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Decisão do STF sobre tráfico privilegiado pode gerar um efeito rebote
i festejada a decisão proferida pelo STF no HC 118.552, que na última semana entendeu que o chamado tráfico privilegiado de drogas não pode ser considerado como crime hediondo. De fato, foi uma vitória bastante significativa em tempos de hiper encarceramento decorrente da falida guerra às drogas e de produção legislativo-penal conduzida pelo congresso nacional mais conservador de todos os tempos. No entanto, é cedo para comemorar, já que a mentalidade jurídica parece ser movida pelo fetiche punitivista. Isso porque nos últimos tempos algumas modificações legislativas e jurisprudenciais objetivaram inocuamente o desencarceramento, tais como a lei 9.099/95, a lei 11.343/06, o julgamento do HC 82.959 pelo STF e a lei 12.403/11. A despeito da suposta boa intenção, após essas medidas o que realmente vimos foi um efeito rebote, com incremento do controle e uma hiperinflação do sistema prisional brasileiro, que cresceu 161% desde 2000[1].
A decisão do HC 118.552 é inegavelmente positiva, já que de imediato permite que diversas pessoas presas pleiteiem regimes mais brandos de cumprimento de pena. Isso porque o lapso para progressão de regime caiu de 2/5 (ou 3/5, caso reincidente) para 1/6 (regra geral), nos casos de condenação por tráfico privilegiado. Destaque especial para o caso das mulheres, que em sua maioria se encaixam nesse perfil de condenação. As mulheres, em regra, são presas ou levando drogas para seus companheiros, ou em casa, assumindo papel menor na estrutura do tráfico ao guardar, dividir, embalar e comercializar pequenas quantidades, conforme sustenta a criminóloga venezuelana Rosa Del Olmo, citada no voto do ministro Ricardo Lewandowski.[2] Ainda assim, é preciso levar em consideração que a decisão foi dada em caráter incidental, e que, portanto, não vincula obrigatoriamente as demais instâncias do poder judiciário, podendo facilmente deixar de ser aplicada pela mentalidade punitivista sob o argumento da “livre convicção”, por exemplo.
Interessante notar que as decisões do STF e STJ de recrudescimento penal são rapidamente acatadas pelos juízes e tribunais. Vimos isso com a decisão da execução antecipada da pena (HC 126.292), que antes mesmo do STF publicar o acórdão, que inclusive pode ter entendimento modificado após julgamento de embargos de declaração – o que dificilmente ocorrerá, convenhamos –, já começou a ser aplicada. Com efeito, a experiência tem nos mostrado que sempre que a legislação ou a jurisprudência avançam, imediatamente segue-se um recrudescimento contrário à medida anunciada como progressista.
Isso ocorreu com lei dos juizados. Sobre comemorações, a lei 9.099/95 foi introduzida no Brasil como uma espécie de justiça consensual, com vistas a desafogar as varas criminais comuns dos crimes de menor potencial ofensivo, pautada pela celeridade, oralidade e democratização da prestação jurisdicional. No entanto, pesquisas mostram que, na verdade, o que houve foi também um efeito rebote, implicando aumento do sistema formal de controle. Estudando os JECrims de Porto Alegre/RS, Rodrigo Ghiringhelli Azevedo, já em 2000, concluía que “ao invés de assumir uma parcela dos processos criminais das Varas Comuns, os Juizados Especiais Criminais passaram a dar conta de um tipo de delituosidade que não chegava até as Varas Judiciais”.[3] Na mesma linha, pesquisa empírica realizada por Fabiana de Assis Pinheiro nos JECrims de Brasília, aponta que entre 1996 e 2006 houve aumento 436,7% de termos circunstanciados, enquanto que a população do DF cresceu apenas 30,8% e o número de inquéritos policiais cresceu 54,2% no mesmo período, tornando o JECrim de Brasília responsável por 62% do controle formal realizado na capital federal.[4]
Em alguma medida, esse mesmo caminho também foi trilhado pela lei de drogas de 2006, que foi anunciada como medida progressista, já que despenalizava o consumo de entorpecentes para uso pessoal. Contudo, pesquisa do NEV/USP, de 2012, apontou aumento de 124% das prisões por tráfico entre 2006 e 2010[5]. Atualmente a lei de drogas prende 27% dos homens e 63% das mulheres[6]. Uma hipótese possível – que precisaria ser mais bem pesquisada, sem dúvida – é de que usuário passou a ser considerado como traficante, ainda que com pequena quantidade, principalmente se preto, pobre e periférico, distorcendo e recrudescendo ainda mais o sistema penal.
