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"O unicórnio azul não vai nos salvar das drogas", afirma sociólogo argentino


Gustavou

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  • Usuário Growroom

Segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Com a destreza discursiva de quem está convencido do que diz, porque já se escutou falando mil vezes, Alberto Calabrese sustenta que, em matéria de drogas, “o mundo inventou um problema onde não existia”. A afirmação, inclusive para os difamadores de Eduardo  Feinmann[1], soa no mínimo controvertida, até mesmo zombeteira. Como este homem grisalho de gravata e colete vai dizer que o assunto que hoje inunda os televisores e as agendas eleitorais é uma invenção? Como se atreve a desafiar uma realidade tangível, próxima: amigos mais, familiares menos, todos temos algum conhecido que acabou internado ou submetido a tratamento ambulatorial para deixar uma substância que lhe trouxe problemas.

Entretanto, com corpo e língua bem soltos, este sociólogo, que foi presidente do Fundo de Ajuda Toxicológica[2], que assessorou a Chefia de Gabinete dos Ministérios da Nação Argentina em matéria de drogas e que dirige o curso de especialização em prevenção e assistência das adições da Universidade Nacional de Tucumán, assegura que diz o que diz porque o proibicionismo é “relativamente novo” e gerou, em torno de si, uma ferramenta para o controle populacional e um negócio transnacional: o narcotráfico. Por isso, implícita e explicitamente, Calabrese ri dos que prometem “acabar com o flagelo da droga”, e até tira sarro daqueles que juram ter receitas para “pôr fim ao narcotráfico”.

Calabrese não pretende ser um “urubu” e estragar o dia dos que querem acreditar nos que “farão uma guerra contra o narcotráfico”.  Mas este, docente que participou das II Jornadas de Extensão sobre o Consumo Problemático de Substâncias que ocorreu em meados de setembro na Faculdade de Psicologia de Mar del Plata, ocupa-se, isto sim, de romper com ilusões, com base numa explicação com proposta e tudo.

Calabrese fala da necessidade de conhecer e de transitar pelo paradigma da redução de danos...

—O que você entende por “consumo”, o que entende por “adição”, e o que entende por “consumo problemático?

—A princípio, as substâncias são como qualquer objeto. Ou seja: nós é que lhes colocamos condições, ou as ressignificamos a partir do que elas nos representam. Eu vou tomar alguma coisa porque me tranquiliza ou porque me dá alegria. Sou eu quem está buscando esse efeito, não a substância que o busca em mim. Temos que pensar como e por quê nos relacionamos com a substância.

É algo parecido com o que acontece às pessoas entre si: nós não lidamos com todo mundo de modo igual.

Com algumas pessoas nos encontramos, nos cumprimentamos e ponto; com outras temos uma afinidade determinada e nos vemos uma vez por semana, e com isso já existe uma regularidade de tempo e espaço. Isso seria, transportando para as substâncias, algo habitual que – eventualmente – pode chegar a ser problemático, dependendo dessa habitualidade. O “problemático” é estabelecido por quantas vezes, e em qual período de tempo.

Assim, para definir abuso, temos que falar de uma regularidade conflitiva, também em relação a quantidades de tempo e espaço. Por outro lado, o que chamamos de “hiperconsumo” ou “dependência” pode se ligar a qualquer coisa que consumamos compulsivamente, não só as substâncias proibidas. A dependência é o “viver para”. Toda nossa vida se centra e orbita ao redor de estar consumindo esse algo que nos gera certo prazer. Pode ser o trabalho, uma substância, um objeto.

Deve-se levar em consideração que o consumo e a dependência são muito mais acentuados com relação a objetos e substâncias que não estão proibidos e que são usados, mais do que os que estão proibidos.

—Que estão proibidos há relativamente pouco tempo...

