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STF deve retomar julgamento da descriminalização das drogas
Por Cristiano Maronna Advogado, mestre e doutor em direito penal pela USP,é 2º Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.K. completou 18 anos em dezembro do ano passado. E depois de finalizar as provas dos vestibulares para os quais estava inscrito – tentava ingressar no curso de ciências sociais –, foi preso em flagrante com 80 gramas de maconha na passagem que liga o Hospital Universitário da USP à favela San Remo, na zona oeste de São Paulo. Os policiais militares que realizaram a prisão consignaram que o local “é muito usado por traficantes”.
No interrogatório policial, K. disse que a droga se destinava a seu consumo pessoal. Na audiência de custódia – que no estado de São Paulo, já está sendo realizada como regra –, a magistrada entendeu que a quantidade de droga apreendida era “considerável” e que “para a configuração do crime de tráfico ilícito de drogas, a lei não exige qualquer ato de comércio e da mesma forma, é inexigível a tradição para a consumação do delito”. Consignou, ainda, que o tráfico “traz efeitos nefastos para a sociedade, na medida em que, incentiva a criminalidade e destrói a base desta que é a família, de modo que é necessária a sua custódia para garantia da ordem pública.
Além disso, a ordem pública se encontra ameaçada caso o indiciado seja colocado em liberdade, uma vez que poderia, em tese, continuar a praticar ilícito, que é de extrema gravidade e tem que ser rigorosamente combatido, e, precipuamente, na salvaguarda do meio social, gravemente violentado”. A prisão em flagrante foi convertida em preventiva.
Como se percebe, a fundamentação utilizada no caso de K. é absolutamente genérica, carece de dados individualizadores extraíveis dos autos, limitando-se a dar curso a um discurso moralizante que nada diz sobre a situação concreta do caso analisado. E, o que é pior, enquadra como tráfico condutas que deveriam ser presumivelmente classificadas como posse para uso pessoal.
Ontem, oficialmente, teve início o ano judiciário. Aguarda-se, com muita ansiedade, a retomada, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, em que se discute a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n.º 11.343/06, que incrimina as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (caput) e de semear, cultivar ou colher, para seu consumo pessoal, plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica (§1º).
Após o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que reconhece a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, sem redução de texto, propondo a sua “administrativização”, além de afirmar a presunção de consumo pessoal, exceto quando houver indício concreto de traficância e de instituir audiência de custódia obrigatória para casos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, a fim de a autoridade judiciária avaliar a necessidade da custódia cautelar e a adequação da classificação jurídica, de modo a afastar excessos acusatórios, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Edson Fachin.
No prazo regimental, o ministro Fachin votou pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, sem redução de texto, exclusivamente em relação à maconha.
Na sequência, votou o ministro Luís Roberto Barroso, também se limitando à descriminalização em relação à maconha, sem se pronunciar sobre outras drogas.
O julgamento foi, porém, interrompido por pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
A Plataforma Brasileira de Política de Drogas[1], em seus dossiês publicados por ocasião do julgamento no STF, no intuito de contribuir para a qualificação a respeito do debate de política de drogas, com fundamento em evidências cientificamente embasadas, manifestou-se no sentido de que “não há relação direta entre prevalência de consumo e restrições legais mais ou menos rígidas ao porte de maconha para uso pessoal. Outros estudos publicados pelo EMCDDA têm apontado que a prevalência do consumo de drogas, inclusive do consumo mais problemático, responde a um conjunto muito mais amplo de fatores entre os quais a criminalização tem pouca influência. (…) a proporção de consumidores de drogas não tem relação direta com a criminalização ou não dessa prática. Tal conclusão vai ao encontro dos dados levantados em nível mundial”[2].
A expectativa em relação a esse julgamento é enorme, justamente porque a aplicação disfuncional da Lei de Drogas, que transforma meros usuários em traficantes com base em presunção, está no centro dessa discussão que vem sendo travada na Suprema Corte. Todos os ministros que já se pronunciaram até agora apontaram a necessidade de definir critérios objetivos para distinguir usuários e traficantes, precisamente porque os critérios previstos no citado diploma legal[3], à exceção da quantidade, abrem margem para uma exagerada subjetividade que se materializa como tendência de enquadrar como tráfico casos de mero porte para consumo pessoal.
