Do Estadão
Por: Miguel Reale Júnior
Sempre esteve presente o debate entre proibir ou permitir legalmente o uso de entorpecente, sendo ainda mais conflitante a discussão sobre se cabe ou não descriminalizar o próprio comércio de tóxicos.
Pode-se lembrar, a favor da legalização do uso de tóxicos, primeiramente, a constatada ineficácia da repressão, por não reduzir com a ameaça penal o número de consumidores, podendo até seduzir alguns a experimentar o fruto proibido. Por outro lado, os aspectos negativos da incriminação do usuário são patentes, seja pelos riscos à saúde, como aids, mais relevantes do que a transgressão, seja porque a punição criminal tem por efeito a marginalização dos jovens, além de forçar a prática de outros delitos para compra de tóxico, cujo preço se eleva em face da proibição.
Em defesa da abolição da criminalização do tráfico se argumenta que a punição pela via penal apenas viabilizou o fortalecimento de organizações criminosas, concedendo-se poder econômico e político ao crime organizado, que se infiltrou na sociedade como um Estado paralelo, a exemplo do Rio de Janeiro.
No campo oposto estão os defensores da repressão ao uso ou porte de entorpecente, justificando o paternalismo jurídico por meio do qual se protegem as pessoas delas mesmas, particularmente as consideradas vulneráveis, para agir sobre o comportamento desviante visando a corrigir, limitar, impedir atos nocivos contra si próprios.
Para os adeptos de uma perspectiva repressiva, as drogas vêm a ser uma agressão à saúde corporal e psicossocial, pois causam malefícios aos usuários habituais ou crônicos. O uso de drogas compromete a juventude e a faz abúlica, sem iniciativa, torna o homem um escravo indolente, mau pai, mau vizinho. Dessa forma, a sociedade também é vítima, pois os efeitos negativos atuam sobre a economia, as tradições e os valores julgados positivos. O viciado é a figura emblemática da decadência e insegurança do mundo contemporâneo, sobre a qual deve recair a repressão, para intimidar os jovens a não se tornarem viciados.
Para os defensores da repressão, deve haver uma guerra sem limites contra os traficantes, os exploradores do vício, aproveitadores que cultivam ou comercializam entorpecentes, verdadeiras parasitas do mal. Esta discussão é interminável.
Mas como a questão se pôs ao longo do tempo no plano internacional?
Os órgãos da ONU encarregados de implementar as medidas repressivas previstas nas convenções internacionais, a Convenção única de 1961, a Convenção de Substâncias Psicotrópicas de 1971 e em especial a Convenção contra o Tráfico Ilícito de 1988, ou seja, a Junta Internacional de Fiscalização de Estupefacientes e o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Delito apenas buscaram dar estrito cumprimento às disposições constantes desses documentos, com enfoque na vertente repressiva. Em 1998, houve a primeira Reunião Especial sobre Drogas da Assembléia-Geral das Nações Unidas, na qual se fixaram as linhas de enfrentamento da questão, dando ênfase ao aspecto da redução da oferta. Prevaleceu a política de repressão, nos moldes da guerra às drogas iniciada nos EUA na década de 70 e consagrada na Convenção de Viena de 1988.
Este incremento da repressão, consistente no ataque militar às zonas de cultivo, na ação policial internacional de combate às organizações criminosas e à lavagem de dinheiro, bem como na criminalização da posse de entorpecente para uso próprio, com encarceramento de milhões de usuários, apresentou resultados pífios, apesar dos valores investidos e do pessoal mobilizado nessa luta.
Segundo o Informe Mundial sobre Drogas de 2006, calcula-se que haja cerca de 200 milhões de usuários no mundo, o que corresponde a 5% da população adulta; outros dados indicam que número consideravelmente maior teria consumido drogas.
Prepara-se este ano nova Reunião Especial sobre Drogas da Assembléia-Geral das Nações Unidas, a se realizar em março de 2009, para rever os objetivos e políticas a serem adotados pela ONU, mormente em vista dos resultados obtidos e do avanço na legislação de diversos países e em programas bem-sucedidos de redução de danos, visando a evitar o nocivo efeito secundário do uso de tóxicos, como a transmissão da aids.
O próprio diretor-executivo do Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Delito, Antonio Maria Costa, em março manifestou a necessidade de se humanizar a fiscalização sobre drogas diante do número de encarceramentos e dos poucos investimentos nos campos preventivo e do tratamento. Essa manifestação constituiu um grande avanço.
No princípio de julho, em Viena, reuniram-se as organizações não-governamentais para prepararem sugestões para a Reunião Especial sobre Drogas da Assembléia-Geral da ONU de 2009. A admissão da contribuição dessas entidades significa uma grande conquista no sentido de se alterar, no plano internacional, sob outros ângulos, o enfoque exclusivamente repressivo no enfrentamento da questão.
Nada se avançará na disputa de tudo ou nada, do sim ou não. A realidade mostrou o fracasso da linha só repressiva, em especial em face dos usuários. Deve-se começar a mudar por aí, como, aliás, já se fez na Itália e em Portugal, onde o portar tóxico para uso próprio recebe medidas educativas a serem impostas pelo juízo civil ou pela autoridade administrativa.
A nossa recente lei de tóxicos é tímida, pois o portar para uso próprio permanece sendo crime, apenas não punido com prisão, mas sujeito às desvantagens da estigmatização do juízo criminal.
Esta semana, em São Paulo, muitos olhares recaíram sobre a questão, no 1º Congresso da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas. O debate aberto permitirá evoluir em matéria tão candente.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça