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Estatismo E Cannabis


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Estatismo e Cannabis

Texto: Rafael Morato Zanatto – Imagens: J. R. Bazilista

A notícia do ano é a legalização da maconha no Uruguai. Seu presidente, um velho comunista guerrilheiro, fumador inveterado de charutos cubanos, decidiu não entrar pra história como um velho conservador sarnento. Cheio de boa vontade, arriscou sua popularidade, fazendo frente aos políticos de má fé, aos que fazem da religiosidade uma política e aos que acreditam que uma planta é e continuará sendo o flagelo da humanidade.

A derrota da oposição ao projeto político coloca essa pequena nação do sul na dianteira de um processo social inevitável. A carta remetida ao presidente da Asamblea General de la Republica Oriental del Uruguay embasa suas convicções em fatores históricos, culturais, econômicos, políticos; múltiplas esferas analisadas com ceticismo por argumentos científicos, e não amparados pelo senso comum.

Nas antigas sociedades, o uso de drogas era regulado pelo seu aspecto cultural ou religioso. Se hoje em dia a cultura é capitalista, o uso de drogas se faz de acordo com a religião do momento: o consumismo – mas se enganam aqueles que pensam que o uso ritualístico esta morto. Um filósofo alemão, herói dos apreciadores de haxixe, pensou que as coisas nunca morem, e retornam com vigor, florescendo em fissuras, como ervas daninhas, seja como memória ou impulso revolucionário. Se essa é a condição do desenvolvimento da sociedade na história, vemos que a maconha possui aspectos medicinais, entretém, equilibra o consumo de outras substâncias, e é empregado em algumas modalidades produtivas. Temos também o uso religioso, semelhante a qualquer outra disciplina doutrinária, com o fim de alcançar deus. Por estas bandas existem alguns profetas que semeiam a conexão entre o uso da cannábis e o desenvolvimento da espiritualidade individual.

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Adoro viver no país do carnaval, onde a quarta feira de cinzas é dia de desforra e grande arrecadação. “Venham todos espiar seus pecados da carne, e não esqueçam, aceitamos visa electron, master card e sodexo também.” Enquanto isso, nada resolvido pra Ras Geraldino, crédulo de sua causa, continua em cana, porque no seu sítio em Americana decidiu se posicionar na linha de frente dessa batalha, oferecendo seu corpo para os chacais do estado. Encarcerado porque havia uma placa que pedia uma contribuição não obrigatória de dez mangos para a manutenção do templo. As evidências são bastante claras. Além do roçado, foram encontrados numa espécie de altar, um cálice de vinho, e algumas baganas, oferecidas a jah.

O velho comunista do sul parece estar mesmo a fim de botar pra quebrar, e pretende tirar das mãos da segurança pública a tarefa de extorquir, espancar e assassinar o grande número de consumidores e comerciantes de seu país. Faz tempo que movimentos como o coletivo DAR, de São Paulo, marcam posição ao insistir no fracasso da guerra às drogas; e os cariocas se antecipam lançando a Sem Semente, revista cannabica que procura difundir a cultura, trabalhando pela legalização, e ganhando alguns cobres com o mercado favorável de leitores que tende apenas a crescer.

Os uruguaios parecem ter mais pudor na gestão dos recursos públicos de seu país, porque levaram a sério os indicadores da ONU, que afirmam que de 1998 a 2008 o número de maconheiros no mundo subiu de 147,4 para 160 milhões, demonstrando uma alta de 8,5 %, enquanto cocaína e os opiáceos cresceram entre 25 e 35 %. Fracassada a guerra as drogas, os uruguaios estão cansados e desperdiçar recursos numa política que só gera violência, encarceramento em massa, corrupção em qualquer nível e atividade social. A estratégia é reduzir os danos, através da regulação de um mercado controlado pelo estado, porque até o momento, “o remédio tem se demonstrado infinitamente mais nocivo que a enfermidade.”

Contestando os que repugnam o uso do dinheiro das drogas no fortalecimento de nossa economia, vale sempre fazer uso da história, essa fabulosa disciplina que nos enche de munição. Não é com espanto que podemos afirmar que foi com o capital do tráfico negreiro que o mercado interno brasileiro se solidificou, e foi de vital importância para a consolidação de nossa burocracia. Não vejo grandes repúdios contra essa verdade, nem gente disposta a reparar as atrocidades de tal prática. O dinheiro está limpo pela história. não há feridas que não se cicatrizam com o tempo.

