que pessoas desobedeçam a ordem

de que as ilícitas fazem mal. Em todos estes casos, a subjetividade se encontra não negada, mas

sim domesticada e servindo a diversos interesses.

CENA 5 - SOBRE A CAPTURA DAS POTENCIALIDADES POLÍTICAS DAS MARCHAS

As marchas da maconha parecem buscar uma definição. Às vezes parece que os Direitos

Humanos são reduzidos a meros direitos para consumir produtos. Outras vezes, lembramos que

as marchas tem uma riqueza ainda a ser desvendada e comentada. Mas a construção de uma

dicotomia entre legalizar e proibir omite a construção coletiva de uma nova política de drogas.

Para ser aprovada uma nova droga chamada terapêutica, ela tem que demonstrar sua

eficácia com seres humanos, diante de um diagnóstico, provocado nas cobaias ou anterior à

pesquisa. Grupos diferentes de cobaias usam, sem saber, comprimidos de farinha e são

desencorajados a terem sugestões ou expectativas para as coisas que estão usando.

O THC sintetizado, para ser produzido em escala global, e poder ser lembrado nas

próximas enciclopédias, teve que passar por uma testagem que o decretou ser uma droga

terapêutica, que quando pode ser prescrita, deve ser prescrita somente por técnicos da saúde.

Na pesquisa sobre pessoas vivendo com HIV, todos nas equipes de saúde recomendavam

exercícios físicos para que o paciente evitassem problemas musculares. Ninguém lembrava de

perguntar que estratégias teriam à disposição para sentirem mais prazer com seu corpo.

Cidadãos de São Paulo e João Pessoa, que usam drogas e que tem prazer com o seu corpo, não

puderam falar aquilo que pensam e sentem nas Marchas da Maconha.

Então a intervenção foi mais pensada para deixar perguntas do que respostas; acho que o

importante hoje em dia no debate desses temas, sobre drogas e cidadania, autonomia, tutela, é

pensar nas drogas de modo geral, sem distinção ou paixões cegas; e tentarmos sempre superar

as dicotomias morais, certo e errado, bom ou ruim. O que devemos lembrar nisso tudo é que

abrir as possibilidades de entendimento é uma forma madura de aceitar o medo, o que parece

mais interessante do que fugirmos do debate, deixando de falar sobre nossos próprios usos do

corpo.

Nisso, seria bom perguntarmos se gestores(as) e trabalhadores(as) da saúde, assistência

social, etc. vão se interessar por isso só por uma preocupação com o seu trabalho clínico ou com

a gestão de fluxos nos serviços, etc., ou se vão querer olhar para além disso... Porque o

ensinamento que as drogas nos tem a fazer hoje em dia diz respeito a questões existenciais

importantes; inclusive para nós militantes. O constrangimento gerado no cotidiano engessado da

clínica e da gestão, diante do protagonismo cidadão e das apropriações autônomas dos corpos,

já são antigas como questão para nós. Na luta antimanicomial, essa questão surge quando a

pessoa chega pro(a) seu(sua) terapeuta e decide que não precisa mais daquilo (daquilo tudo que

envolve a terapia), e aí se a pessoa se liberta da sua terapia, digamos, leva com ela o

aprendizado até então. A gente não precisa ir muito longe, vamos falar das moralidades

antidrogas nos serviços substitutivos: um exemplo é a pessoa que passa por um auto-denominado

processo de desinstitucionalização, e aí quando ganha o direito de viver em uma casa, tem ainda

seu corpo tutelado pelas moralidades, pela naturalização das leis por parte de seus ditos

cuidadores, que deveriam justamente se opôr à tutela. Então se ela quiser fumar maconha ela

pode sofrer inclusive ameaças veladas: ou para de fumar, ou volta para lá, para o manicômio. Aí

fica a pergunta sobre o que é manicômio, eu gosto de pensar que o hospital psiquiátrico é o

