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ToggleEscutamos repetidas vezes de psiquiatras que a cannabis pode causar esquizofrenia e que está associada a quadros psicóticos. Os mesmos cientistas, no entanto, parecem pouco preocupados com a conhecida correlação entre o consumo de tabaco e a ocorrência de psicose. Um estudo realizado em Londres e publicado esse ano (2017), revelou mais evidências da associação entre o uso de tabaco e a ocorrência de experiências psicóticas.
A pesquisa identificou uma relação entre a quantidade de cigarros consumidos pelos usuários e a probabilidade da ocorrência de episódios psicóticos. Os cientistas também encontraram pouca diferença entre a quantidade de experiências psicóticas entre não-usuários e ex-fumantes, indicando cessação dos sintomas na ausência de tabaco. O fato também indica que o quadro pode ser revertido.
Esse não é o único estudo a encontrar tal associação. Uma revisão sistemática publicada em 2015 no The Lancet reuniu mais de 60 estudos comparando uso de tabaco e a ocorrência de psicoses, reunindo uma amostragem de 14555 fumantes e mais de 200 mil não-fumantes. Os pesquisadores concluem que o uso diário de tabaco está associado a um aumento no risco de psicose e a aparição de sintomas da doença mais cedo. Eles também afirmam que a investigação sobre se o consumo de cigarros causa psicose merece mais atenção.
Ainda não há um consenso sobre o motivo da correlação. Segundo a pesquisadora Laura Hirshbein, isso se deve, em parte, à própria indústria do tabaco:
“Devido ao envolvimento da indústria do tabaco, e também da reação contra a indústria, é quase impossível encontrar respostas sobre porque pacientes mentais fumam”.
Hirshbein explica que, sabendo que pacientes psiquiátricos tendem a fumar mais cigarros do que a população em geral, a indústria do tabaco buscou usar essa informação em seu favor, financiando uma série de estudos tendenciosos. Além de explorar essa tendência de pacientes psicóticos ao fumo para impulsionar venda de cigarros, a indústria financiou o trabalho de uma série de pesquisadores para que os resultados dos estudos beneficiassem as empresas.
Predisposição genética
Para mitigar as reais causas do câncer e doenças mentais, a indústria do cigarro investiu pesadamente em pesquisas sobre predisposição genética para essas doenças. Podendo usar o argumento de causas biológicas para as doenças, as empresas produtoras de tabaco criaram uma narrativa que afastasse seu produto de qualquer relação causal. De fato, os estudos encontraram genes de predisposição a doenças e evidência de hereditariedade na ocorrência de psicoses. No entanto, a importância desses fatores foi deliberadamente exagerada, turvando até hoje o conhecimento médico sobre a prevenção das enfermidades.
Sabemos hoje que a predisposição genética é um modesto preditor da ocorrência de câncer, por exemplo, já que fatores ambientais são responsáveis pela ativação ou não desses genes. Ou seja, quando genes não são ativados pelas condições do meio ambiente, eles podem permanecer dormentes e não afetar o seu portador ou ocasionar a aparição da doença. Em outras palavras, os genes podem aumentar a probabilidade da ocorrência de certas doenças, mas não necessariamente as causar. A causa, por exemplo, de câncer de pulmão, é mais provavelmente a exposição a agentes cancerígenos, como o tabaco.
No caso da psicose, há ainda menos dados concretos, tornando as evidências ainda mais confusas.
Pesquisas sobre tipos de personalidade (os famosos estudos sobre personalidades A e B), também financiados pela indústria tabagista, buscaram demonstrar uma predisposição para certos tipos de pessoas ao stress, que também levaria a um maior risco de câncer e doenças mentais, e ao consumo de cigarros. O argumento era de que o fumante estaria automedicando seu stress com o uso do tabaco e não que o tabaco estaria causando doenças. As doenças mentais e o câncer eram, nessa narrativa, causadas pelo stress e a predisposição genética do paciente, que por coincidência também gosta de fumar.
Uma série de estudos independentes oferecem um contraponto a essa narrativa. O problema, no entanto, está no fato de os estudos desenvolvidos pela indústria serem mais bem financiados e, portanto, maiores e mais abrangentes, causando uma confusão generalizada sobre quais evidências são mais confiáveis. Apesar de termos hoje, após 50 anos de luta no âmbito científico, uma melhor indicação de que o cigarro é prejudicial à saúde, os problemas causados por essa ciência duvidosa perduram até hoje, afetando a prática da medicina e a pesquisa.
A causa da psicose
Ainda não há um consenso sobre as verdadeiras causas da psicose, apesar de as evidências científicas apontarem, principalmente, para questões de hereditariedade. É possível que fatores ambientais, como a exposição ao tabaco ou à cannabis (e outras substâncias psicoativas) influenciem a ativação de genes de predisposição ou exacerbem os sintomas de psicose. Também é possível que os mesmos motivos (sejam quais forem) que levam a ocorrência de psicose, também determinem uma tendência ao consumo de substâncias psicoativas. A comunidade científica ainda está dividida sobre essa questão.
É válido observar, contudo, que sem uma indústria multibilionária para financiar estudos em favor da cannabis da mesma forma que foi feito com o tabaco, a erva recebe mais atenção negativa com relação ao seu potencial para causar doenças mentais. O tabaco, apesar de apresentar evidências similares, fica em segundo plano quando apontamos o dedo para o que pode causar essas doenças.
Em geral, contudo, apesar da oscilação no consumo de ambas as substâncias no decorrer dos anos, o índice de pacientes psicóticos se mantém relativamente estável, afetando por volta de 1% da população. É difícil ainda dizer o quanto e de que forma o tabaco e a cannabis afetam os pacientes mentais e que papel representam na sua ocorrência. É preciso, portanto, que esses pacientes sejam tratados como grupos de risco no consumo de substâncias psicoativas e recebam acompanhamento médico assim que os sintomas apareçam.
Referências