—Sim, é um fato recente no tempo. A proibição tem apenas 55 anos de produção em escala mundial e surgiu de uma resolução da ONU de 1961. Quer dizer: a cocaína, a morfina, a heroína e outros tipos de substâncias psicoativas não estão proibidas desde que Adão e Eva foram expulsos do paraíso, apesar de podermos fazer um paralelo entre a saída do paraíso e o consumir a única coisa cujo consumo não era permitido. Isso demonstra que as drogas se prestaram a outras funções: controle populacional e um grande negócio. Um negócio que envolve dois bilhões de dólares por ano. Isto é, uma estrutura difícil de ser desativada, porque pressupõe e envolve muitos interesses. Formalmente, todo mundo diz que se deve acabar com esse tema, mas a realidade é que esse assunto hoje tem uma tal importância na produção econômica que muitos são favorecidos pelo fato de a proibição se manter, em termos negociais.

—No contexto de um sistema capitalista, a ideia do consumo não só está legitimada, como também é fundante, estrutural. Agora: o consumo de drogas parece que não estaria legitimado, é a parte má do consumo, o lixo. Se fizéssemos de conta que a droga é um cesto de lixo, o que é que nós, como sociedade, estamos jogando aí dentro?

—Sem dúvida, quando se coloca tanta ênfase numa sociedade que pede que consumamos tudo, de tudo e a todo tempo, o que nos estão dizendo – aliás, não querem que tenhamos só uma calça, mas muitas –, é que os consumos são possíveis e servem para alguma coisa. Agora isso de que você tem que consumir de tudo, menos deste produto X, isso é reproduzir, de alguma maneira, o paradoxo do paraíso terreal: de todas as árvores comereis, menos daquela árvore da ciência do bem e do mal. As substâncias proibidas passaram a ser a moderna árvore da ciência do bem e do mal, com dois fatores agravantes: por um lado, fabricam um formidável negócio; por outro, funcionam de cesto de lixo para jogar vários problemas juntos. Nós os conjugamos e os recriminamos com base nessa substância. Se um cara tem problemas de violência e consome alguma substância, pronto: não se olha para nenhuma outra coisa, não se pensa que as raízes dessa violência podem ser o lugar onde viveu e onde lhe coube nascer. Isso é o que não é visto, simplesmente se atribui à substância o fato de que esta pessoa seja violenta. O mesmo se passa nos lares desajustados, se passa nos crimes incompreensíveis. É mais fácil ter algo que resuma tudo. O que se deve analisar são as causas da violência. Pensar que ela é produzida pelo consumo de tal ou qual substância é ingênuo. Às vezes, as substâncias podem agravar o quadro, claro. Mas de fato, se hoje temos que falar de uma substancia que é criminógena como metonímia, essa substância é o álcool. O álcool é o grande fator criminógeno do mundo, o grande impulsor da maioria das condutas antissociais, de brigas, danos, ferimentos, enfrentamentos.

Um velho aforismo dizia que “a sociedade tem problemas, esses problemas não são sustentados pelas drogas; esses problemas é que sustentam a existência e a continuidade do consumo de substância”. Isso se dizia nos anos 70 e, apesar dos anos, continua sendo válido.

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—A partir desse paradigma proibicionista, o que justifica que tenham deixado de fora o álcool e tenham censurado outras substâncias?

—Segundo a Organização Mundial da Saúde, o álcool e o tabaco são dois dos grandes protagonistas dos danos por substâncias, que também são psicoativos apesar de não estarem proibidos. A nicotina é um estimulante e o álcool é um depressor. De maneira que a diferença está no lugar que foi atribuído arbitrariamente a tais ou quais substâncias psicoativas, que o são simplesmente porque têm ação sobre o sistema nervoso central.

Chama a atenção também que as substâncias psicoativas não são quatro, são dez mil. Na natureza e nos produtos vendidos em farmácia há muitos alucinógenos. No desenho de drogas também, elas existem de todas as cores. Então, esta escolha de proibir com nome e sobrenome teve a ver com uma coisa discursiva, independentemente da boa intenção que possam ter tido em fazer as pessoas se distanciarem de algo que pode causar danos.