manicômio clássico. A imposição da moral antidrogas seria um exemplo de manicômio

contemporâneo – não que as imposições tenham surgido agora, mas nos permitimos pensar hoje

nesses termos. E isso é um exemplo real, eu vi isso acontecer. Então essa proximidade entre

questões da autonomia sobre o corpo e questões da cidadania é profunda, uma coisa não existe

sem a outra. E se isso já pode gerar conflitos ético-políticos entre terapeuta e usuário, vamos

imaginar a dificuldade que temos de aceitar a existencia de pessoas que usam drogas cujos usos,

ao contrário do que nós queremos acreditar, demandam um cuidado em saúde que não seja

terrorista e que não engendre processos de tutela. Pelo contrário, o cuidado deve ser também

prazeroso; vamos falar em gestão de riscos mas obrigatoriamente também da gestão de

prazeres. E pra isso precisamos ouvir o que as pessoas que usam drogas tem a nos ensinar.

A ressalva aqui é que temos de entender que elas veem as mesmas reportagens que nós e

muitas vezes já vem reproduzindo os discursos morais antidrogas, então não é aceitar de pronto

tudo o que se diz, que isso pode ser também um colaborar com a tutela. Então buscar uma

implicação ético-política nessas questões existenciais (que são por extensão também questões

clínicas) é, além de desejar aprender o que as pessoas que usam drogas tem a nos ensinar,

também cuidarmos em desconstruir esse lugar manicomial imposto às pessoas que usam drogas,

que é o lugar da culpa, do vício, da irracionalidade, etc. Nesse lugar não é possível trabalhar

com a noção de sujeitos de cuidado nem com a de desinstitucionalização.

Então, a ideia era a de tentar contribuir a partir destas cenas com uma reflexão sobre os

temas do seminário, principalmente nessa questão mais profunda da cidadania que é a dos livres

usos do corpo, questão muito antiga aliás... Espero que os temas levantados possam permitir o

pensar em nossas próprias experiências nesse sentido e que isso reverbere no debate dos grupos

mais adiante.

1 Atividade ocorrida no Seminário Drogas: Subjetividade, Autonomia e Tutela, promovida pelo CRP/PE nos dias 13 e

14 de Junho – programação do evento em http://www.crppe.org.br/upload/anexos/Programação.pdf#CRP/PE

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Do conceito antropológico de drogas: drogas são culturais, não naturais ou artificiais. E se são culturais, é porque se dão nas relações; assim também sendo a lógica do preconceito. O pré-conceito, conceito sobre o mundo do outro: raramente falamos das drogas que usamos.

De imediato trago minha fala para o lugar das drogas de modo geral, então quando eu falar a palavra drogas, lembremos de fármacos, lícitas ou ilícitas. Essa é uma posição saudável porque as leis são reflexos de questões históricas - que sim, são concretas, estão presentes no dia a dia; mas isso quer dizer que podemos e devemos desnaturalizá-las. É bom podermos lembrar que as leis não são naturais, foram inventadas. É bom poder lembrar que a divisão entre lícitas, ilícitas ou fármacos é arbitrária. A lista de drogas permitidas podia ser outra, e podia o café ser proibido, etc.

Mas na minha opinião, eu acho que também é arbitrária a ideia de que existe um uso que seja medicinal ou terapêutico, ou outros recreativos (recreativos aliás me lembra recreio), ou então a ideia de uso abusivo, problemático. Pra antropologia e para as ciências sociais em geral talvez essas palavras não nos ajudem a pensar sobre drogas, e portanto não façam muito sentido. Principalmente se quisermos falar em cidadania. Talvez essas palavras e essas leis, como muita gente desconfia, sirvam mais para contribuir com os processos de tutela.

