Ninguém nega a contribuição das pesquisas USP Ribeirão Preto ao estudo de canabinoides. No entanto, isso não justifica a forma como o grupo têm defendido a utilização de componentes isolados da Cannabis e demonizado a sua forma in natura.
por Susan Witte
Resolvi escrever essa resposta à resposta por não achar justa a forma como cientistas têm usado seus diplomas para impor realidades que nem eles mesmos acreditam, mas que os beneficiam a longo prazo, perpetuando um sistema que desqualifica o uso de fitoterápicos para manter nas mãos da indústria farmacêutica o monopólio de tratamentos. O artigo assinado por Antonio Waldo Zuardi, José Alexandre de Souza Crippa, Jaime Eduardo Cecílio Hallak e Francisco Silveira Guimarães – todos pesquisadores de canabinoides há muitos anos – intitulado “Quem tem medo do canabidiol?”, omite uma série de informações ao tentar defender os próprios autores dos ataques de André Kiepper.
Primeiramente, ninguém nega a contribuição das pesquisas desses cientistas ao estudo de canabinoides. Suas pesquisas são muito pertinentes e realizadas de maneira ética e profissional. No entanto, isso não justifica a forma como têm defendido a utilização de componentes isolados da Cannabis e demonizado a sua forma in natura, como se o uso de fitoterápicos fosse uma área obscura e rudimentar da medicina que deve ser superada. Selecionei alguns trechos do referido artigo para justificar meus argumentos. Vamos então por partes.
“Antes de tudo é preciso esclarecer que nossa defesa do uso de canabinóides puros como medicamento começa desde o momento que optamos por estudá-los isoladamente, ou seja, no final da década de 1970, portanto, há mais de 35 anos, e várias décadas antes dos análogos sintéticos do canabidiol terem sido desenvolvidos e patenteados”.
De fato, a maior parte dos cientistas opta pela pesquisa utilizando componentes isolados da cannabis, e isso se deve a alguns fatores: é virtualmente impossível, em especial no Brasil, conseguir aprovação para pesquisas utilizando a cannabis in natura, sobretudo se for necessário plantar a erva; não há incentivo financeiro por parte da indústria farmacêutica para a pesquisa de fitoterápicos. Para compreender a importância desse último fator, é preciso notar que a indústria é responsável pelo financiamento de mais de 90% das pesquisas de medicamentos, além de fornecer incentivos financeiros a universidades, centros de pesquisa, cursos para médicos, etc. Pesquisas independentes revelam que as pesquisas financiadas pela indústria farmacêutica tendem a beneficiar a indústria farmacêutica e não podem ser consideradas, dessa forma, livres de conflito de interesses.
O que os cientistas não dizem no artigo, é que eles estão em contato com empresas da indústria farmacêutica e pretendem utilizar recursos dessas companhias para suas pesquisas, conforme revelado pelo próprio Dr. Crippa.
“Finalmente é necessário destacar que em nenhum momento defendemos o uso dos análogos fluorados do canabidiol, objeto de invenção da referida patente, até porque são compostos ainda em estudo. O que defendemos é o uso do canabidiol, que NÃO É PATENTEÁVEL.”
Portanto, quando fazem a afirmação acima, os cientistas têm total compreensão de que somente a indústria tem capacidade de fornecer um medicamento à base de CBD isolado, já que se trata de um processo caro e complexo, não podendo ser executado em qualquer laboratório. Isso significa que, mesmo que defendam o uso do canabidiol isolado, esse componente será vendido muito mais caro do que a forma natural da planta e beneficiará a indústria que conseguir autorização para realizar esse processo no Brasil. Outra forma será a importação de produtos de fora, como o Epidiolex, da GW Pharmaceuticals, que já está sendo testado fora e logo deve ser testado no Brasil. Trata-se de um medicamento à base de CBD isolado.
“Não é verdade que colocamos “CBD contra THC”, como diz o articulista. O que sempre afirmamos é que os dois canabinóides têm alguns efeitos próprios que são diversos e por vezes opostos. Reconhecemos que ambos podem ter efeitos terapêuticos, porém com indicações e efeitos adversos próprios de cada um”.