A situação do jovem K., mencionado no início deste texto, guarda estrita relação com o que o ministro Gilmar Mendes disse em seu voto: de como a aplicação invertida da regra do ônus da prova torna possível uma jurisprudência que admite a presunção de tráfico, mesmo que ausente qualquer indício concreto nesse sentido. E de como a palavra do policial que realiza a prisão em flagrante deve ser objeto de detalhado escrutínio, não sendo aceitável argumentos como os utilizados no caso de K.: se o local “é muito usado por traficantes”, por uma questão de lógica, é certo que por lá transitam muitos usuários. Presumir a traficância viola a Constituição da República. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, “a presunção de não culpabilidade – art. 5º, LVII, da CF – não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida”.
Calha trazer à colação excerto de artigo da lavra de dois eminentes Promotores de Justiça do Ministério Público de São Paulo, em que, de forma corajosa, ao avaliar a atuação institucional do parquet na área das drogas, expressam opinião convergente com o voto do relator do Recurso Extraordinário 635.659 no sentido de que usuários são condenados como se traficantes fossem:
Em relação à política de drogas, viu-se que a ‘guerra às drogas’ produz dados da realidade que não podem ser ignorados, entre eles, o aumento da população carcerária, o aumento do número de mortes decorrentes do tráfico de drogas, o aumento da corrupção e o fortalecimento do crime organizado. Para enfrentar o assunto, tais pontos devem ser considerados.
O modelo repressivo atual foi objeto de críticas, por ofensas tanto à dogmática penal quanto à processual penal.
Os diversos núcleos do tipo previstos para o crime de tráfico de drogas, longe de representar garantia ao cidadão, representam um simbolismo penal gerador de insegurança jurídica e de arbítrio estatal.
A interpretação adequada deve privilegiar, no caso concreto, a presença de dano ao bem jurídico protegido pela norma – que no caso é a saúde pública – como condição para a adequação típica. Busca-se, desse modo, proteger o usuário de drogas, que merece tratamento humanitário do Estado. E, quanto a isso, a atual política oficial amplia os danos, em vez de reduzi-los.
Diversos usuários são tratados como traficantes. A inexistência de critérios objetivos, para fins de tráfico, quanto à quantidade da droga também é outro ponto que expande o Direito Penal, para além dos limites que lhe são devidos dentro de um Estado Democrático de Direito. Pequenos e grandes traficantes são tratados do mesmo modo.
O domicílio – cuja inviolabilidade, como regra, é garantida constitucionalmente (CF, art. 5.º, XI) – é frequentemente violado sem ordem judicial, a pretexto de se apreender pequenas quantidades de droga. Daí a necessidade de o Ministério Público realizar efetivo controle das ações policiais, visando à redução da seletividade penal.
Dentro disso, o controle das prisões em flagrante também foi realçado, pontuando-se a importância de se dar cumprimento à Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), devendo-se apresentar o preso ao Ministério Público e ao Judiciário para ser ouvido visando melhor avaliação dos critérios da prisão cautelar. (O Ministério Público em busca de novas práticas penais, Marcelo Pedroso Goulart e Tiago Cintra Essado, Boletim IBCCRIM 264 – Novembro/2014).”
Como fica claro nos votos dos ministros da Suprema Corte até aqui conhecidos – ou mesmo no artigo dos Promotores de Justiça acima mencionado –, a ausência de critério distintivo adequado para definir uso e tráfico de drogas é um flagelo que necessita de urgente solução.