Quanto às palavras, sabemos haver uma questão importante na luta antimanicomial e nos processos da Reforma Psiquiátrica quanto aos poderes dos diagnósticos, ou seja, dos conceitos científicos que definem, como diz Foucault, o conceito que define é o mesmo que aprisiona. Mas não vamos

entrar no assunto sobre diagnósticos, que na minha opinião já seria uma outra coisa; sendo bom ressaltar que não parece saudável demonizarmos isso também, diagnóstico pra mim é uma ferramenta de trabalho, pra pensar ou fazer coisas, que como qualquer outra ferramenta, deve ser vista e usada caso a caso.

A questão principal da qual eu quero falar aqui, e que na minha opinião se encontra na raiz do debate entre drogas e cidadania, é um mecanismo sutil que permite que a tutela aconteça. Sobre como nomearmos esse mecanismo, ao pesquisar uns artigos e escrever esta fala não consegui achar um jeito melhor, mas o que permite que a tutela aconteça é como um mecanismo de captura da subjetividade das pessoas que usam drogas.

Subjetividade, ou intersubjetividade podem ser também palavrões, ou ideias muito amplas. Mas podemos pensar na antropologia como ciência que estuda relações intersubjetivas. Um antropólogo norte-americano, Thomas Csordas, diz que o corpo não é um objeto a ser estudado para ali se pensar a cultura; que o corpo seria o sujeito da cultura. Na verdade isso replica o Howard Becker, que já na década de 50 foi fazer umas pesquisas entre pessoas que fumavam maconha.

Ele tava tentando fornecer outras vias de reflexão sobre o assunto que não aquelas que ele considerava como psicologizantes, o que talvez fale do contexto de produção de conhecimento, e de demanda por um conhecimento mais instrumental, nas disciplinas como um todo; que era definir, agrupar e intervir sobre comportamentos sociais, engendrando em definições fechadas... Mas no estudo dele, Tornando-se um usuário de maconha (do livro

Outsiders), ele permite pensarmos como se aprende a perceber os efeitos também diante de técnicas corporais de pessoas que usam há mais tempo a maconha, e então que se aprende a ser maconheiro, inclusive a diferenciar os efeitos, num processo que é intersubjetivo, que é uma troca entre pessoas. Então para pensar conceitos sobre os usos do corpo, e usar de novo um palavrão, o Thomas Csordas fala sobre uma elaboração cultural do engajamento sensório...

Em cima dos eixos do seminário, preparei uma fala diante de três momentos que tem me afetado e que eu acho essencial dividir aqui antes:

1) O primeiro momento é o das impressões sobre as marchas da maconha pelo país, de um modo geral. Está havendo um crescimento do movimento, nos diversos amadurecimentos do debate sobre política de drogas, e isso não é quando as pessoas convidam maconheiros(as) pra

falar num programa de rádio ou tevê. Acho que o amadurecimento possível já é interno, ou seja, já é de diversidade de opiniões dentro do movimento. Em certa medida, acontece é que milhares de pessoas fumam maconha, e agora que elas tem se conhecido e organizado politicamente, estão surgindo as nuances que não são só as de torcer por times de futebol diferentes, são também as diferenças de entendimento político, ou de quais projetos de cidade se defende; ou se votamos, em quem é que votamos; que apoios desejamos compôr, etc... E estas diferenças de linhas de opinião e diversas correntes “puxam” a ideia da legalização para diversas formas de legalizar. Este é um momento que vivemos e que afeta minha fala.

2) Outra coisa que permeia meus comentários são algumas impressões iniciais enquanto pesquisador que agora no mestrado acompanha uma pesquisa chamada GAM: Gestão Autônoma de Medicamentos. Ela já existe há uns cinco anos, e têm reunido grupos de pessoas que acessam serviços em saúde mental, geralmente os substitutivos, e dialogando, em rodas, sobre enfim o que diabos se está prescrevendo a estas pessoas, o que são estas prescrições, e o que isso pode dizer de um trabalho em saúde, e até de uma política de saúde, comprometida com que as pessoas tenham um aprendizado através das drogas. Reuniram-se diversas contribuições em um Guia, que é como um cartão individual com várias perguntas interessantes, boas para pensar.

