Ir para conteúdo

Sem Limites


makana

Recommended Posts

  • Usuário Growroom

(bom galera, pelo que entendi é um filme já lançado, postado por 'André Camargo' no site http://www.portalcafebrasil.com.br/14-iscas-intelectuais/37-trabalho-e-comportamento/42-filosoficas/8886-sem-limites e pra quem quiser, o trailer postado nos comentários :

bem interessante a leitura)

Veja o caso da minha companheira. Quando o almoço ou o jantar demora a sair, ela se transforma em uma outra pessoa. E essa outra pessoa não ri das minhas piadas. Aliás, essa outra pessoa não vê graça em absolutamente nada que não possa ser mastigado. Forneço a ela a próxima dose, e voltamos a ser amigos.

Outro dia assisti Limitless, que tem o De Niro como coadjuvante. Se você não viu, fique tranquilo: não vou estragar. O argumento é bem legal – especialmente para quem tem ou teve bons resultados com antidepressivos, tomando Ritalina (a droga da atenção e da inteligência) ou com outras substâncias.

Vamos à ressalva: este texto não faz apologia ao uso de drogas. Não é minha intenção. Por outro lado, penso que a condenação sumária seja má opção. Como se qualquer droga fosse, simplesmente, coisa do capeta.

Difícil admitirmos, por exemplo, que o uso de substâncias para “alterar as coisas” sempre existiu entre os humanos. Que os efeitos costumam ser, de fato, extraordinários. Que o limite que separa lícito de ilícito é arbitrário. E, o que é pior: com exceção do crack, do qual não falo por falta de conhecimento, não são raros os casos de pessoas capazes de usar drogas (mesmo a heroína) de modo recreativo e ocasional – sem tolerância, síndrome de abstinência, em suma, sem se viciarem. Assim como tem gente que bebe de vez em quando, mas está bem longe de perder o controle sobre a própria vida.

A energia ilimitada da anfetamina, o prazer em estado último da heroína, a viagem pelo extraordinário mundo da fantasia com o ácido, o supremo relaxamento da cannabis, a alegria transbordante do ecstasy ou a maravilhosa sensação de alívio de uma dor de cabeça forte com a ajuda de um Advil.

Ah, mas o consumo estimula o tráfico e a bandidagem! Sim, mas apenas porque algumas drogas são proibidas e seu uso condenado à clandestinidade. O que, aliás, também leva ao suborno e à corrupção das forças repressoras, por exemplo.

Em minha opinião, deveríamos abandonar a hipocrisia e o paternalismo e incentivar o debate maduro, ponderado, sobre a possível liberação. Acabaria com o monopólio dos senhores do tráfico e flexibilizaria o domínio da indústria farmacêutica. O maior problema seria estipular sobre que instituições recairiam o controle e a administração dessas substâncias. Quem produziria, regularia e comercializaria – o governo? Mau negócio!...

De uma coisa, pelo menos, podemos ter certeza: o modelo disciplinar atual, centrado na proibição e na intensa repressão – que, afinal, coloca polícia e traficante lado a lado, não funciona. Vamos parar de tapar o sol com a peneira.

Dito isso, as drogas também podem, sim, e com frequência o fazem, destruir todo o resto. Você pode mergulhar em uma crise de pânico, desencadear um surto psicótico, tornar-se irremediavelmente dependente, instável, paranoico. Trocar tudo pela próxima dose. Deixar emprego, família, bater o carro. Virar mendigo. Perder seu filho para o tráfico. Essas coisas não são conjecturas – elas acontecem todos os dias.

Mas e se houvesse a pílula mágica? Que conduzisse à perfeição todas as suas potencialidades, sem contra-indicações ou efeitos colaterais? Absoluto equilíbrio emocional sem dez anos de psicanálise. Serenidade, clareza mental e contentamento inabalável sem sentar em meditação. Memória completa. Raciocínio poderoso, penetrante, infalível. Visão além do alcance. Tato, charme, sensibilidade estética. Autoconfiança no ponto exato, nem arrogância nem afetação.