O efeito rebote também ocorreu após o julgamento do HC 82.959 pelo STF, em 23.02.2006. O STF reconheceu, corretamente, a inconstitucionalidade da determinação do regime integralmente fechado, contida no antigo §1º do art. 2º da lei 8.072/90. Isso permitiu que diversas pessoas presas pudessem requerer a progressão de regime na fração de 1/6, já que se passou a aplicar a regra geral da LEP também para os condenados por crimes hediondos. O Congresso Nacional reagiu rapidamente, e em 23.03.2006 – exatos 30 dias após o julgamento – foi proposto o PL 6.793/06 para dar nova redação aos parágrafos do art. 2º da lei 8.072/90. Aliás, houve menção expressa ao julgamento do HC 82.959 na justificativa desse projeto de lei[7]. Esse PL se converteu na lei 11.464/07, que introduziu lapsos mais rigorosos para a concessão de direitos da execução penal em caso de pessoa condenada por crime hediondo ou equiparado.
Por fim, destaca-se a lei 12.403/2011, que inseriu no código de processo as medidas cautelares diversas da prisão, mas que não foi capaz de afetar a taxa de 41%[8] de pessoas provisoriamente presas no Brasil. Em pesquisa recente na capital paulista, o IDDD acompanhou 410 casos de prisão em flagrante, sendo que em 73,4%[9] prevaleceu a prisão preventiva em detrimento de outra medida. Quem milita na advocacia criminal sabe que a magistratura deixa de aplicar as medidas cautelares do art. 319 do CPP sob o “fundamento” (quando fundamenta) de ineficiência estatal na fiscalização. E que quando há aplicação das medidas do art. 319, na verdade, seria caso de concessão de liberdade provisória independentemente de acautelamento do processo, por ausência de requisitos. Ou seja, uma hipótese que parece encontrar amparo nas pesquisas é de que a regra continua sendo a prisão preventiva, e quando se deveria conceder a liberdade provisória, se aplica alguma das medidas do art. 319. A lei 12.403/11, portanto, ampliou o controle e não contribuiu para o desencarceramento.
É preciso redobrar a atenção no momento atual. Isso porque a notícia positiva que o julgamento do HC 118.559 nos trouxe pode acabar provocando, mais uma vez, esse efeito rebote que já ocorreu com diversas outras medidas. Diante de um Congresso Nacional conservador como o nosso, não seria surpresa alguma se amanhã, por exemplo, sob o argumento de “melhor individualização das condutas”, fosse proposta a criação de um tipo penal intermediário entre o tráfico do art. 33 e o tráfico privilegiado do §4º, num tentativa de driblar o avanço agora conquistado e impedir que realmente caminhemos rumo à diminuição do encarceramento de pessoas. Portanto, para reverter esse quadro de hiper encarceramento, ou rompemos com os grilhões que nos prendem no mito punitivista, ou o número de pessoas presas continuará crescendo exponencialmente, como visto nos últimos anos.
Theuan Carvalho Gomes da Silva é mestrando em direito pela UNESP. Pós-graduando em direitos humanos pela USP. Pesquisador do NEPAL/UNESP. Associado ao IBCCRIM e ao IDDD. Advogado criminalista.
[1] INFOPEN-MJ. Levantamento nacional de penitenciárias INFOPEN – JUNHO DE 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf Acesso em: 26 jun. 2016 p. 15
[2] STF. Voto Min. Ricardo Lewandowski no HC 118.559. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Trficoprivilegiado.pdf Acesso em: 26 jun. 2016 p. 4
[3] AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalização da justiça e controle social: estudo sociológico da implantação dos juizados especiais criminais em Porto Alegre. São Paulo: IBCCRIM, 2000. p. 136
[4] PINHEIRO, Fabiana de Assis. Juizado Especial Criminal: do discurso jurídico penal à operacionalidade do sistema penal. Revista Sistema Penal & Violência. v. 2, n. 2, 2011. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/7110/6045 Acesso em: 26 jun. 2016. p. 11/12
[5] JESUS, Maria G M. de et al. Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: NEV/USP, 2011. Disponível em: http://nevusp.org/wp-content/uploads/2015/01/down254.pdf Acesso em: 26 jun. 2016. p. 15
[6] INFOPEN-MJ. Levantamento nacional de penitenciárias INFOPEN – JUNHO DE 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf Acesso em: 26 jun. 2016 p. 70.
[7]CÂMARA FEDERAL DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 6.793/06 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=382965&filename=PL+6793/2006 p. 3
[8] INFOPEN-MJ. Levantamento nacional de penitenciárias INFOPEN – JUNHO DE 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf Acesso em: 26 jun. 2016 p. 20
[9] IDDD, Liberdade em Foco: redução do uso abusivo da prisão provisória na cidade de São Paulo. 2016. Disponível em http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2016/05/RELATORIO-LIBERDADE-EM-FOCO.pdf Acesso em : 26 jun. 2016 p. 44