Do mesmo modo que o tráfico negreiro foi condição econômica para a formação do estado brasileiro, foi com a emancipação dos escravos que o Brasil abriu as possibilidades para a modernização da sociedade. O estabelecimento da indústria alterou profundamente as relações sociais de produção, sendo o assalariamento uma necessidade vital para a ampliação do mercado consumidor. A lei áurea abalou alguns setores da economia brasileira, e um ano depois, caiu com a escravidão o poder político da família real, instalando-se o jogo político afiançado pelo modelo republicano. Muitos viram com espanto e desacordo a emancipação dos escravos e a decadência da família real. Muitos outros, contudo, pensaram que sem essas reformas, a estado brasileiro estaria ameaçado.

No caso da maconha, o mercado consumidor está consolidado, sem que sua alta rentabilidade seja revertida em recursos para outros setores da sociedade. No Brasil, costumamos dizer que pagamos impostos duas vezes, e nesse caso, deixamos de receber duas vezes. A primeira quando não há taxas oriundas da regularização deste vasto mercado. A segunda, quando grande soma de nossos recursos é direcionada para o encarceramento em massa, produção de armamento, treinamento militar, etc. Vivemos a urgência de uma reforma no código penal, que poupe recursos públicos e direcione sua atenção para questões mais urgentes, como a situação catastrófica dos hospitais públicos.

Em época de crise, seu Mujica pensou: porque o estado não faz um grande roçado e enche os bolsos, ao passo que investe na melhoria da qualidade de vida de seus cidadãos, aplicando os recursos em saúde, redução de danos e reabilitação, ao invés de continuar com a dispendiosa política militarista?

Vendo desse âmbito, o Uruguai não está a pensar apenas no uso medicinal, e por isso prevê a atividade conjunta entre as instâncias federal, estadual e municipal, associadas a empreendimentos privados e organizações civis, visando contemplar os que fazem do uso da erva uma recreação. O passo está dado e abre caminho para o nascimento de clubes, associações de produtores, distribuição e desenvolvimento de pesquisa. Está previsto também a criação de uma disciplina na Universidad de la Republica, incumbida em realizar investigações que permitam melhorar a apropriação da planta em suas diversas especificidades. O Uruguai ainda prevê investimentos no setor que apenas são sonhados pelos cultivadores do Colorado – EUA, por que seus representantes estaduais são temerários com a possibilidade de estarem a financiar uma atividade ilegal aos olhos das estâncias federais.

Os políticos estadunidenses não percebem que com a ausência legal de incentivo, os cultivadores buscarão outra forma de financiar seu desenvolvimento. Ao estado, foi apresentada uma oportunidade de realizar a expansão da cultura dentro da legalidade, como qualquer outro modo de cultivo agrícola. Enquanto o mundo se prepara para lucrar com a cannabis, o Brasil tenta tapar o sol com a peneira.

As propostas dos congressistas brasileiros são uma verdadeira aberração. Todo maconheiro sabe que se a policia pegar com uma erva, tem acerto, e se não tiver acerto, tem pancada ou punição. Estabelecer quantias limites de porte, sem regularizar o mercado e legitimar a produção, continuará impulsionando os índices de violência ao teto. Policiais de dedo ligeiro estão por todos os lados, e a posse de drogas continuará a endossar a violência. Da galera da quebrada, não preciso falar nada, os policiais, entram, matam e saem na maior, e tudo dentro da legalidade se a investigação encontrar uma pontinha de baseado. Um dia caminhava pela favela e observei que uma mão tentava repreender a criança, que não a obedecia. Caipira como eu, não foi difícil recordar que na infância temia o homem do saco, que levava os pequenos de suas mães. Não foi com surpresa que ouvi “a polícia vai te pegar”.

A maconha na ilegalidade serve aos interesses da ideologia do estado no controle dos corpos, e se o cabra é usuário de drogas, “achou o que procurou” – como diria o ditado popular. Aproveitando a ocasião, o que me dizem da cocaína plantada no carro do empresário fuzilado no Alto dos Pinheiros. Se o exame de sangue der positivo, então está beleza; e é nisso que apostam os responsáveis. Temos um bom motivo para supor que ele mereceu ser alvejado. A posse de substância permitirá no julgamento dos policiais subsidiará o argumento que ele tentou empreender fuga, embora na cena do crime não são poucas as evidências de excesso. Bom, já que nessa história da cannabis todo mundo dá pitaco, por que não eu.