Pude acompanhar um grupo onde pessoas sentam-se em roda pra discutir suas relações com os fármacos prescritos a elas, e uma das coisas que tem me implicado é que diante da primeira versão do guia, senti também vontade de responder, testar, e também no grupo senti vontade de falar sobre os meus próprios usos - porque pesquisador também usa drogas - e ver de que jeito isso pode ser trabalhado, etc.

3) O terceiro momento que afeta minha fala é que participando desses grupos me senti mais interessado nesse debate sobre autonomia e me senti mais feliz, mais à vontade, pra assimilar umas coisas que me interessavam quando concluí o curso nas Ciências Sociais. Em 2009 protagonizei uma pesquisa de conclusão de curso que foi sobre usos de maconha entre pessoas vivendo com HIV/aids. E pensando a ideia da autonomia e da saúde. Então, participando dessa pesquisa no mestrado, dos grupos de usuários falando sobre os fármacos e suas prescrições, pude dar outros sentidos pra um trabalho que já havia feito.

Pra resumir, essas ideias que tem me afetado, se pensadas em palavras-chave, aproximariam:

1) Marchas da Maconha = pessoas nas ruas = controle social = cidadania

2) Gestão Autônoma de Medicamentos = trocas de experiências entre pessoas que usam drogas = aprendizado através das drogas

3) Dicotomia trabalhada no TCC sobre usos de maconha entre pessoas que vivem com HIV/Aids, quanto as associações diretas... Geralmente associamos usos de drogas prescritas a autonomia e saúde, e usos proibidos/proscritos a dependência e doença.

Coloco essa rede de significados pra desenhar um pouco as conexões entre as palavras... Poderiam ser outras conexões também, essas são as que me vem em mente. Mas então, falar de drogas e cidadania não é só falar sobre como responder a problemas, ou como construir melhores políticas públicas, é também falar da gente mesmo; podemos todos e todas aqui, neste exato momento, refletir sobre que lugares as drogas tem em nossas vidas. É este o ponto de partida que talvez seja o mais interessante. E talvez seja a partir daí que, já visando o debate nas rodas durante a tarde, nossas contribuições possam ter um lugar mais interessante.

Indo para a fala em si, pensei em trazer cenas de coisas “reais”, que vivenciamos, ou que poderiam ter acontecido. O que une todas elas são as questões que falam de uma sociedade que, ao contrário do que parece, não ignora a subjetividade como elemento intrínseco aos diversos usos de drogas. Muito mais do que ignorada, a subjetividade das pessoas parece sofrer processos de domesticação que agregam vários interesses distintos. Com essa ideia em mente, vamos a elas.

CENA 1 – SOBRE AS VERTENTES RADICAIS DO CRISTIANISMO E A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

Li num livro do historiador Henrique Carneiro que, na época entre Renascenças e as grandes navegações, pessoas curiosas e metódicas observavam o mundo e escreviam numa lista suas riquezas, diferenciando entre as coisas, gerando a necessidade de algumas palavras novas em seus vocabulários. Essas enciclopédias traziam relatos de experiências e estudos aprofundados, ensaiando diálogos e enfrentamentos com os textos da cosmologia cristã

tradicional.

Usos de drogas antes pecaminosos começavam a ser reinvindicados como um direito: o direito à utilização do ópio como anestésico, por exemplo, foi possível de pactuar. Os usos de alucinógenos se realizavam em rituais diversos que pareciam fugir das enciclopédias, porque as pessoas talvez prefiram mais sentir do que julgar. Se divertir ou entrar para a história, são direitos que temos.

O anestésico pareceu ter uma função coletiva que reuniu demandas nas situações mais críticas, visíveis, como em cirurgias, por exemplo. O alucinógeno, que só irá possibilitar aprendizados para as próprias pessoas que usam, não tem função alguma a ser definida em uma enciclopédia, a não ser entre dicotomias entre certo e errado, contrários ou favoráveis, lícitos ou ilícitos.

