do fórum Marcha da Maconha
Vitor Pordeus
Médico pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa do Hospital Pró-Cardíaco e do Center for Autoimmune Diseases, Sheba Medical Center, Tel Aviv University, Israel.
“A parte maior de nossa população é mantida numa bruma luminosa de afirmações e superstições antigas, por seus padres, príncipes e donos de terra, que esconde as maquinações dessa gente…
…O nosso recurso novo, a dúvida, encantou o grande público que arrancou os telescópios de nossas mãos e apontou-o para os seus carrascos”
Bertold Brecht em Vida de Galileu.
Pode até ser surpreendente, mas a “satanizada” maconha é um dos mais antigos remédios utilizados pelo homem. Seu cultivo e consumo pela humanidade são tão antigos que torna difícil determinar sua origem exata. O registro mais antigo é de aproximadamente 4000 antes de Cristo na China e sua origem, acredita-se, é na Ásia central. A primeira evidência de sua utilização médica data de 2737 a.C., quando o imperador chinês Shen Nung, também descobridor do chá e da efedrina, descreve as suas propriedades terapêuticas, em um compêndio de ervas medicinais chinesas. Na medicina ocidental, a introdução da erva ocorreu em 1839 e é atribuída a William O’Shaughnessy, médico-cirurgião britânico, que trabalhou na Índia. O Dr. O’Shaughnessy descreve então as propriedade analgésicas, estimuladoras de apetitite, inibidoras de vômito, relaxantes musculares e anticonvulsivantes da cannabis.
A partir daí, houve uma importante expansão de sua utilização no império britânico, culminando no ilustre caso da própria Rainha Vitória, que utilizava maconha para o alívio de suas dores menstruais. Em 1854, a maconha é listada na farmacopéia dos Estados Unidos e é vendida livremente nas farmácias do ocidente, permanecendo assim por mais de 100 anos.
Essa história vai se transformar radicalmente na a década de 1930, quando o governo norte-americano flexibiliza a proibição do álcool e, por motivos políticos e econômicos, e não médicos nem científicos, direciona toda a máquina estatal anti-álcool, agora sem uso, para a Canabis. Nesse momento chamada de marijuana em referência à indesejada imigração mexicana que tradicionalmente utilizava a erva. Inicia-se uma escalada proibicionista contra a cannabis. O primeiro passo ocorreu em 1937, com a Lei de taxação da maconha, que instituiu o imposto de 1 dólar por ounce (28 gramas) para a utilização terapêutica e de 100 dólares por ounce para utilização recreacional. Em 1942 o governo americano bane a maconha de sua farmacopéia, fazendo desaparecer, da noite para o dia, as propriedades biológicas e terapêuticas da erva. A política proibicionista progride, a despeito de evidências históricas e médicas, liderada pelos Estados Unidos, até o ponto em que a Organização das Nações Unidas institui, em 1971, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, em que é proibida a utilização da maconha para fins médicos e recreacionais. A posição adotada pela ONU, leia-se EUA, reflete em todos os seus países membros, inclusive no Brasil.
Na literatura científica e médica internacional, apesar das claras dificuldades criadas pelos governos para o desenvolvimento de pesquisa com a maconha, há evidências científicas de boa qualidade demonstrando benefício na a utilização de maconha e seus derivados no tratamento de sintomas como dor, vômito, falta de apetite, insônia e doenças como esclerose múltipla, infecção pelo HIV, os mais diversos tipos de câncer, gastrite, dor neuropática, epilepsia, glaucoma entre outros. Vale a observação que o primeiro dado a se verificar, antes de se avaliar o benefício clínico, é a segurança e a tolerabilidade de uma substância. Desse modo, a maconha é uma droga completamente segura para sua utilização por seres humanos. Sim, ela tem efeitos colaterais que incluem secura da boca, tontura, sonolência, dificuldades de memória transitórias mas efeitos colaterais graves são raríssimos, e nisso, não difere de drogas largamente utilizadas como a aspirina.