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Vou me esforçar agora em pensar um projeto ultra-revolucionário, que vai quebrar paradigmas ao meio e, opa, respirar e soltar sonoramente… esqueci desse maldito refluxo histórico. De pés no chão, procurarei elaborar um esboço que pode valer alguma coisa, e como o mundo é capitalista, falarei da bufunfa e das condições sociais presentes no estado brasileiro.

Não acredito que o controle da produção e distribuição da cannabis deve estar exclusivamente nas mãos do Estado, como inicialmente assinalava o projeto uruguaio, que agora floriu, madurou, e está pronto para atender aos desafios.

Walter Benjamin uma vez disse que só não há poder sobre os mortos, e como as instituições, os sindicatos, as empresas e os coletivos – que no desenvolvimento de suas atividades ampliam seu espaço de ação – são vivos, é necessário estudar as peças e o tabuleiro. Qualquer modo de organização, em sua atividade de mediar às relações sociais é um sistema de condutas significativas, capazes ao mesmo tempo de condicionar a opressão e a colaboração no mundo dos homens. O que define a direção do barco é a ideologia de gestão. Penso que a ideologia mais adequada para a tarefa é a da produção em pequenas propriedades rurais ou em cultivos urbanos, tanto para fins comerciais, como para consumo de indivíduos ou grupos. Associações, clubes, coffe shops, podem se encarregar da distribuição. O cultivo da maconha pode ser estimulante para a ampliação das pequenas propriedades.

A questão da terra desde o “descobrimento” remonta do conflito entre a ambição dos bandeirantes e o modo de vida indígena. Séculos se passaram, sesmarias e grandes extensões de terra eram demarcadas. Mais tarde, grilagens de terras públicas, conflito entre jagunços e ligas camponesas, massacre em Canudos, Eldorado dos Carajás. Com o desenvolvimento das áreas urbanas, a população rural migrou, abandonando suas pequenas propriedades na incapacidade de produzir em condições de competir com os grandes latifúndios. Um produtor de milho, sequer poderia sustentar sua família com os cem carros de milho que colhia, ou com a venda da meia dúzia de cabeças de gado que mantinha em seu sítio. As monoculturas se alastraram, e os pequenos sitiantes foram perdendo seus bens, seu modo de vida, e se foram para a cidade tentar a vida. A resistência a esse processo histórico possibilitou o nascimento do movimento dos sem terra, que pauta suas reivindicações na urgência da reforma agrária.

Projetos governamentais estudam estratégias de distribuição de terras improdutivas, em pequenos lotes, assentando grande número de famílias. O problema começa a aparecer quando os recursos necessários para que o agricultor inicie seu pequeno roçado não tem retorno imediato, ou é incapaz de concorrer com a grande propriedade monocultora. Muitos tentam diversificar a produção, aproveitando-se da alta dos alimentos orgânicos, mas mesmo assim, as dificuldades de sucesso no empreendimento estimulam a evasão de muitas famílias assentadas, que vendem a terra antes do credenciamento do governo, e retornam para o movimento. A solução está em fiscalizar uma atitude em primeiro momento condenável, ou devemos tentar criar mecanismos capazes de tornar a pequena propriedade cada vez mais atrativa pela rentabilidade?

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Alguns dizem que a cannabis é o petróleo do século XXI, e porque não aliar às políticas de assentamento uma rede de produção, organizada em cooperativas e fiscalizada por uma parceria entre setores do ministério da saúde e o da agricultura? O cultivo da maconha pode ser uma das soluções para a pequena propriedade no Brasil, que mesmo assim é a responsável pelo abastecimento do mercado interno. Tudo se pode fazer com a cannabis, desde combustível, mel, óleos hidratantes, cordas, tecidos, baseados, sapatos, papel – a lista é interminável.

A transformação da sociedade a partir desse modelo demanda a formação de quadros especializados em diferentes setores da botânica, da saúde, uma nova burocracia e é claro, deverá ampliar o campo de ação da classe médica.

No passado, este segmento da sociedade foi uma dos responsáveis pela legitimação da prática proibicionista. O discurso médico abriu fogo não apenas contra a maconha, e fez de alvo o emprego medicinal das plantas. A sabedoria popular foi desacreditada; os chazinhos e as garrafadas foram considerados charlatanismo, diante da expansão da indústria farmacêutica.