O corpo, sujeito da cultura, é atravessado por olhares de mundo que não parecem desejar um consenso.

CENA 2 - SOBRE AS MARCHAS

2007 depois de Cristo, várias pessoas no mundo desejam ir às ruas para falar sobre drogas. Viram na tevê imagens de conflitos e bombas de gás lacrimogêneo. É interessante observar a intolerância diante de uma caminhada pacífica de pessoas alegres, entorpecidas ou não, vinda da parte de grupos midiáticos. Os mesmos grupos são os que fazem o serviço de marketing social da repressão para tornar mais aceitável a ideologia antidrogas entre leitores de seus jornais – repetindo de outro modo, tornar mais aceitável a ideologia antidrogas tal como se fosse mais um produto à venda e que precisa ser maquiado.

A ideologia antidrogas maquiada em artigos e opiniões ditas neutras são peças tão distantes da realidade quanto modelos em photoshop. Diante da Marcha da Maconha, os batalhões agendam algumas centenas de policiais e o comando de policiamento da capital comunica aos manifestantes que haverá repressão diante de quaisquer signos, gestos ou desenhos que sejam interpretados como atos de apologia - e fazem questão de lembrar que, provavelmente, todas as coisas serão interpretadas como atos de apologia.

Os manifestantes articulam-se com juristas, advogados, e juntos ingressam com um pedido para que o Estado não cometa violências sobre as pessoas que desejam dar sua opinião sobre a guerra às drogas.

O pedido deles se chama Habeas Corpus, ou em uma tradução livre, tenha o seu corpo.

O movimento social comemora o fato de que o Estado e o MP tiveram tolerância em relação a existência das suas ideias na sociedade. O cientista político Thiago Rodrigues nos lembra que a tolerância também é uma relação de poder. As marchas acontecem e a sociedade aprende a duras penas a olhar constrangida para o seu silêncio.

Marcos Rolim nos diz que mais do que tolerar, é preciso desejar a diferença.

CENA 3 - SOBRE A IDEOLOGIA ANTIDROGAS (MELHORES MOMENTOS)

A reportagem.

A repóter bem maquiada vai às ruas para, com a ajuda de uma câmera e um microfone, fazer uma reportagem com a opinião do público sobre “A” legalização. As perguntas são fechadas, já incluem resposta e só admitem duas respostas: contrária ou favorável. As pessoas que argumentaram algo fora da dicotomia contrário ou favorável não foram mostradas aos telespectadores, na edição final.

O ter opinião sobre tudo.

Uma pessoa é abordada por uma repórter bem maquiada que lhe pergunta ser contra ou a favor a liberação das drogas. Antes de responder, em alguns segundos ela olha à sua volta e diante de uma série de histórias violentadas, cuja complexidade pode até fazer com que ela tenha medo de entendê-las, esta pessoa poderá se dizer “contra as drogas”. Sua opinião tem uma coerência inabalável, porque o que ela vê é concreto, existe, e é significado como sendo o famoso mundo da droga - esse que vira notícia.

Por acaso, ela não sabe que as outras notícias que ela leu também foram construídas assim, fazendo perguntas fechadas a dezenas de pessoas e selecionando-se cirurgicamente as coisas que devem ou não ser ditas. E as duas ou três coisas ditas na edição final da reportagem são sempre as moralidades, o debate medíocre, o mundo dividido entre duas opinões, contrários ou favoráveis, lícitos ou ilícitos.

O que é apologia ao uso indevido de drogas?

Se essa ideologia se retro-alimenta e não parece ter um centro de onde emana, não nos importa tanto. A lógica antidrogas, onde quer que surja, assim espetacularizada; assim colocando as drogas como causas únicas de grandes males sociais, acaba encarando as drogas como coisas mais poderosas do que elas realmente são. E porque é cultural, essa lógica antidrogas não tem a ver só com as drogas que são proibidas, ela está presente quando se fala em lícitas e também quando se fala em fármacos.