Estudos que demonstram que a maconha é possível causadora de esquizofrenia, demência, câncer de pulmão são estudos realizados com pequeno número de pacientes, utilizando pessoas que já adoeceram, todo pesquisador com o dever de casa feito sabe que esse desenho de estudo pode apontar possibilidades, mas nunca afirmar ou estabelecer relações causais mais claras. Ao passo que os estudos que envolvem grandes números de pacientes, que são acompanhados por longos períodos de tempo, estes sim podem efetivamente esclarecer alguma coisa. Um bom exemplo, é o trabalho publicado no American Journal of Cardiology em 2006, desenvolvido na Universidade da Califórnia e envolvendo 3.617 voluntários seguidos por 15 anos demonstrando que o uso extensivo de maconha não aumenta o risco de doença cardíaca, apesar de ter sido associada à hábitos não saudáveis, que este sim, aumentam o risco de doença cardíaca como o fumo de tabaco, que é absolutamente legal.A lição global é desagradável e óbvia até: os governos do mundo, o nosso incluído, não levam em consideração a história nem dados científicos e médicos de boa qualidade na formulação de suas políticas, que nesse caso, significam condutas repressivas e violentas como prisões e perseguições, com funestas conseqüências sociais e individuais. Nós, cariocas, letalmente envolvidos na guerra contra as drogas, que o digamos. É importante ressaltar que a literatura médica está cheia de estudos de má qualidade e que na distinção deles é preciso ser alfabetizado cientificamente, algo que uma ínfima parcela da população e mesmo dos legisladores é. Isso é uma outra discussão, mas toca no núcleo dessa história, que é o fato de a maior parte de nossa população ser mantida cientificamente analfabeta, facilmente manipulável, com expressões do tipo “cientificamente comprovado”, quando muitas vezes nem quem usa essas expressões sabe ao certo o que elas efetivamente significam.
Favorece-se um discurso privilegiado, que endossa posições muitas vezes pessoais que atendem à interesses econômicos e políticos, sem esclarecer como o resultado foi desenvolvido, quer dizer, você paga a conta pelo peixe que não te ensinaram a pescar. A ciência é objetiva, cientistas, como todos os homens, não são, além disso, devem ser compromisso da mídia, das artes, dos legisladores e principalmente da comunidade científica a educação e difusão do conhecimento científico para a sociedade de uma maneira aberta e clara. Ensinando ou pelo menos mostrando como se faz para pegar o peixe, não vendendo o peixe pronto, sem discutir as dificuldades ou limitações envolvidas na pescaria, como se faz tão claramente em relação à erva canabis. A primeira coisa que um cidadão deve aprender é como se constrói conhecimento científico, isso mudaria muita coisa, não só a proibição das drogas.
Referências
1- Ben Amar M. Cannabinoids in medicine: a review of their therapeutic potential. Journal of Ethno-Pharmacology 2006; 105:1-25.
2- Rodondi N e cols. Marijuana Use, Diet, Body Mass Index, and Cardiovascular Risk Factors (from the CARDIA Study). American Journal of Cardiology 2006; 98:478-484.
3 – Hashibe M e cols. Marijuana use and the risk of lung and upper aerodigestive tract cancers: results of a population-based-case-control study. Cancer Epidemiology, Biomarkers & Prevention 2006;15(10):1829-34
4- DiMarzo V. Plant, Synthetic, and Endogenous Cannabinoids in Medicine. Annual Reviews Medicine 2006; 57:553-74
5- Frood A. Scientists Stir the Pot for Right to Grow Marijuana. Nature Medicine 2007;13: 764
6 – Castilla A. Cultura Cannabis 2007. Edição independente, Rio de Janeiro & Buenos Aires.
(Publicado no jornal O Globo de 12 de agosto de 2007)