Violência leva usuários de drogas para a berlinda
Gosto de sangue na boca e uma certa agitação. X. precisa de cocaína. Foi assim desde o início, um caso clássico de compulsão. Aos 11 anos, aprendeu a tragar em guimbas. Aos 12, fumou seu primeiro cigarro de maconha e no dia seguinte sentiu uma vontade irreprimível de mais um. Aos 13, foi para a cocaína. Ontem, X. passou seu primeiro dia de liberdade, depois de cinco meses de prisão, fugindo de si mesmo. Ele foi pedir ajuda aos voluntários do Conselho Estadual Antidrogas (Cead), em São Cristóvão, para não voltar a se drogar. X., de 22 anos, é um dos consumidores do milionário mercado de drogas do Rio. Mas seria ele responsável pelo financiamento do narcotráfico? A pergunta divide especialistas e causa conflitos ao próprio usuário.
Do alto de suas doloridas 12 horas sem cocaína, X., um jovem magro, de olhar sem esperança, diz que a contradição marca a tese da responsabilização do drogado, cada vez mais defendida pelo poder público. No Rio, o discurso foi incorporado pela Secretaria de Segurança Pública ao analisar a guerra do tráfico na Rocinha.
— De certa forma, sou culpado porque vou comprar e ninguém me obriga a subir na boca — contou X., que nasceu numa família de classe média, mas hoje vive na rua. — Mas não consigo me controlar. É uma vontade 300 vezes pior do que você pode imaginar.
A história de X. é um rico acervo sobre a relação dos jovens com as drogas. Muito parecida com a de milhares de jovens do Rio que começam experimentando e acabam se tornando dependentes químicos. X. passou a vender maconha durante o dia para cheirar cocaína à noite.
Nos últimos 18 anos, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad) da Uerj atendeu a 17 mil pessoas. Hoje, atende em média a cem por dia. O Cead, que supervisiona três clínicas públicas para tratamento de dependentes, recebeu em 2003 cerca de 13 mil dependentes. O presidente da entidade, Murilo Asfora, diz que o usuário alimenta a indústria das drogas, mas duvida da importância de um processo de conscientização:
— Não podemos fugir dessa realidade, é um fato. Se o dependente químico é pobre, ele se junta à quadrilha ou compra no morro para vender no asfalto. Se o dependente é de classe média, alguém vai comprar para ele — afirma Asfora.
Para o deputado federal Fernando Gabeira, o usuário não pode ser responsabilizado. Segundo ele, o erro da sociedade foi não ter se preparado para enfrentar o problema.
— Existe um muro nas cabeças dos governantes. Eles têm desprezo pela questão policial. A nossa inteligência investiga o que sai do Rio e não o que entra nos morros cariocas. Está na hora de o Brasil criar a sua DEA (agência antidrogas americana) e investigar o curso das drogas aqui.
A psiquiatra Maria Thereza de Aquino, coordenadora do Nepad, concorda que, na primeira vez em que usa droga, a pessoa é responsável. Depois, ao se tornar dependente, passa para a condição de doente. Ela acha que a maior responsabilidade é daquele que chama de usuário recreativo:
— Ele usa droga como quem toma um ou dois chopes. Não é doente. É responsável porque usa droga de forma irresponsável. São os verdadeiros inimigos da sociedade — diz.
Para a socióloga Alba Zaluar, há falhas institucionais que são mais graves e a polícia também alimenta a violência:
— O usuário não pode ser responsabilizado se o país tem falhas institucionais, se o sistema de Justiça é lento e se apenas 4% dos homicídios se transformam em processos. A polícia é corrupta e violenta. Na Europa e nos EUA, o problema do consumo de drogas é mais grave do que no Brasil, mas lá não há os mesmos índices de violência.
Coordenadora do Fórum Internacional de Debates Sobre Drogas, a psicóloga Sabine Cavalcante não vê relação direta entre usuário e narcotráfico.
— O problema não pode ser tratado desta forma simplista. Senão a gente estaria culpabilizando o doente. Nunca existiu uma sociedade sem drogas, mas até o final do século XIX não tínhamos grandes epidemias ou uma indústria da droga — avalia Sabine.
— É bobagem, quem financia o tráfico é criminoso — diz o delegado aposentado Heraldo Gomes, que foi secretário de Polícia Civil no governo Moreira Franco. — A culpa desta violência, deste excesso de armas, é a falta de profissionalismo da polícia que deixou de fazer prevenção há 15 anos. E todo mundo sabe que a prevenção é a ação mais efetiva contra o crime.
(O Globo - 15/04/2004)