Assim esperamos a cura milagrosa na farmácia, ou acusamos os venenos mortais nas bocas de fumo, e isso é parte de uma mesma lógica. Essa ideia que entende as drogas como tão poderosas é que deveria ser interpretada como uma apologia ao uso indevido de drogas. Ninguém parece entender esta como criminosa, talvez justamente porque nos constitua, com o que passaria a ser uma espécie de cerne da racionalidade médico-industrial, já que está presente nas famílias, na clínica (seja quando demandamos cuidado ou quando estamos “do outro lado”)...

CENA 4- SOBRE O CONSTRANGIMENTO DA CLÍNICA DA SAÚDE DIANTE DA AUTONOMIA DO USUÁRIO

Trago aqui dois relatos verídicos, numa conversa com uma pessoa vivendo com HIV, contando como era o diálogo com profissionais infectologistas, sobre seus usos de maconha. São duas conversas, com dois profissionais diferentes. Ao ouvir a conversa que tive com Jonas (pseudônimo da pessoa entrevistada), convido para que pensemos sobre como a clínica em saúde pode domesticar um corpo, como mutilar a experiẽncia de viver o corpo, e que posturas parecem mais interessantes.

Aliás essa cena aqui lembra muito outra que estava sendo comentada na mesa anterior, pelo psicanalista José Escobar, a Cama de Procusto (instrumento de tortura e execução), que é o impôr de um jeito ou de outro uma só medida e um só lugar para as coisas.

Primeira conversa: a aula de história

Jonas: Eu falava pra ele da história do baseado, e ele dizia assim: olha, eu prefiro mil vezes que tu fume o teu baseado, do que tu beba. Beba, quero dizer assim, não que beba socialmente, mas que tome teu porre, tome lá, vários... Sabe? Bêbado, que fique dependente do álcool - ele disse pra mim – ou que comece a tomar boleta. Até antidepressivo, ele disse pra mim aquilo: que o antidepressivo é uma coisa que é muito legal, um Prozac da vida, etc, mas enquanto tu tá bem na tua vida, tudo é o Prozac, é tudo maravilhoso, mas no momento que tu não quer mais saber daquilo, aí... É aquilo, tu vai cair no fundo do poço. E o baseado não, ele me disse assim, que o baseado é uma planta medicinal, é uma planta que...

Rafael: Ele falou do negócio.

Jonas: Falou do negócio. Falou assim, que era uma planta medicinal, que era uma planta que já vinha desde as épocas dos índios... Ah, ele me deu uma... Me deu um histórico, assim...

Segunda conversa: o desabafo

Jonas: Não está sendo tão bom quanto o primeiro.

Rafael: O que é que você acha ruim, assim?

Jonas: Essa já discorda, diz que já fumou baseado...

Rafael: Ah, tu falou a ela que fuma, já.

Jonas: Claro. E ela...

Rafael: Tipo: “doutora, eu fumo”.

Jonas: Fumo. Só que eu acho que ela teve um problema. Acho que por isso que ela não... Ela disse: “ah, eu também já fumei”, e... Só que eu achei que desencadeou algum problema, que ela não consegue falar do negócio. Ela não consegue. Tipo: "ah, eu adoro o cheirinho"... Sabe? Aquelas coisas... Minha médica pergunta pra mim, como se eu tivesse que saber: “como é que tem muita gente que fuma e que pode, e que leva sua vida adiante e eu não pude fumar, não pude”? Para mim, ambas as conversas e posturas aqui relatadas entre médicos infectologistas e um usuário do SUS poderiam ocorrer também com redutores de danos, manicomiais ou não; ou psicólogos, antropólogos, astrólogos, ou qualquer outra especialidade que tenha na ética seu elemento mais interessante.