Uma das propostas possíveis – e que, igualmente, é mencionada nos votos dos ministros e também no artigo dos Promotores – é a da definição de quantidades máximas previamente definidas para cada substância. Esse critério tem sido adotado em diferentes países, como Portugal e México, por exemplo, onde a posse para consumo pessoal deixou de ser objeto de incriminação. Enquanto em Portugal definiu-se que aquele que porta até dez doses diárias de cada substância (25g de maconha, 1g de ecstasy e 2g de cocaína) será considerado usuário, no México fixou-se em cinco doses diárias o patamar distintivo de uso e tráfico. O caso mexicano é um exemplo mal sucedido, justamente porque a fixação de patamares quantitativos mínimos em parâmetros excessivamente tímidos[4] , nada obstante a Suprema Corte mexicana ter decidido recentemente no sentido de autorizar cooperativa de usuarios a cultivar pequenas quantidades de maconha.
Em seu voto, o relator ministro Gilmar Mendes aponta o que segue, verbis:
Não há como negar que a adoção de critérios objetivos para a distinção entre uso e tráfico, fundados no peso e na natureza da droga apreendida, e às vezes até em seu grau de pureza, é medida bastante eficaz na condução de políticas voltadas a tratamento diferenciado entre usuários e traficantes.
Todavia, tendo em conta a disparidade dos números observados em cada país, seguramente decorrente do respectivo padrão de consumo, dos objetivos específicos, entre outras variantes, não se pode tomar como referência o modelo adotado por este ou aquele país.
Por isso mostra-se recomendável, no caso do Brasil, ainda sem critérios objetivos distinção entre uso e tráfico, regulamentação nesse sentido, precedida de estudos sobre as peculiaridades locais.
Em seu voto, o ministro Edson Fachin propôs que o STF declare como atribuição legislativa a fixação de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, que determine aos órgãos do Poder Executivo responsáveis pela elaboração e a execução de políticas públicas sobre drogas que emitam, em até 90 dias, parâmetros provisórios de quantidade para diferenciar uso e tráfico, que teriam validade até a promulgação de lei, e ainda que seja criado, no âmbito do STF, um Observatório Judicial sobre Drogas na forma de comissão temporária, para o fim de acompanhar os efeitos da deliberação do Tribunal neste caso.
Já o ministro Roberto Barroso propôs que o Tribunal fixe, desde logo, critérios objetivos para distinguir o consumo pessoal de tráfico, adotando-se a presunção de que quem esteja portando até 25 gramas de maconha ou possua até 6 plantas fêmeas de Cannabis é usuário, e não traficante.
Pois bem, a divergência em relação ao tema nos três votos até agora proferidos dá a exata medida da polêmica envolvendo a fixação de critérios objetivos.
Voltando ao caso de K.: a liminar em habeas corpus, que lhe devolveu a liberdade após mais de um mês de prisão, anota que a autoridade coatora ateve-se, com exclusividade, à gravidade abstrata do delito e aos indícios de materialidade para decretar a preventiva e que, na realidade, não havia necessidade cautelar, porque se tratava de acusado primário, de bons antecedentes, não se cuidando de crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, “sendo ainda diminuta a quantia de droga apreendida”.
Veja-se: para a magistrada de primeiro grau, que converteu o flagrante de K. em preventiva, 80 gramas de maconha são uma quantidade “considerável”; para o Desembargador que o libertou liminarmente, tratava-se de “diminuta quantia de droga apreendida”.
É possível ir mais além: como K. é branco, pertence a uma família estruturada e com uma condição financeira razoável, não foi ele vítima do estigma que recai sobre (quase) pretos e (quase) pobres flagrados nas mesmas circunstâncias, os quais invariavelmente são vítimas de presunção de tráfico também porque não possuem emprego formal com CTPS assinada e/ou porque possuem alguns trocados no bolso ou mesmo porque simplesmente moram em favelas. Em resumo, ser preto e pobre e ser flagrado na posse de drogas ilegais, ainda que em pequenas quantidades, são circunstâncias que fazem presumir a traficância.
Infelizmente, essa cultura judicial da presunção de tráfico chegou aos tribunais superiores: em junho passado, o Superior Tribunal de Justiça editou o verbete sumular n.º 528, que sufraga a tese defendida pela Segunda Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal a respeito do tema:
Compete ao juiz federal do local da apreensão da droga remetidado exterior pela via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional.
