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Internação Compulsória: Retrocesso Na Política Sobre Drogas


CanhamoMAN

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  • Usuário Growroom
Internação compulsória: retrocesso na política sobre drogas

Após assistir atônita às chamadas “audiências públicas” sobre drogas (o evento mais parecia um debate público, e não o que conceitualmente se denomina audiência) promovidas pela Câmara Municipal de Rondonópolis, não pude deixar de registrar minha indignação e perplexidade diante das propostas descabidas veiculadas pelos vereadores desta casa legislativa. O primeiro ponto é a falta de conhecimento, explicitada pelas falas cheias de conceitos e preconceitos do senso comum, morais ou religiosos. Não quero dizer que esses saberes não são legítimos, mas para um assunto tão importante, polêmico e urgente como a questão do uso de drogas em nossa sociedade, é necessário um aprofundamento no conhecimento científico do tema. Parece que as pessoas nessas audiências tinham o ouvido fechado para as pesquisas científicas, para os estudos sérios sobre o assunto, ou mesmo para os paradigmas atuais da política de saúde no Brasil, pois, a cada vez que alguém tentava mostrar esse lado da questão essa pessoa era cortada, ignorada, ou ainda, rebatida com veemência.
A questão da droga em nossa sociedade é grave e polêmica, todos já sabem disso. Todo mundo tem sua opinião, todo mundo acha que sabe a solução para o problema. Ocorre que, nenhuma das soluções propostas são 100% efetivas. É justamente essa falta de certeza que permeia a questão e que as pessoas querem eliminar. Claro que seria fácil achar uma única solução, que fosse eficaz para todos e que pudesse ser colocada em prática em curto prazo. As pessoas estão ingenuamente buscando essa solução mágica ou milagrosa. Só que isso, claramente, não existe. Se existisse, já teríamos solucionado o problema há milênios. Afinal, o homem usa substâncias para alterar o estado de consciência desde que o mundo existe. A própria política sobre drogas da SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas) já reconhece isso, ao colocar, em seus pressupostos, “buscar, incessantemente, atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas”, ou seja, a palavra ideal não está aí de graça, ela indica que uma sociedade sem drogas só pode ser utópica.
O mais grave é a elaboração da Lei de Internação compulsória pelo vereador Dr. Manoel que mostra uma total falta de conhecimento da Política de Saúde Mental vigente no país e da própria Política Nacional sobre drogas. A proposta em questão ignora os avanços alcançados pelo movimento de Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial em curso no país desde a década de 80 e que tem, progressivamente, desativado os manicômios e leitos nos hospitais psiquiátricos, promovendo a desinstitucionalização. A Lei 10.261 de 2001 foi o marco legal que reorientou toda a mudança do sistema de atenção ao usuário de saúde mental, incluindo aquele que faz uso de drogas. O paradigma atual é de uma atenção em meio aberto, no território, com equipes interdisciplinares e pautada nos princípios de redução de danos, liberdade e direitos humanos. Desde então, o Ministério da Saúde tem investido maciçamente nas redes substitutivas ao hospital psiquiátrico, criando os dispositivos de CAPS, NASF, Residências Terapêuticas, Unidades de Acolhimento Transitório, Consultórios de Rua, Matriciamentos e ações na Atenção Primária, e outros, para dar conta de uma atenção que é complexa, que deve ser feita de modo articulado e no próprio seio da comunidade e da família, onde estão os conflitos e também as possibilidades de reconstrução dos laços sociais das pessoas que fazem uso problemático de drogas. Essas políticas não aboliram as internações, consideradas necessárias em algumas situações urgentes e de crises. Mas estas internações devem ser feitas por períodos curtos, em hospitais gerais e apenas como medidas complementares e paliativas na atenção ao usuário, que deve continuar seu acompanhamento com equipe de saúde mental nos CAPS ou em outros pontos da rede.
Existe uma vasta literatura disponível sobre o assunto, estudos sérios sendo publicados que indicam que as estratégias pautadas na longa internação, com total abstinência são dispendiosas e ineficazes na maioria dos casos. Poucas pessoas, (menos de 10%, pelos estudos) conseguem manter a abstinência após uma internação e o que se vê é um fato que foi comprovado nas próprias audiências na Câmara, na fala de muitas pessoas: um ciclo interminável de reincidências e reinternações. A maioria das pessoas que já foi internada voluntária ou involuntariamente retornou no mesmo ano, algumas no mesmo semestre. Ou seja, prova cabal de que uma internação não é a solução. Mas por que as pessoas insistem tanto nessa tecla? Para algumas pessoas creio que falta conhecimento mesmo. Ao que tudo indica, boa parte das pessoas que estava nas audiências não tinha conhecimento consolidado sobre os estudos sociológicos, da política sobre drogas, da história do uso de drogas na sociedade, enfim, algum embasamento para seus argumentos. Pelo tom dos argumentos parecia que a maioria desconhece qualquer estudo sério sobre o assunto. Muitas famílias, sofridas e desgastadas com o problema, vêem na internação uma forma de tratamento, mas também de um descanso, pois assim elas têm um tempo sem a pessoa ali a dar tanto trabalho. Entende-se até os argumentos de uma mãe que quer solucionar o problema de fato, mas percebe-se que nenhuma outra alternativa foi apresentada à ela, somente a internação. No entanto, algumas pessoas, denotavam uma preocupação em se livrar do problema, em tentar solucionar isolando o usuário da cena social, um indício de que as ideias higienistas do século XIX ainda sobrevivem…