Tomar ou não tomar?

A questão central do filme, do meu ponto de vista, é a seguinte: onde está o limite entre eu e alguma outra coisa? Quanto é possível transformar-se com a ajuda de elementos externos (químicos, por exemplo, como a droga do filme), sem deixar de ser quem você é?

É claro que é possível, e mesmo desejável, um processo radical de transformação que nos ajude a superar o embotamento, os medos e as inibições. Tornarmo-nos mais atraentes. Melhorarmos nossa condição financeira. Em geral, estamos o tempo todo tentando umas ou outras.

Por outro lado, vejamos: uma coisa é nos olharmos no espelho e identificarmos o que não está legal em nós mesmos. Submetermos nosso desejo ao teste da realidade.

Iniciamos uma dieta e descobrimos o quanto é difícil negociar a impulsividade do momento e as metas de longo prazo. Vivemos a dificuldade de encaixar na rotina as idas (chatas!) à academia. Precisamos vencer a preguiça e perseverar. Leva tempo, mas, eventualmente, passamos a nos sentir melhor com nós mesmos, mais saudáveis e vibrantes.

Outra coisa é realizar cirurgia plástica, lipoaspiração, maquiagem e obter um resultado semelhante.

Uma coisa é a firme resolução de parar de autosabotar-se ou de compreender a irritação, o desânimo e o mau-humor. Investir tempo e dinheiro, suportar a angústia do autoconhecimento para atravessar um processo longo e árduo de psicoterapia. Outra coisa é lançar mão de um kit de calmantes e antidepressivos que o deixam legalzinho.

Uma coisa é cultivar o sonho de se tornar milionário. Decidir abrir uma escola de natação, digamos. Fazer faculdade, MBA, avaliar o mercado, conversar com outros empreendedores. Dedicar meses detalhando um plano de negócio, a fim de decidir quem é a sua clientela, a localização da escolinha, as dependências e o número de funcionários. Selecioná-los e capacitá-los.

Determinar um preço de venda. Estabelecer uma estratégia de mercado que leve em conta a concorrência, seus pontos fortes e fracos. O frio na barriga de encarar um financiamento, sem certeza sequer quanto ao retorno do investimento. Dividir o tempo entre trabalho e família, lazer, religião, academia. Quanto investir em propaganda? Você erra, tropeça, cai e levanta, ganha experiência. Em meio ao processo, transforma-se paulatinamente em uma outra pessoa. E essa pessoa, veja só, é um milionário.

Outra coisa é, do dia para a noite, ganhar seu milhão na loteria.

Não coloco essa questão de um ponto de vista moral: não se trata de merecer ou não o que você tem. ‘Dei tanto duro para comprar esse carro e ela recebe um imóvel de herança... Não é justo!’ Esse raciocínio é estéril.

A questão é bem mais crítica. Não somos feitos dos resultados que colecionamos, mas dos processos que atravessamos. Somos essencialmente seres históricos – são nossas narrativas de vida que nos constituem. Elas são o fundamento da nossa presença no mundo, as raízes últimas da nossa existência. Nunca fomos ou seremos seres prontos; o que somos é o perpétuo tornar-se.

Se cai na sua mão a pílula da felicidade completa, assim de graça, difícil não tomar. Mas o preço é alto: abrir mão das falhas, dos fracassos e dos tropeços é desistir de tornar-se o que será.

Link para o comentário
Compartilhar em outros sites

Join the conversation

You can post now and register later. If you have an account, sign in now to post with your account.

Visitante
Responder

×   Pasted as rich text.   Paste as plain text instead

  Only 75 emoji are allowed.

×   Your link has been automatically embedded.   Display as a link instead

×   Your previous content has been restored.   Clear editor

×   You cannot paste images directly. Upload or insert images from URL.

Processando...
×
×
  • Criar Novo...