O que os pesquisadores deixam de mencionar aqui é que o Dr. Crippa já escreveu diversos artigos e já fez diversas afirmações na mídia colocando o CBD como bom e o THC como ruim. Apesar desse óbvio antagonismo imposto pelo cientista, ele tem plena consciência da interação entre o THC e o CBD, trabalhando em conjunto no tratamento de diferentes enfermidades. Conversei com diversos pais dentro e fora do Brasil sobre o tratamento de seus filhos com cannabis e, ao que parece, enquanto para algumas crianças o uso do CBD e um baixo teor (ou sem a presença) de THC funcione bem, para outras uma quantidade maior de THC é necessária. Jason David, por exemplo, pai de um menino com síndrome de Dravet, na Califórnia, afirma que seu filho só responde a extratos com teor de THC superior a 1%. Quando, por telefone, informei o Dr. Crippa desse caso, ele compreendeu que o THC estimula os efeitos do CBD e afirmou que nesse caso recomendaria uma dose maior de CBD. Ou seja, o CBD isolado não é tão eficaz quanto em conjunto com outros canabinoides. Quantidades maiores de CBD seriam necessárias em sua forma isolada – e nós não sabemos ainda se funcionaria para todas as crianças – e isso aumentaria a probabilidade de efeitos colaterais indesejáveis.
“Para que a maconha in natura alcançasse a possibilidade de uso médico, seria fundamental saber a proporção relativa de seus diferentes canabinóides em cada amostra a ser utilizada. Isso não é tarefa fácil, uma vez que, além de existirem diferentes espécies, sua composição depende da parte da planta, do solo e das condições climáticas onde foi cultivada, entre diversos outros fatores.”
É possível, e já tem sido feito nos Estados Unidos, verificar a proporção entre os canabinoides de um extrato natural de cannabis em laboratório, por um custo muito inferior ao isolamento dos componentes. As diferentes espécies e cepas de cannabis são uma vantagem e não um problema, já que pacientes podem testar plantas diferentes para verificar qual se encaixa melhor em seu tratamento. Quando um componente é isolado, ele é testado em um grande número de pacientes e uma média entre os benefícios e efeitos adversos é que determina a dosagem. Ou seja, o paciente não tem muita escolha sobre a dosagem que está usando, ele tem que lidar com a dosagem que foi mais adequada segundo uma média estabelecida por milhares de pacientes.
“Quem desconhece a história tende a repetir os seus erros. Há mais de um século os principais laboratórios farmacêuticos lançaram extratos e tinturas da maconha como medicamento. Após um clímax no início do século 20, esse uso entrou em declínio por muitos fatores, mas dentre eles, a inconsistência de resultados, possivelmente pela heterogeneidade de composição dos diferentes extratos.”
A utilização de extratos de cannabis entrou em declínio junto com outros fitoterápicos conforme a indústria farmacêutica se expandia e ampliava sua influência. Diversos fatores influenciaram o ocorrido e não nos cabe aqui explicar. Eu sugiro, em especial aos autores do artigo, a leitura dos trabalhos do historiador Martin Booth, que explica em detalhes o processo. Lester Grinspoon, doutor emérito da Universidade de Harvard, também tem um trabalho muito interessante, e que está disponível online, sobre a história da cannabis como medicamento.
Não adianta conhecer a história e usar somente as partes que interessam para seu argumento, ignorando todo o contexto em que ela se desenrola. Não é a primeira vez que um componente isolado da maconha é aprovado para uso medicinal e a planta mantida na ilegalidade. Quando as pesquisas envolvendo o uso da cannabis e o câncer vieram à tona, a indústria criou medicamentos à base de THC sintético, realizou os devidos testes, e o THC sintético foi reclassificado. Esses medicamentos, como o Marinol, foram um grande fracasso e só atrasaram o desenvolvimento de medicamentos mais eficazes por passarem a impressão de que o problema estava resolvido. O THC isolado e altamente concentrado do Marinol apresenta muito mais efeitos colaterais do que a planta natural, por não apresentar outros canabinoides que contrapõem esses efeitos. Em todos os estudos (exceto aqueles realizados pela própria empresa que produz o medicamento) em que o Marinol foi comparado com a cannabis in natura, os pacientes preferiram o medicamento natural, afirmando que seus efeitos eram mais eficazes e os efeitos adversos mais suaves.