Mas também tem outra coisa: as drogas com nome e sobrenome servem para exercer um controle populacional. Isso se nota muito quando se vê quais substâncias são consumidas pelas pessoas com menos recursos, e quais pelas pessoas de maior renda. Por isso se persegue uma droga e não outra. Não se pretende controlar os que têm, mas aqueles a quem falta. A maioria das estatísticas, inquéritos e processos são dirigidos contra pessoas de baixa renda. O sistema de atenção social se focaliza sobre eles, que além disso ainda são as cobaias de todas as experiências, estatísticas, pesquisas, preocupações políticas etc. Os consumidores com recursos não são matéria de análise nem de persecução. Existe algo de classe, bem de um sistema desigual e injusto, mesmo que hoje o consumo esteja universalizado.

—Há uma visão moralista sobre o consumo de substâncias. Não se quer falar das zonas prazerosas do consumo. Não é bom porque é mau, e ponto. Entretanto, também existem consumos decididos a partir do prazer, apesar de alguns acreditarem que se trata de um descontrole que desaba como efeito dominó.

—Isso, de fato, tem a ver com o primeiro desejo de uma pessoa que consome substâncias. Seu primeiro contato tem a ver com o prazer. Não consome pensando que vai consumir para que lhe faça mal. Ela decide consumir porque crê que vai lhe fazer bem ou lhe dar prazer. Se depois ela se equivoca porque tem uma relação distorcida com esse objeto ou substância, aí já é outra história. Mas o primeiro que vai fazer é buscar sustentar o prazer.

Só que de outro lado, também como sociedade, a nós cai bem não entender o assunto nesses termos, para podermos concentrar em poucas coisas e pessoas a ideia do dano. Então, queremos circunscrever a uma classe de pessoas que, pelo que consomem, já têm o mote da essência do dano como algo predeterminado. Por exemplo: você não vai ver grandes procedimentos com a questão do ecstasy. Nem mandados de busca e apreensão nos lugares onde se consome de forma significativa esse tipo de droga. Você vai ver intervenções por consumos “básicos”, inclusive não intensivos, de maconha, pasta base ou de alguma cocaína barata. E isso tem a ver com algo concreto: é mais fácil que você visualize uma conduta X em alguém que você quer controlar, e você pode fazê-lo através da substância que ele consome. Então você o pega e o trata massivamente: com o sistema público, com o privado, com o sistema mais ou menos.

Caso contrário, não se explicaria por que tantos interesses sobre eles, quando se tem tanta quantidade de pessoas com problemas de psicoses não tratadas quanto há gente com problemas com drogas. Porém, para gente com problemas com drogas há voluntários de todas as cores. Há instituições públicas, privadas, municipais, nacionais, provinciais. E existe um paralelo para as situações de quando os problemas de saúde mental são severos? Não. Toda essa gente tem onde ser tratada? Não.

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Por alguns momentos, Alberto Calabrese se indigna. Dá pra notar, mas ele dissimula. Ele o faz com estilo e escolhe uma estratégia: visibilizar a partir do humor o absurdo do papo de “homem pouco sério que diz que, se algum dos candidatos determinasse a abstinência total da população, este tema das drogas não seria mais uma questão, seria história”[3]. Ele gira seus olhos. Franze um pouco os lábios, junta os cinco dedos das mãos e as agita no ar, e afirma: “se este senhor acredita que os anjos têm um sexo determinado, tudo bem, que ele acredite; mas ele deve saber que faz parte – como o unicórnio azul – das fantasias. Esse homem está pedindo o impossível, e há alguns que prometem que vão fazê-lo”.

—Já falamos sobre o que a sociedade debita na conta do consumo. O que você considera que a classe política, o candidato, o administrador do Estado, estão debitando na conta das drogas?

—O político trata de demonstrar, sobretudo quando está em campanha ou corrida eleitoral, que ele vai ser eficiente para tratar tudo o que causa dano, e controlá-lo rapidamente. Outro dia, escutei um senhor que estava deixando o governo da sua província e prometeu uma luta frontal e definitiva contra o narcotráfico, que é como se agora eu quisesse voar sem asas e para isso eu subisse no telhado aí da frente: sei que vou me estatelar, que não terei resultado. Quanto mais declarações pródigas eu fizer sobre a minha atuação, as pessoas parece que compram, na medida em que já estão condicionadas e dizem: “bom, este sim me representa e vai lutar contra o que eu temo”.

