Saiu no uol:
04/10/2003
Substância semelhante ao THC da maconha protege os neurônios
Uma substância do organismo semelhante ao extrato da maconha protege contra a epilepsia.
Rafael Méndez
DE MADRI
"Há séculos o haxixe é utilizado para tratar a epilepsia. Em um tratado do século 15, Ibn al-Badri, um autor árabe medieval, narra como o poeta Ali ben Makki visitou o filho epiléptico do tesoureiro do Califado de Bagdá e recomendou haxixe." Dessa forma incomum começa o comentário sobre um estudo que foi publicado nesta sexta-feira pela prestigiosa revista científica "Science".
A citação histórica é bem apropriada, porque o complexo estudo, do qual participaram pesquisadores espanhóis, demonstrou pela primeira vez um efeito protetor do sistema endocanabinóide sobre os neurônios. Quer dizer, substâncias produzidas pelo organismo e semelhantes ao tetrahidrocanabinol (THC), presente no haxixe, favorecem a proteção dos neurônios. A importância da descoberta é que ela abre uma nova porta para o desenvolvimento de drogas contra doenças como epilepsia, embora ainda faltem anos para isso.
"Diante de um estímulo capaz de danificar os neurônios, o sistema canabinóide endógeno se ativa para reduzir a morte neural", explica María Luz López Rodríguez, diretora do grupo de química médica da Universidade Complutense de Madri e signatária do estudo. Até agora sabia-se que os canabinóides exógenos tinham um efeito protetor dos neurônios, mas não que as substâncias do organismo exercessem a mesma ação. A substância envolvida na proteção se chama anandamida.
O estudo é dirigido por pesquisadores do Instituto de Psiquiatria Max Planck da Alemanha, e dele participam as pesquisadoras espanholas López Rodríguez e Silvia Ortega Gutiérrez, do Departamento de Química Orgânica I da Universidade Complutense de Madri. Também assinam o estudo pesquisadores italianos e americanos.
Os cientistas utilizaram ratos mutantes sem o receptor canabinóide CB1. Um receptor é o lugar exato do neurônio ao qual se une uma molécula, como a chave na fechadura. Neste caso, a chave é a anandamida.
Ao se administrar aos ratos mutantes uma substância neurotóxica, os pesquisadores comprovaram que o dano neural era muito maior que nos ratos normais (com todos os receptores no lugar). Tanto nos ratos mutantes como nos normais aumentava a produção de anandamida.
Os cientistas acreditam que esta, ao se unir ao receptor, diminui a transmissão gluteminérgica, que em última instância é responsável pelo dano neural e está relacionada a doenças como o mal de Parkinson. Conclusão: o sistema endocanabinóide em geral e a anandamida em particular são uma espécie de guardiões da boa saúde dos neurônios.
Que aplicação prática pode ter toda essa pesquisa básica? "A descoberta abre possibilidades para o desenvolvimento de novas drogas neuroprotetoras para tratar doenças neurodegenerativas nas quais há uma progressiva morte neural, que se traduz em uma deterioração física e mental", explica López Rodríguez, lembrando que as drogas neuroprotetoras hoje existentes "são escassas e não muito eficazes".
O objetivo dessas novas drogas seria ativar o sistema endocanabinóide. López Rodríguez explica melhor: "Uma droga que diminuísse a degradação da anandamida permitiria manter níveis mais elevados dessa substância, que como vimos diminui a degradação dos neurônios". Além disso, os pesquisadores apontam como vantagem que, ao potencializar um efeito do organismo, não é previsível que tenha efeitos secundários. López Rodríguez acrescenta que já existem laboratórios farmacêuticos interessados nessa linha de pesquisa.