Existe uma cartilha básica da SENAD dirigida aos cursos de formação que desaconselha claramente as intervenções pautadas nas decisões autoritárias, como as internações compulsórias, desaprova as internações de longo prazo e recomenda as ações de redução de danos. Diz o livro:
“Assim, as abordagens terapêuticas não devem ser baseadas apenas no afastamento, eliminação da droga do organismo ou reversão das alterações neuropatológicas; devem estender-se também aos aspectos psicológicos (por meio dos vários recursos psicoterápicos) e socioculturais (como a atenção à família e a reinserção social). Apesar disso, ainda existem, no Brasil, profissionais e instituições que propõem tratamentos baseados unicamente no afastamento da droga por meio de internações (muitas vezes prolongadas) ou somente na administração de medicações. Da mesma forma que uma compreensão biológica simplista, a articulação de uma visão moralista do uso de drogas com o proibicionismo provoca propostas equivocadas de tratamento, como a ideia de que disciplinar, punir ou impor a religiosidade podem, simplesmente, afastar o “desencaminhado” do mundo das drogas. Ainda mais frequente do que os equívocos descritos é a proposta, geralmente associada à estratégia proibicionista, de exigir abstinência imediata para todos os pacientes que iniciam tratamento.”
O livro ainda apresenta que os melhores resultados são obtidos com a adesão da pessoa ao seu tratamento, com a devida motivação suscitada por meio de relações de vínculo com os profissionais que oferecem a atenção. Ou seja, as internações involuntárias e compulsórias podem até permitir um período de desintoxicação e afastamento, mas não promovem esses elementos que facilitam a abordagem terapêutica, que só pode se fundar numa relação de vínculo e de autonomia do sujeito.
Portanto, as internações de longo prazo são desaconselháveis, por serem altamente caras e ineficazes. Sem falar nas estruturas precárias de várias comunidades ditas terapêuticas, que não oferecem o mínimo para uma atenção qualificada ao usuário. Nem vou entrar aqui na questão da violação de direitos humanos que acontece nessas comunidades, amplamente relatadas no Relatório de Inspeção de Comunidades Terapêuticas realizado em 24 estados brasileiros pelo Conselho Federal de Psicologia.
Em Rondonópolis já existem os dispositivos substitutivos ao hospital psiquiátrico e que estão se preparando e se capacitando cada vez mais para atuar com eficácia. Existem editais abertos constantemente para que o município adquira verbas e capacitações para ampliação desta rede. A secretaria de saúde tem se esforçado em implantar e implementar essa rede para que fique cada vez mais abrangente e eficiente. A UFMT tem diversos projetos com financiamento do Ministério da Saúde para implementar políticas de atenção e prevenção ao uso de drogas, como, por exemplo, o PET-Redes “Matriciamento de ações de saúde mental na interface crack e outras drogas”, em execução desde agosto de 2013. Ainda faltam outros dispositivos no município, como residências terapêuticas e unidades de acolhimento transitório. No entanto, a rede está em plena expansão, com a conquista do CAPS AD III e a Unidade de acolhimento que será construída junto a ele, além do projeto de Consultório na Rua. A pergunta que não sai da minha cabeça é: “Por que os nossos ilustres vereadores não se dedicam a estudar essa política e auxiliar na implantação dela no município, ao invés de propor um projeto de lei contra a corrente?”
Toda a sociedade rondonopolitana deveria estar perplexa com propostas como estas, que buscam resgatar do passado paradigmas ultrapassados e falíveis. Não nos enganemos: para problemas complexas, necessitamos de respostas complexas. Soluções simplistas que almejam a solução milagrosa, em situações como estas, sem um estudo aprofundado, podem conduzir ao pior: as melhores intenções levaram pessoas a defender o nazismo, o fascismo e as ditaduras militares.
Portanto, a minha perplexidade só aumenta quando vejo pessoas leigas no assunto propondo leis que se configuram em retrocesso. As diretrizes nacionais e as verbas do Ministério da Saúde estão direcionadas para a ampliação da rede substitutiva, para a desativação de leitos psiquiátricos e fechamento de hospitais, até a completa desinstitucionalização. E em Rondonópolis, há um segmento propondo um retorno ao século passado cujo paradigma era a hospitalização, o isolamento e a exclusão das pessoas que portavam a marca da diferença. Os indesejáveis de todo tipo eram segregados em grandes instituições que, ao crescerem vertiginosamente, isolando as pessoas do convívio social, viraram os terríveis manicômios, onde os horrores se comparam aos praticados nos campos de concentração nazistas.

(*) Noemi Bandeira, docente na UFMT, mestre em Psicologia e Sociedade pela UNESP

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