Nos últimos anos, cresceu exponencialmente o número de pessoas que importam do exterior sementes de cannabis. Como regra, trata-se de usuários que decidem romper relações com o crime organizado e que buscam produzir a cannabis que consomem dentro de padrões fitossanitários básicos. Como regra, importam pequenas quantidades de sementes.
Em vista desse fenômeno, explodiram as apreensões de sementes de maconha nos Correios. Em razão do grande número de casos envolvendo importação de sementes[5], juízes e tribunais passaram a decidir em três sentidos diferentes: tratar-se-ia (i) do crime previsto no art. 28 da Lei n.º 11.343/06 por não existir indício de tráfico; (ii) do crime de contrabando, previsto no art. 334 do Código Penal (que admite a aplicação do princípio da insignificância); e (iii) tráfico internacional de drogas (art. 33, caput ou, dependendo do entendimento, §1º, inciso I, nos dois casos combinados com o art. 40, inciso I).
A única possibilidade de interpretação conforme à Constituição da mencionada Súmula, nos moldes preconizados no voto do Ministro Gilmar Mendes, é a de considerar válida a acusação de tráfico internacional em casos de importação de sementes de maconha apenas e exclusivamente quando houver indícios de traficância.
Por tudo isso, a discussão sobre critérios objetivos deve aprofundar-se. Definir critérios objetivos baseados em quantidades de drogas muito reduzidas significaria um cenário ainda pior do que a mantença da incriminação da posse de drogas para consumo pessoal.
De todo modo, a mudança mais importante é a da cultura judiciária: enquanto a Constituição for interpretada à luz das leis e decretos – e não o contrário, como deve ser –, a presunção de tráfico irá continuar a retroalimentar o processo de superencarceramento que nos transformou na quarta maior população carcerária do planeta – e com viés de alta.
__________________________________________
[1] A Plataforma Brasileira de Política de Drogas é uma rede para a atuação conjunta de organizações não governamentais, coletivos e especialistas de diversos campos de atuação que busca debater e promover políticas de drogas fundamentadas na garantia dos direitos humanos e na redução dos danos produzidos pelo uso problemático de drogas e pela violência associada à ilegalidade de sua circulação. A PBPD estimula políticas que garantam a autonomia e a cidadania das pessoas que usam drogas e o efetivo direito à saúde e ao tratamento em liberdade. Atualmente, cerca de quarenta organizações fazem parte da PBPD.
[2] http://pbpd.org.br/wordpress/?page_id=3387, acesso em 329.1.2016.
[3] Art. 28, §2º: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
[4] “Thresholds of legal quantities for personal use should be used to set minimum quantities below which a person cannot be considered a dealer; nevertheless, it should not be assumed that a person possessing an amount exceeding the threshold can be punished for distribution and trafficking, because the State must prove intent to sell or distribute. Thresholds must also be based on users’ practices and not set arbitrarily, always ensuring that users are protected” In Search of Rights: Drug Users and State Responses in Latin America. Colectivo de Estudios Drogas e Derecho, http://www.wola.org/sites/default/files/Drug%20Policy/CEDD%20exec%20summ%20final.pdf, acesso em 29.1.2016.
[5] “O aumento no número de solicitações de perícias em sementes de cannabis sativa importadas apreendidas nos últimos anos no Brasil e a dificuldade em estimar a quantidade de maconha que pode ser produzida para consumo a partir do cultivo “indoor” da planta levaram a Polícia Federal a desenvolver uma pesquisa que a corporação definiu como inédita. Nas dependências da superintendência regional do Rio Grande do Sul, durante um ano e meio, a instituição plantou 73 pés de maconha em uma estufa improvisada no laboratório do setor técnico-científico.” (http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2016/01/para-testes-policia-federal-planta-mais-de-70-pes-de-maconha-em-estufa-4952585.html, acesso em 28.1.15).