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Projeto De Legalização Em Debate No Uruguai É Oportunidade Para Refletir Sobre Os Mitos Da Droga


Amigo Verde

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  • Usuário Growroom

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Diana Corso e Mário Corso

Psicanalistas


Para o gaúcho, o Uruguai é uma espécie de extensão territorial. Ele
frequenta suas praias geladas e sua hospitalidade quente, além de achar
que fala espanhol. Essa familiaridade não impede que lá usufrua da
sensação de estrangeiridade, já que de fato é outra cultura. Entre as
várias diferenças a se observar, está a idade média do uruguaio. Parece
um país de velhos. Os anos de chumbo, aliados a uma longa crise,
varreram gerações de jovens do país, quadro que só recentemente mudou.
Portanto, não há motivos para crer que a liberação regulamentada da
maconha, se for aprovada pelo senado uruguaio, vá transformar essa terra
numa Woodstock permanente. Diria que o país é mais conservador do que o
nosso quanto aos costumes.

É bom esclarecer, pois o mero anúncio
dessa possibilidade despertou uma onda de medo desproporcional. Muitas
pessoas, em geral leigas nessa questão, vaticinam o pior. A questão das
drogas facilmente abandona o patamar da razoabilidade: quando se trata
de diferentes formas de gozo, a paranoia assombra o pensamento.
Dividimos o mundo entre quem goza assim ou assado, o que pode e o que
não pode, tememos desejos não catalogados e ainda não domados, o velho
problema da tentação.

Sucumbimos ao pânico imaginário de que, se
experimentadas, essas formas diferentes de prazer nos dominarão,
ignorando que somos mais fracos na fantasia do que na prática. Torcemos
os dados e as experiências para explicar nossas crenças de que gozos não
admitidos põem em risco a civilização. O álcool e o cigarro não
trouxeram o apocalipse, mas a maconha o faria; sexo livre após a pílula
não nos jogou na devassidão, mas os homossexuais o fariam. O padre
interior que (todos) temos é convocado a vociferar contra a decadência
que estaria à nossa porta.

O que pode fazer possível essa nova
postura do Uruguai frente à maconha é puro pragmatismo, buscando uma
solução para o consumo endêmico da droga. Duas questões de fundo os
auxiliam nessa decisão: a tradição laica do país é muito marcante, o que
os religiosos pensam não pesa; segundo ponto: eles são mais críticos do
que nós na importação do modelo americano de saúde mental, contaminado
de um moralismo puritano, sob uma fachada científica. No Brasil,
aderimos com entusiasmo a essas ideias que economizam variáveis e
superestimam a influência química. Isso nos impede de buscar, como o
país vizinho, alternativas ao modelo fracassado da tolerância zero e da
criminalização de tudo que tem relação com as drogas.

O tráfico é
uma hidra, podem cortar as cabeças que elas rebrotam automaticamente.
Enquanto existir demanda e proibição, haverá tráfico. Tanto aqui como em
lugares com polícias melhores. Temos a ilusão de que a repressão
deixaria nossos jovens longe da droga. Isso não resiste a qualquer prova
de realidade, qualquer um que queira fumar maconha consegue sem
delongas. Apenas deixamos os usuários mais próximos de péssimas
companhias e transformamos a droga em ótimo negócio.

O que o
Uruguai quer fazer é parar de se enganar e encarar isso como uma
realidade que precisa de outra abordagem. A maioria dos que fumam não
quer parar e não se acha um drogado. Consideram que, se álcool e
cigarro, drogas comprovadamente perniciosas, são livres, por que não a
deles? E dizem mais: se nem todo consumo de álcool é alcoolismo, porque
qualquer consumo de maconha seria drogadição?

A maconha está
envolta em dois mitos. Primeiro: o de que seria uma droga leve, pelo
fato de praticamente não fazer internações. Sim, mas como os efeitos não
são agudos, ela pode fazer um estrago crônico. Não é sem consequências
acostumar-se a anestesiar a vida, cortando a angústia produtiva que nos
impulsiona e coloca questões. É bom lembrar que se pode fazer o mesmo
também com antidepressivos e ansiolíticos tomados sem indicação correta.
O outro mito é que ela seria uma porta de entrada para drogas mais
nocivas. O contato com essa população, especialmente os que fazem uso
recreativo e eventual, não nos dá margem para pensar isso. Aliás, várias
vezes encontramos o contrário: quem usa maconha, o faz para ficar longe
de outras, especialmente da cocaína, de maior potencial destrutivo. Se
for para pensar em porta, o álcool de longe parece ser a mais
escancarada.

Talvez o Uruguai tente sair desse conto da
carochinha que o drogado é fruto de um simples encontro com a droga e
que essa substância é um canto de sereia que o captura para uma forma de
gozo aprisionante e irrecusável. As pessoas não se tornam toxicômanas
apenas porque as drogas existem, isso ocorre porque algo vai muito mal
com elas, estão sem rumo e acima de tudo estão desencantadas com a
própria trajetória e com a vida. As drogas são automedicações contra a
dor de existir. Tanto que as desintoxicações não funcionam se não houver
uma retomada mínima de alguma significação para suas vidas. Sem a
droga, apenas retornam às suas existências vazias, por isso tantos
recaem.

A grande vantagem de demonizar algumas substâncias e
culpá-las pela nossa miséria é a de nos colocar fora da equação.
Enquanto pais, não precisamos nos confrontar com a educação falha,
omissa, ou vazia de sentido e valores que proporcionamos. Tampouco
precisamos olhar para as drogas lícitas, largamente usadas e abusadas,
mas que sendo “receitadas” seriam menos aditivas ou daninhas. Nem
refletiremos sobre o preço que pagamos por viver numa sociedade baseada
no consumo supérfluo, que acredita que a felicidade se compra com gadgets.
A droga é apenas uma modalidade de consumo específica, mas o fundamento
é o mesmo: existiria um objeto que possibilitaria um atalho para a
felicidade. Ou seja, buscamos um sentido fora dos laços humanos para nos
satisfazer. O drogado é um consumidor levado às extremas consequências.
Dar todo esse poder a um objeto é uma mentira atraente, tão logo
desmascarada pela urgência de continuar consumindo. Qualquer comprador
conhece a sensação de saciedade triste, passada a novidade. Toxicômanos,
o que não é o caso de todos os usuários de determinada substância, são
apenas aqueles cuja vida se reduziu a muito pouco, a uma luta inglória
contra o próprio vazio, uma sucessão interminável de encontros com seu
objeto de obsessão, de saciedades, que deixam lugar a um buraco ainda
maior. Por isso os drogados são descontrolados, porque sem esse
encontro, e mais a cada novo encontro, descobrem-se nada, ninguém. O
detalhe é que não se cai nessa tentação de reduzir-se a tão pouco sem
sentir-se já previamente miserável de valores e de esperança.

O
pânico de que a maconha leve massas de jovens à drogadição se baseia na
ignorância de que o que leva alguém a ser assim não é uma droga mais
leve, consumida anteriormente, mas sim uma subjetividade de horizontes
mínimos. A saída para quem se sente e espera tão pouco acaba sendo a de
levar uma existência dedicada a esse prazer agoniado, ao encontro dessa
paixão simplória. Se partirmos do pressuposto de que essa tentação é tão
irresistível para tantos, o leitor há de convir: o problema não são as
drogas, somos nós.
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