Como mero pesquisador, minha opinião foi a de que o primeiro médico, embora, como se diz, tenha todo o jeito de quem fuma um, fez um histórico sobre a maconha em um tom permissivo sobre algo que o paciente já usava, com um tom de palestra (meio careta). Então diferente do que pensa o Jonas, achei que o médico não foi tão bom quanto a médica, porque ela foi além de não reprimir, ela fez muito mais do que uma aula de história: expôs suas dúvidas e experiências com drogas abertamente com o usuário do SUS.

Então, falar sobre estas nossas experiencias é uma matéria-prima para pensarmos de modo mais eficaz a questão das drogas.

Como observou na mesa de abertura ontem o Gojoba, poucos dias após a marcha proibida em São Paulo e as violências cometidas, um ex-sociólogo dá entrevistas na rede aberta de televisão, falando sobre aquilo que é proibido falar nas ruas. Ativistas da marcha saem da delegacia, ligam a tevê, veem no FHC uma tolerância à causa, e comemoram, diante da sua miserável condição cidadã.

Outros ativistas comemoram de fato, pois a legalização que desejam não admite nuances ou discussões coletivas, ela deve também ser prescrita de cima pra baixo. As alternativas não querem ser debatidas. Nos Estados Unidos, vários(as) maconheiros(as) votaram contra a Proposição 19, que legalizaria a maconha mais como produto a ser pago, do que como planta a ser consagrada livremente.

Na marcha da liberdade, um cartaz reproduz o famoso refrão 'paz sem voz não é paz, é medo'. Pode-se liberar e continuar tudo tal como está. Ou pode-se a tudo reprimir e isso não continuará impedindo que pessoas desobedeçam a ordem de que as ilícitas fazem mal. Em todos estes casos, a subjetividade se encontra não negada, mas sim domesticada e servindo a diversos interesses.

CENA 5 - SOBRE A CAPTURA DAS POTENCIALIDADES POLÍTICAS DAS MARCHAS

As marchas da maconha parecem buscar uma definição. Às vezes parece que os Direitos Humanos são reduzidos a meros direitos para consumir produtos. Outras vezes, lembramos que as marchas tem uma riqueza ainda a ser desvendada e comentada. Mas a construção de uma dicotomia entre legalizar e proibir omite a construção coletiva de uma nova política de drogas.

Para ser aprovada uma nova droga chamada terapêutica, ela tem que demonstrar sua eficácia com seres humanos, diante de um diagnóstico, provocado nas cobaias ou anterior à pesquisa. Grupos diferentes de cobaias usam, sem saber, comprimidos de farinha e são desencorajados a terem sugestões ou expectativas para as coisas que estão usando.

O THC sintetizado, para ser produzido em escala global, e poder ser lembrado nas próximas enciclopédias, teve que passar por uma testagem que o decretou ser uma droga terapêutica, que quando pode ser prescrita, deve ser prescrita somente por técnicos da saúde. Na pesquisa sobre pessoas vivendo com HIV, todos nas equipes de saúde recomendavam exercícios físicos para que o paciente evitassem problemas musculares. Ninguém lembrava de

perguntar que estratégias teriam à disposição para sentirem mais prazer com seu corpo.

Cidadãos de São Paulo e João Pessoa, que usam drogas e que tem prazer com o seu corpo, não puderam falar aquilo que pensam e sentem nas Marchas da Maconha.

Então a intervenção foi mais pensada para deixar perguntas do que respostas; acho que o importante hoje em dia no debate desses temas, sobre drogas e cidadania, autonomia, tutela, é pensar nas drogas de modo geral, sem distinção ou paixões cegas; e tentarmos sempre superar as dicotomias morais, certo e errado, bom ou ruim. O que devemos lembrar nisso tudo é que abrir as possibilidades de entendimento é uma forma madura de aceitar o medo, o que parece mais interessante do que fugirmos do debate, deixando de falar sobre nossos próprios usos do corpo.