Bem, eu me explico, porque ainda há várias coisas que são mitológicas: por exemplo, as pessoas dizem que se a fronteira fosse impermeável, não haveria drogas. Mentira. Fronteira mais bloqueada do que a dos EUA não existe e, mesmo assim, há drogas. Algumas são fabricadas lá mesmo e outras são importadas. Os EUA têm aviões e foguetes em todo o país para garantir sua defesa, quer dizer, nem uma pipa com dez gramas de cocaína poderia entrar voando sem que eles percebessem. Se acontece, é porque existe um sistema de corrupção que o permite. Fácil assim. Enquanto que no México montam uma guerra civil, nos EUA habilitam um negócio delimitado e controlado. Mas é o país mais consumidor do mundo.

Outra [coisa mitológica] é essa de que teriam que proibir todas as substâncias que não são produzidas no país. E qual vai ser? Não vão continuar se drogando com drogas de farmácia, se for necessário? De fato, a Argentina começou assim o seu consumo problemático. Até a ONU chamou a atenção da Argentina, por perceber que era possível sustentar um fenômeno massivo de consumo através de substâncias do circuito farmacológico. Se hoje você perguntar a qualquer chefe de serviço de vícios do país qual é a principal causa de morte aos fins de semana, entre os sábados de madrugada e domingo de madrugada, vão te dizer que são as misturas de álcool com produtos de farmácia. Não por cocaína, não por heroína – que por sorte na Argentina nem funciona –, e menos ainda por maconha, porque ninguém morre por overdose de maconha.

Então, se quisermos, podemos repetir a imagem paradisíaca de que estamos num paraíso que, não fosse pelas drogas, não teria problemas. Mas suprimimos as drogas e não vamos suprimir os problemas. Isso é mentira. Se suprimíssemos todas as drogas hoje por um passe de mágica ou se pudéssemos simplesmente apertar um botão, a pobreza estaria igual, a fome estaria igual, os motivos das guerras civis estariam iguais, os motivos de exploração humana também, e as tecelagens clandestinas e as milhões de coisas que a inconsistência do ser humano significa. Tudo estaria igual. Hoje, através da droga, essas coisas têm um motivo de manifestação. Por isso, há droga.

Além disso, é hora de trabalharmos o tema de maneira menos heroica, mais cotidiana, mais natural, mais estruturada sobre outros motivos da realidade. Se isso ocorresse, não teríamos tantas dificuldades.

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—E o que acontece com os que não têm fome, falta de casa ou não sofrem exploração?

—Sofrem o contrário. Eu me lembro de um velho juiz da vara da infância e juventude que atuava na Grande Buenos Aires. De um lado, estava um dos bairros mais caros do país; do outro, uma das maiores favelas da região. Ele sempre dizia a mesma coisa: “temos aqui duas classes de abandonados: uns pela falta de elementos, recursos e possibilidades; outros, pelo excesso. Seus pais não sabem o que fazer com eles. Dão-lhes dinheiro”. E eu acrescentaria: tudo que teria a ver com ocupação pessoal é transferido ao dinheiro, e o dinheiro não é resposta anímica a nada, nem de nada.

—Você está dizendo que o consumo foi universalizado e que existe uma relação direta entre substância, classe social e tipo de consumo. Entretanto, você dá a entender que as respostas do Estado não mudaram muito e continuam sendo as respostas “históricas”, porque o discurso é o mesmo. Você culpa, nesse sentido, a um “casamento maldito”. Quem é que se casou?

—Trata-se de um mix entre o que se dá no pensamento médico hegemônico sanitário – que crê que ao definir as substâncias ditas perigosas e dizer às pessoas que não as consumam, é o que basta – e o marco ético-jurídico atual, que é punitivo e proibicionista.

