“O que seria do movimento de repressão ao uso de drogas se não fosse a mídia? Nada. Sem o aparato de divulgação midiático, o discurso médico-científico-moral sobre o uso de drogas nunca teria alcançado tantas mentes”. Esse trecho inicia o 3º capítulo da monografia “A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE”. Defendida em 2004, ainda antes da mudança legislativa de 2006, o trabalho, de autoria da pesquisadora Waleska Aureliano, analisou como o enfoque do discurso jornalístico da SUPERINTERESSANTE. A pesquisa discute como este discurso foi alterado a partir de uma mudança editorial que passou a focar nos jovens seu público alvo, dando mais espaço a abordagens histórico-científicas sobre o tema e não apenas as médico-científicas.
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A pesquisadora Waleska, que atualmente é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, nos cedeu uma entrevista por email, no qual ela comenta sobre o tema:
Growroom: O que despertou seu interesse por este tema?
W.A. Eu sempre me interessei pela área do jornalismo científico e por isso acompanhava a revista SUPERINTERESSANTE há alguns anos, mesmo antes da faculdade de comunicação. Ao receber a edição 179 de agosto de 2002, cuja matéria de capa era sobre a maconha, fiquei muito surpresa com as informações que a reportagem trazia. Eram dados históricos que contextualizavam a proibição da planta a partir de uma perspectiva sociológica que até então eu nunca tinha visto ser abordada em um meio de comunicação do porte da SUPER e muito menos na escola ou na própria universidade. Algumas informações sobre os usos medicinais e religiosos da cannabis eu já conhecia, mas as questões políticas, e não médicas, por trás da proibição da erva eram novas para mim. Imediatamente decidi rever as outras matérias de capa da SUPER sobre a maconha para comparar as reportagens e ver o que tinha mudado na abordagem do tema, e se essa mudança poderia ter alguma relação com a recente reformulação da revista ocorrida naquela época que passou a focar nos jovens seu público alvo.
GR: Pelos dados que você encontrou em sua pesquisa, é possível afirmar que a mídia brasileira teve algum papel na proibição da maconha e na construção de uma imagem negativa da planta?
W.A. Não cheguei a pesquisar jornais ou revistas do início do século XX quando se formalizou a proibição no Brasil, então não posso detalhar qual foi o papel ou influência da mídia brasileira naquele momento. Pelo relato de outros pesquisadores, sabemos que houve uma campanha forte na década de 1910, na imprensa paulista, pela proibição da cocaína e da morfina. A mídia brasileira promoveu um destaque maior sobre a maconha a partir dos anos 1980, com os primeiros debates sobre a descriminalização. O início dessa discussão nos anos 1980 é emblemático, pois durante o regime militar o debate sobre a descriminalização da maconha era impensável já que a erva foi usada como pode expiatório para o controle e a repressão de estudantes e artistas (vale lembrar que o decreto lei 385, que equipara traficante e usuário, é de 1968). No entanto, essas primeiras grandes abordagens da mídia brasileira sobre a maconha, cujo propósito seria promover o “esclarecimento” da população, estavam recheadas de sensacionalismo e reafirmavam as posições proibicionistas. Penso que a mídia pode não ter tido um papel central na proibição, mas continua tendo, através da maioria dos seus veículos, uma influência na manutenção da ignorância que ronda o tema maconha. São raras as reportagens e notícias que não se utilizam de antigos chavões ou estereótipos para falar da planta. Felizmente, penso que esse cenário está melhorando (lentamente ainda) a partir do momento que pessoas e grupos da sociedade civil – estudantes, acadêmicos, juristas, médicos, ativistas, etc. – forçaram o debate e colocaram em circulação, sobretudo através da internet, informações mais contextualizadas sobre o consumo da maconha no Brasil e no mundo.
GR: Você poderia nos falar um pouco mais a respeito do papel da mídia nesse processo?
W.A. Sabemos que a mídia teve um papel muito importante no processo de proibição da maconha nos Estados Unidos. Harry Anslinger, o grande promotor da proibição da cannabis naquele país, era amigo de William Hearst, dono de jornais que não por acaso inspirou o filme Cidadão Kane. Foi através dos jornais de Hearst que Anslinger conseguiu influenciar a opinião pública com artigos sensacionalistas onde relacionava a maconha à criminalidade, a loucura e a prostituição, e tudo isso aos mexicanos e negros, consumidores de maconha e peso indesejável na sociedade americana até hoje, estimulando o preconceito contra esses grupos. Além disso, havia também os interesses econômicos de Anslinger e outros com a proibição da maconha, algo que nem de longe é mencionado quando se fala da ilegalidade da maconha e outras substâncias. É como se esse contexto histórico-social nunca tivesse existido e esse é o grande mal da mídia: o desprezo pela contextualização histórica. Poucas pessoas – ouso dizer que até mesmo muitos consumidores de cannabis – sabem que a erva tornou-se proibida em quase todo mundo há menos de um século. Essa informação não é passada e muita gente acredita que a situação de ilegitimidade da planta vem de muito tempo. Talvez porque se soubessem que a proibição é tão recente alguns gostariam de saber como era utilizada antes e fatalmente descobririam que a maconha antes de ser uma “droga” era um remédio, uma planta sagrada, uma fibra resistente, um empreendimento de sucesso.
A tarefa de uma parte da mídia hoje é manter essa ignorância, mas isso tem se tornado muito difícil com a internet e uma hora a abordagem vai ter que mudar. Os chavões, os estereótipos não terão mais como ser sustentados. Recentemente vi neste Portal uma reportagem sobre as pessoas que plantam maconha para consumo próprio, esse era um dos argumentos fortes que sustentam a proibição, a de o uso da maconha financia o tráfico e a matéria nos faz pensar “se a pessoa planta a sua erva, pois isso é uma planta, então onde está o crime?”. Algumas pessoas não querem que a sociedade faça esse tipo de pergunta, pois, como sabemos ou deveríamos saber, a proibição esconde interesses financeiros maiores.
GR: Você poderia deixar algum tipo de recomendação para os jornalistas que estão começando a trabalhar com este tema?
W.A. Minha recomendação é mais como leitora do que como jornalista: sejam responsáveis com aquilo que trazem a público, sejam críticos, sejam curiosos, pesquisem e façam o que é ensinado nos cursos de jornalismo, escutem os dois lados, mas deixem a decisão para o leitor/telespectador. Se esse simples mandamento do jornalismo fosse cumprido não veríamos matérias tão sensacionalistas, pautadas em clichês e pouco criativas sobre a maconha. Não insultem a inteligência dos consumidores de informação, pois hoje é muito fácil encontrar outras versões sobre um mesmo fato.