“Acreditamos que já não faz mais sentido submetermos uma pessoa doente a um extrato de maconha cuja composição não sabemos com exatidão e nem em que dose deveria ser utilizado. Isto é particularmente mais grave na medida em que crianças com epilepsia constituem o principal grupo de pacientes em uso do canabidiol em nosso País, e que o uso crônico de extratos contendo THC pode trazer problemas, entre muitos outros, do desenvolvimento cerebral desta população.”
Os problemas no “desenvolvimento cerebral” causados pelo THC que os cientistas estão se referindo são baseados em estudos fortemente contestados. Os médicos ignoram estudos que afirmam o contrário. Mas, vamos considerar que esses estudos estejam certos, e que o THC, utilizado a longo prazo a partir da infância, cause problemas para o desenvolvimento cerebral. Nós estamos falando de crianças com epilepsia. As convulsões causam danos cerebrais que podem ser irreparáveis e fatais; crianças com síndrome de Dravet, por exemplo, não costumam sobreviver além dos seis anos de idade. Não tratar as convulsões causa danos cerebrais infinitamente maiores a essas crianças. Os remédios comumente prescritos para tratar essas formas severas de epilepsia também causam danos cerebrais severos. O clobazam, por exemplo, tem entre os possíveis efeitos colaterais: dificuldades na fala, pensamentos desordenados, perda de coordenação motora e alucinações. Além disso, esses medicamentos tarja preta causa dependência física e as crises de abstinência podem ser fatais. Esses medicamentos, na maior parte dos casos, não controlam a incidência de convulsões satisfatoriamente. O THC e outros canabinoides não causam, de forma alguma, a morte. Os efeitos colaterais dos mesmos são considerados leves e, portanto, nem se comparam ao que essas crianças já têm sofrido. Obviamente, o mesmo critério de aprovação de medicamentos da indústria (benefício para o paciente X efeitos adversos) não tem sido usado para a canábis.
Finalmente, um estudo recente realizado em Israel, em 2014, por Ruth Gallily e colegas, comparou os efeitos terapêuticos do CBD isolado e a planta Avidekel, que é rica em CBD, mas também contém uma série de outros componentes naturais. A pesquisa constatou que a canábis em sua forma natural é mais eficiente do que o CBD em sua forma isolada no tratamento de doenças inflamatórias. É possível, portanto, que o CBD em sua forma natural, em conjunto com outros canabinoides, seja mais eficaz que o componente isolado tão defendido pelos cientistas de Ribeirão Preto e que agora recebe o aval da Anvisa.
Ninguém está defendendo que os pesquisadores deixem de fazer suas pesquisas com os componentes isolados ou que a indústria deixe de fabricar esses medicamentos. O que se está contestando são as motivações para que a planta continue proibida, impedindo assim os pacientes de se medicarem, enquanto seus componentes isolados podem ser utilizados por empresas que visem lucros acima do bem-estar da população. Por que pacientes não podem usar um medicamento natural que já os tem ajudado tanto e são obrigados a esperar por produtos que talvez nem funcionem tão bem quanto a planta? Por que os pacientes não tem liberdade para escolher se preferem um tratamento natural ou o oferecido pela indústria?
Os pacientes não têm escolha porque os cientistas sabem que a planta representa um concorrente forte, mais barato e potencialmente mais eficaz que os produtos industrializados. Eles sabem que os tais “riscos” da canábis in natura não são nada comparados aos de medicamentos já disponíveis no mercado. Os doutores Zuardi, Crippa, Hallak e Guimarães sabem exatamente do que estou falando, mas escolhem argumentos baseados em apenas parte da verdade. Isso, sim, eu chamo de desinformação.