O discurso médico pode levantar a bandeira de que determinada coisa – neste caso, uma substância – se reproduz por si própria. Isso quer dizer que funciona como se fosse um ser biológico, como por exemplo uma bactéria ou um vírus que têm vida própria e que estendem a sua vida deixando você doente porque eles, simplesmente, têm que sobreviver.  Mas as drogas são inertes, são iguais a este copo aqui. Dependendo do seu uso, isso vai ou não condicionar você. As drogas por si próprias não são capazes de gerar nada. Somos nós humanos que vamos até as drogas. É um fenômeno antropológico. Não são as drogas que nos aprisionam, mas nós é que vamos até a substância. Se o modelo médico não ajuda a entender isso, não ajuda a entender que há uma operação que tem a ver com o psiquismo, com a forma de entender desta pessoa, com suas questões que o condicionam ambientalmente – porque sempre dizemos que para qualquer enfermidade se necessita um indivíduo, ambiente e agente patógeno – estamos perdidos. Então, se esse discurso se mantiver nesses termos, ele não esclarece; simplesmente assusta, dizendo “isto te faz mal, isto te faz mal, isto te faz mal”, e as pessoas compram a ideia. E a isso se soma, então, uma eticidade jurídica que demonstra que o dano causado à pessoa, neste caso, é um dano particular, especial. Quando se juntam os dois, tem-se um coquetel explosivo, que até agora não serviu para nada além de causar mal, estigmatizar e criminalizar.

Já se vão 55 anos de um discurso combinado sem resultados perceptíveis; ao contrário, cada vez se amplia mais o consumo.

—Qual é exatamente a questão relativa aos fatores de usos e costumes quanto ao consumo?

—Quando algo se estende em usos e costumes – e isso é algo que ajudou a dar significado à proibição – faz-se impossível desarraigar. E os usos e costumes sobre o uso de substâncias psicoativas proibidas estão mudando, há apropriação, e portanto vai haver costumes e maneiras distintos dos que há hoje. Agora, somente dizer que “te faz mal” não basta. Temos que tratar de ver por que as pessoas consomem, e ver o que buscam resolver com isso – inclusive se for por mero prazer – e tratar de sustentar em cada lugar o sentido de pertencimento, de vida e de projeto. Sem essas coisas, teremos consumo compulsivo, ou uso irresponsável, ou ações de risco para somente sentir adrenalina, porque às vezes avançar por uma ponte de olhos vendados é mais gratificante do que obedecer à norma. E até agora, o sistema público e muito do sistema privado não mudaram a ótica a partir da qual se analisa o fenômeno do consumo problemático de drogas.

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Alberto Calabrese deve ter uns tantos anos. Seu currículo diz que fez mil coisas. Que, além de graduar-se sociólogo, trabalhou na Sedronar[4], assessorou Aníbal Fernández[5] e trabalha para o Ministério da Saúde da Nação Argentina. Também aponta que ele é o responsável pelo curso de Especialização em Adições da Universidade Nacional de Tucumán, e que é diretor do Mestrado sobre Uso Indevido de Drogas, que na sede da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires faz com que confluam e se articulem as faculdades de Direito, Medicina, Ciências Sociais, Farmácia e Bioquímica.

Alberto, segundo esse currículo, é um montão de coisas que requerem capacidade de articulação. Ele o é graças à “desconstrução” (e recomendou isso aos “profissionais do campo da saúde”). “Nós não podemos assumir o papel de apontar o dedo e dizer a tal ou qual que ele é um adicto ou não o é. Em todo caso, pode-se falar de um humano com falências, com sofrimentos, e há que aprender a tomar para si a responsabilidade por eles. Se antes de mais nada, como agente de saúde, tomo para mim a responsabilidade pelo sofrimento mas não pelo prejuízo do sofrimento, aí posso me responsabilizar pelo ser humano. Senão me responsabilizo pela condenação. E assim, é melhor nem ser um ator da saúde, porque você será um ator da repressão”.

—Por tudo isso, você diz que o mundo, em matéria de drogas, acabou construindo um problema onde não havia?

—Sim, é isso mesmo, eu creio que o mundo criou um problema em torno das drogas. Conto-lhe em forma de imagem: o edifício [da ONU] que existe em Viena, dedicado às reuniões que se fazem sobre drogas, é tão grande quanto o que existe para a energia nuclear, e creio que as variáveis que intervêm nos dois temas são bem diferentes e seria muito mais lógico que o de drogas fosse menor, mas não. Têm o mesmo tamanho.