Nisso, seria bom perguntarmos se gestores(as) e trabalhadores(as) da saúde, assistência social, etc. vão se interessar por isso só por uma preocupação com o seu trabalho clínico ou com a gestão de fluxos nos serviços, etc., ou se vão querer olhar para além disso... Porque o ensinamento que as drogas nos tem a fazer hoje em dia diz respeito a questões existenciais importantes; inclusive para nós militantes.

O constrangimento gerado no cotidiano engessado da clínica e da gestão, diante do protagonismo cidadão e das apropriações autônomas dos corpos, já são antigas como questão para nós. Na luta antimanicomial, essa questão surge quando a pessoa chega pro(a) seu(sua) terapeuta e decide que não precisa mais daquilo (daquilo tudo que envolve a terapia), e aí se a pessoa se liberta da sua terapia, digamos, leva com ela o aprendizado até então.

A gente não precisa ir muito longe, vamos falar das moralidades antidrogas nos serviços substitutivos: um exemplo é a pessoa que passa por um auto-denominado processo de desinstitucionalização, e aí quando ganha o direito de viver em uma casa, tem ainda seu corpo tutelado pelas moralidades, pela naturalização das leis por parte de seus ditos cuidadores, que deveriam justamente se opôr à tutela. Então se ela quiser fumar maconha ela pode sofrer inclusive ameaças veladas: ou para de fumar, ou volta para lá, para o manicômio.

Aí fica a pergunta sobre o que é manicômio, eu gosto de pensar que o hospital psiquiátrico é o manicômio clássico. A imposição da moral antidrogas seria um exemplo de manicômio contemporâneo – não que as imposições tenham surgido agora, mas nos permitimos pensar hoje nesses termos.

E isso é um exemplo real, eu vi isso acontecer. Então essa proximidade entre questões da autonomia sobre o corpo e questões da cidadania é profunda, uma coisa não existe sem a outra.

E se isso já pode gerar conflitos ético-políticos entre terapeuta e usuário, vamos imaginar a dificuldade que temos de aceitar a existencia de pessoas que usam drogas cujos usos, ao contrário do que nós queremos acreditar, demandam um cuidado em saúde que não seja terrorista e que não engendre processos de tutela.

Pelo contrário, o cuidado deve ser também prazeroso; vamos falar em gestão de riscos mas obrigatoriamente também da gestão de prazeres.

E pra isso precisamos ouvir o que as pessoas que usam drogas tem a nos ensinar.

A ressalva aqui é que temos de entender que elas veem as mesmas reportagens que nós e muitas vezes já vem reproduzindo os discursos morais antidrogas, então não é aceitar de pronto tudo o que se diz, que isso pode ser também um colaborar com a tutela.

Então buscar uma implicação ético-política nessas questões existenciais (que são por extensão também questões clínicas) é, além de desejar prender o que as pessoas que usam drogas tem a nos ensinar, também cuidarmos em desconstruir esse lugar manicomial imposto às pessoas que usam drogas, que é o lugar da culpa, do vício, da irracionalidade, etc. Nesse lugar não é possível trabalhar com a noção de sujeitos de cuidado nem com a de desinstitucionalização.

Então, a ideia era a de tentar contribuir a partir destas cenas com uma reflexão sobre os temas do seminário, principalmente nessa questão mais profunda da cidadania que é a dos livres usos do corpo, questão muito antiga aliás... Espero que os temas levantados possam permitir o

pensar em nossas próprias experiências nesse sentido e que isso reverbere no debate dos grupos mais adiante.

1 Atividade ocorrida no Seminário Drogas: Subjetividade, Autonomia e Tutela, promovida pelo CRP/PE nos dias 13 e

14 de Junho – programação do evento em http://www.crppe.org.br/upload/anexos/Programação.pdf #CRP/PE

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