A industrialização das substâncias para curar se sobrepôs aos tratamentos naturais, e a maconha, em seu aspecto medicinal experimentado na Califórnia, agora retoma sua posição, num segundo estágio de desenvolvimento do discurso médico. Não apena a cannabis parece renascer das cinzas, como a ideologia médica parece se renovar lentamente, aproveitando-se dessa maré verde que promete apenas crescer economicamente. Na Califórnia, para comprar confortavelmente, é necessário passar por uma consulta médica, atestando sua necessidade de fumar maconha. Você compra não apenas a substância, mas o direito de comprar, e mais uma vez, lá estão os médicos a ampliar seus tentáculos de acordo com a correnteza.

Como nem tudo é medicina, a diamba pode ser consumida na esfera do divertimento, e os coffe shops no molde holandês são uma ótima pedida; se devidamente fiscalizados, gerenciados e tributados, são a galinha dos ovos de ouro. Já os clubes e associações, modelo que acaba de sair vitorioso de um processo judicial em Florianópolis, abre jurisprudência para que outras iniciativas semelhantes se proliferem. O objetivo é congregar pesquisa, difusão e redução de danos. A pesquisa se concentra no levantamento de dados sobre todos os fatores que atravessam a cultura cannábica, seja seu uso recreativo, sua ação psicoativa, a potencialidade do uso industrial ou a violência inerente à manutenção do modelo proibicionista, etc. Devidamente levantados, os dados serão divulgados e discutidos em seminários, procurando informar estratégias visam atingir o terceiro objetivo: a redução de danos.

Como essa legislação não avança, o primeiro passo é construir uma forte assessoria jurídica, para defender alguns ativistas dentro da legislação que vigora atualmente, no que concerne a equiparação do porte ao cultivo para consumo próprio, comumente ignorado em escusos inquéritos policiais. Dentro da ciência de que o usuário tem mais a temer a farda que os comerciantes ilegais de cannabis, o cultivo caseiro não transcende o universo privado, resultando em segurança para o jardineiro. Um segundo passo, com a abertura legislativa ou política – a que vier primeiro – jardins urbanos ou redes de cultivo podem abastecer seus associados, ao passo que recolhem dados sobre a saúde do usuário, a freqüência do uso, os impactos sociais, diagnosticando os prós e os contras desta substância banida a priori, mas que continua a ser largamente usada pela humanidade. Em São Paulo, ao que parece, uma Associação Cultural Cannabica esta em fase embrionária, tomando forma lentamente, se preparando para germinar e crescer forte.

O movimento em direção ao modelo de sociedade aqui pensado é pra ontem, e os trabalhos tem que sair do plano das idéias. Aqueles que estão dedicando suas energias a essa causa não esperam muito de seus governantes, que parecem se aproximar dos movimentos da cannabis apenas com fins eleitoreiros.

Agora, pensando bem, o que será dos atuais comerciantes de maconha, que não param de ser encarcerados porque simplesmente atendem uma demanda social. Parece-me que apenas a criação de uma nova forma de organização do setor deve dialogar com o modelo de produção e distribuição vigente. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o cidadão preso traficando pequenas quantidades de drogas, se não possuir antecedentes criminais, poderá pagar pena alternativa, mas os juízes, orgulhosos de seu manto e do alto de sua cadeira, continuam a ignorar o precedente aberto pela estância máxima da justiça brasileira. A ilegalidade do mercado de cannabis é uma das responsáveis pelas mortes na periferia. É necessário abrir espaço para que os atuais empresários legalizem seus negócios, regularizando seus trabalhadores e desmilitarizando suas atividades; o mais provável é que diversifiquem ainda mais seu ramo de atuação no mercado ilegal quando não puderem concorrer com o mercado legal de maconha.

Ao invés de alçar vôos mais altos, o projeto mais radical de nossa política é inspirado no modelo português, fixando limites específicos de posse. Essa proposta poderia se adequar mais ao momento em que o Planet Hemp estourou nas paradas, e não agora, 20 anos mais tarde. A aprovação desse modelo é condenar à esterilidade todo um setor com grande potencial econômico, é atrasar ainda mais o Brasil em relação aos outros países, é fortalecer o crime organizado e prosseguir com a fracassada guerra às drogas.

http://coletivodar.org/2012/10/cartas-na-mesa-estatismo-e-cannabis/

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