O mundo colocou o pensamento sobre o assunto numa situação de precariedade; entretanto, sim, é verdade que existe algo de pensamento crítico. É pouco e ainda não produz resultados encampados pelo discurso oficial, salvo esses intentos tímidos de alguns Estados como o Uruguai, que exclui a penalização sobre a substância maconha para tratar de fazer um recorte que tenha a ver mais com a legalidade, e para tentar, como efeito secundário, que haja menos pessoas consumindo crack.

Eu creio que vai chegar um ponto em que, a partir da racionalidade, isso tudo não vai mais se sustentar. Não há discussão séria em matéria de drogas, há preconceito e medo.

—Muitos de nós olhamos o processo do Uruguai. Falam do paradigma da redução de danos. O que é? É esse o rumo que devemos tomar?

—A política de redução de danos se pergunta que sentido faz que tais ou quais substâncias estejam no espectro da proibição. Se bem que essa é a última pergunta, ela é a decisão fundamental.

Mas o que é a redução de danos: é tudo o que se pode fazer para evitar que uma pessoa consuma algo ou evitar que o faça em níveis que lhe possam trazer algum tipo de transtorno. A redução de danos pode ir desde a prevenção inespecífica para lograr construir sentido e conseguir que as pessoas se interessem pelo tema, até falar do que eu chamo de “senso de transformação”, porque a prevenção tem que ser transformação – já que, como mera advertência, não serve para nada. A prevenção é transformação, ou então não é nada.

A redução de danos está bastante ligada ao fracasso, porque talvez a pessoa tentou muitas vezes deixar a adição e fracassou. Então, você tem que ver nesse caso como essa pessoa pode ter uma vida responsável com graus de consumo mais baixos. Ou inclusive até poder chegar a deixar de consumir, mas a partir de uma evolução. Não há que se pedir a abstenção, porque senão caímos na atitude moralista que temos hoje, quando vem um cara com problemas de drogas e o primeiro que lhe é dito é que fique em abstinência, e logo nós vemos o que lhe acontece para que ele chegue à abstinência. Isso às vezes é mais difícil que subir descalço um telhado cheio de óleo.

Ou seja, é quase algo impossível; mas, possivelmente, se você acompanhar essa mesma pessoa para que ela faça uma substituição por outras substâncias, ou para que diminua o uso daquela mesma substância, ou com um sistema de contenção de pessoa a pessoa que lhe permita repassar esses problemas que são acalmados com o uso de drogas. Em localidades da Europa, por exemplo, se implementa a lógica “droga por droga”, tentando a redução do uso de uma droga no tempo, negociando com apoio para que não se consuma tanto, e isso está dando resultados. Esse programa também se faz no Canadá com o consumo de álcool.

Com um “deixe de consumir” não se consegue. Pode-se deixar momentaneamente de consumir, mas não existe de fato mudança alguma sore o que leva a pessoa ao consumo compulsivo, então ela vai buscar esse objeto em algum outro lado. As abstinências forçadas geram consequências graves.

Por Andrea Pérez Calle – Fotos: Facundo Nívolo
Tradução e notas de rodapé: Carlos Francisco Marcondes Junior
 
Artigo publicado originalmente no portal Revista Ajo, edição de outubro de 2015 
Tradução e publicação autorizadas pelo Editor, no Brasil, mediante licença copyleft.
[1] Um jornalista conservador do rádio e televisão argentinos, que empreende abertamente uma cruzada contra as drogas.
[2] O Fundo de Ajuda Toxicológica, criado em 1966, foi a primeira ONG argentina voltada ao apoio a dependentes de álcool e drogas.
[3] Ao tempo da entrevista, a Argentina estava em plena corrida presidencial.
[4] Secretaria de Planejamento para a Prevenção da Drogadição e a Luta Contra o Narcotráfico, órgão do Governo argentino.
[5] Político argentino ligado ao Kirchnerismo. Foi Senador, Ministro da Justiça e Chefe de Gabinete da Presidência, entre outros cargos de relevo.

 

Fonte: http://justificando.com/2016/01/18/o-unicornio-azul-nao-vai-nos-salvar-das-drogas-afirma-sociologo-argentino-/

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