Mesmo que a Rihanna apareça fumando uma tronca na janela do Fasano ou FHC faça um outro longa sobre o assunto, o risco ainda persiste: atualmente, uma pessoa que planta seu próprio remédio pode parar numa cadeia onde a decapitação é a pena por não ceder sua esposa ao estupro coletivo. Com Copa ou sem Copa.
Por Cassady*
O que inspira o início deste texto, na verdade, é a vontade de agradecer a várias pessoas do passado da nossa história, as quais, provavelmente, eu nunca conhecerei. Todas, em sua maior parte, anônimas, brasileiras, que ajudaram a nortear os rumos cívicos de nossa sociedade. Por exemplo, queria muito cumprimentar os negros que, em meados do século passado, engoliram a seco o preconceito para entregar seus currículos em agências de empregos. Aquelas mulheres que abandonaram o avental para mostrar que não há diferença intelectual entre os gêneros. As bichas que, antes de serem atingidas por socos e cassetetes, respiraram fundo não só para dar um longo beijo em público, mas também para ganharem coragem de demonstrar suas preferências à sociedade. Os jornalistas que não pausaram suas penas, mesmo ante aos fuzis militares, para trazer a verdade à tona durante a Ditadura. Enfim, queria agradecer a todos aqueles que, no passado, se vestiram com a verdade para enfrentar os preconceitos e demais ignorâncias doentias enraizadas em nosso país varonil. Vocês são o nosso Norte.
Escrevo isto porque, nesta contemporaneidade de 2014, os defensores da regularização do plantio caseiro da cannabis – para consumo próprio – só conseguem observar a lei mudar nos países ditos desenvolvidos. Lá, eles se abastecem de embasamento e perseverança para continuarem suas caminhadas em terras verde-amarelas. Isso porque, no Brasil, a ciência ainda é ignorada quando esta atinge a uma cadeia de subornos milionários, que envolvem traficantes, policiais, juízes, políticos, indústria farmacêutica, igrejas e formadores de opinião (duvidosa).
Neste universo poluído de inverdades, o plantio caseiro acaba sendo rotulado por aquilo que mais tenta combater. Ou seja, deixa de ser a peça-chave na política de redução de danos causados pelo tráfico armado de drogas, para ser acusado de promover o mesmo. É a antítese do ativismo em carne (seca) e osso (com osteoporose).
Como lidar com uma Lei que considera como tráfico o ato de “passar o baseado para outro”, sendo que a ciência afirma e reafirma que a maconha é menos prejudicial à saúde que o álcool e o tabaco?
O que devemos pensar das nossas leis criminais, que podem considerar um cultivador como traficante pelo simples fato deste ter uma balança de cozinha em sua casa, sendo que a tendência mundial é a do plantio caseiro, principalmente nos casos medicinais?
Por que a mesma lei aplicada ao crack é aplicada à cannabis – a água e o óleo deste universo de proibicionismo?
Nem precisa ser especialista no tema. Basta pensar um pouco sobre a questão para perceber que falta resposta para muitas perguntas quando o assunto é maconha, principalmente no Brasil, onde vige o jargão “passar o cachimbo da paz”. A paz, na verdade, não existe quando se mergulha neste universo, na luta pelos direitos e na defesa pela quebra de paradigmas que são pejorativos aos usuários.
Por mais documentários que a CNN possa exibir sobre a maconha medicinal, e mesmo que a Rihana apareça fumando uma tronca na janela do Fasano ou FHC faça um outro longa sobre o assunto, o risco ainda persiste: atualmente, um paciente de uma patologia crônica, como AIDS e câncer, e que planta seu próprio remédio, pode parar numa cadeia onde a decapitação é a pena por não ceder sua esposa ao estupro coletivo (vide as do Maranhão). Sob estes riscos, não há cachimbo, muito menos paz.
Mas tudo isto escrito acima não é um enorme “nariz de cera”, muito menos um devaneio sobre a maconha movido a ela própria numa tarde de domingo. Existe um mote. E vamos a ele:
Logo nas primeiras semanas deste ano surgiu mais uma prova do nosso provincianismo legislativo. Na mesma semana em que a cidade de Turim (Itália) permitiu o comércio de maconha, e duas semanas após a decisão de o governo de Nova Iorque permitir o uso medicinal da ganja, tornando-se o 21ª região dos EUA a descriminalizar a erva, o Brasil desceu mais um degrau na sua escala evolutiva.
A polícia, ante os diversos casos de corrupção mal apurados e chacinas de menores e de maiores em vários subúrbios do país, colocou como prioridade punir um grupo de cultivadores de maconha que se reuniu no final do ano passado para trocar experiências e conhecer a produção um do outro.
Não houve comércio, muito menos violência a terceiros, segundos ou mesmo primeiros durante todo o encontro. A maconha levada não foi comprada em morros, e sim cultivada por eles mesmos. Batizaram, talvez exageradamente, o evento de “Copa”. Digo isso porque, comparado as verdadeiras COPAS, como as realizadas na Califórnia (EUA), Barcelona (Espanha), Vancouver (Canadá), Berlim (Alemanha) e Amsterdam (Holanda), o evento daqui parecia um happy hour de quinta categoria.
Nestas Copas, milhares de pessoas participam ativamente dos eventos, que duram dias, fazendo negócios milionários tanto nas áreas medicinais quanto nas de equipamentos e genéticas de espécies. Tudo gerando impostos para o governo, e empregos para a população. Tudo às vistas, em locais públicos, nada de becos e vielas. Lá vive-se no século XXI, e aqui ainda estamos, otimistamente, em XVIII.
Na versão brasileira, houve pouco brilhantismo e muito anonimato e precaução. Em vez de milhares de cultivadores, aqui cerca de uma centena. No entanto, pode-se dizer que as flores produzidas pelos nossos growers não deixam nada a desejar às Made in Heaven, mas não vamos entrar neste mérito no texto. Quero criar este contraste para mostrar o quão patético (isso mesmo, patético, não há outra definição) é movimentar toda uma estrutura paga com os impostos dos cidadãos para investigar e, talvez, condenar pessoas maiores de idade, trabalhadores e, em muitos casos, pais e mães de família, por terem se reunido (volto a dizer) sem prejudicar a terceiros, e sem atingir de nenhuma forma quem não concorda com a legalização.
Mas vem a questão: se a polícia chegou até eles por um vídeo, pô, os caras não deram mole não? Observando pela lógica do “segredo do sucesso é o segredo”, sim. Mas temos que compreender que, muitas vezes, a verdade “grita”, pede para ser escandalosamente estampada em RGB ou exibida em HDMI. Mas isso não deixa de ser uma afronta? Sim, é verdade, embora esta afronta não tenha sido pela forma como foi feita, mas sim pelo conteúdo e como este foi divulgado pela mídia. Nas reportagens, o fato soou algo como uma picardia universitária, algo de doidão. E isso atingiu os proibicionistas de plantão.
A questão “maconha” precisa ululantemente ser tratada de forma madura, pois há tempos já contempla outros estereótipos além dos dread locks (eu, por exemplo, sou meio nerd, outros amigos são advogados, engenheiros, etc.). Os veículos midiáticos são responsáveis em mudar esta nova semiótica da erva, que nem de longe é do diabo. Mas, como o evento foi registrado pelos jornais de forma errada, a sociedade cobrou da polícia uma atitude quanto àquela frouxidão na segurança – não podemos nos esquecer que as classes conservadoras ainda têm bastante influência nos setores públicos.
Pela velocidade e forma como tudo tem ocorrido, não percebo urgência da mesma para verificar as denúncias. Acredito que a polícia tenta dar uma resposta à sociedade, mas buscando não fazer alarde ou muito menos cometer uma intempérie. É de conhecimento comum o modus operandi da polícia quando há urgência, com mandados expedidos pela madrugada e batalhões à disposição de cumpri-los. Não tem sido o caso. Por mais insignificante que tenha sido, não podemos negar que há uma evolução por parte das polícias, principalmente a Federal, na análise de casos que envolvem cultivadores.
Infelizmente, não há mais vídeos, fotos ou registros deste polêmico encontro vanguardista. Voltaram ao segredo, não por medo, mas em respeito à polícia e aos “não cultivadores”. Respeito é a palavra de ordem. Espero que as mídias que pregam a democracia entendam o atual contexto e parem de mexer “para não feder mais”. Ou seja: parem de fazer manchetes com pessoas de bem, que buscam trazer mais verdades para a nossa sociedade. A polícia não quer ser cobrada a cumprir uma lei defasada. E os cultivadores também querem evitar este tipo de confronto porque, por enquanto, em seus grow boxes, o cachimbo ainda é o da paz.
*O texto representa somente a opinião do autor