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Eles não sabem o que fazem


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  • Usuário Growroom

Eles não sabem o que fazem

Hélio Schwartsman

Até alguns minutos antes de eu traçar estas linhas, assaltava-me uma dúvida. Não sabia se escreveria sobre o caso do julgamento do São Caetano, time ameaçado de perder pontos por causa da morte do jogador Serginho, ou sobre as narco-salas --lugares onde dependentes de drogas injetáveis podem dedicar-se a seu vício com alguma supervisão médica-- que o governo brasileiro cogita de instituir. Resolvi meu dilema optando por fazer uma coluna que trate dos dois temas, que, afinal, dizem respeito a um e mesmo assunto fundamental: a autonomia do sujeito.

Não surpreende que venha das hostes futebolísticas a idéia de punir um time por uma falta que não é dele. O pior é que até autoridades civis cometem o mesmo desatino ao indiciar o presidente e o médico do São Caetano pelo crime de homicídio e ainda em sua figura dolosa, isto é, com a intenção de matar.

Antes de prosseguir, talvez seja melhor circunstanciar os fatos. No dia 27 de outubro, o zagueiro são-caetanense Paulo Sérgio de Oliveira da Silva caiu durante partida contra o São Paulo, em pleno estádio do Morumbi. Não era uma daquelas quedas comuns nem cera. Serginho sofrera uma parada cardíaca. Foi socorrido, mas não sobreviveu. Houve alguns problemas no primeiro atendimento. Foi marcante a ausência de um desfibrilador nas imediações. Os socorristas também se atrapalharam na hora de abrir a ambulância e nela colocar o jogador. Mas não são essas as questões mais importantes.

A grande dúvida é saber se o atleta tinha condições de jogar futebol. Apesar de vaivéns nas declarações de médicos envolvidos, há informações críveis de que tanto o jogador como o departamento médico do São Caetano _e portanto também o clube_ sabiam que o atleta padecia de uma enfermidade conhecida como miocardiopatia hipertrófica, detectada em exames feitos no Incor no mês de fevereiro.

Trata-se de uma doença congênita que provoca o espessamento da parede do ventrículo esquerdo do coração, causando arritmias, o problema mais comum dessa moléstia, que está entre as principais causas de morte súbita.

A primeira recomendação que se faz a um portador de miocardiopatia hipertrófica é que não pratique esportes, especialmente não os competitivos e principalmente não de forma profissional. É que o esforço físico predispõe às arritmias. Deve-se, então, concluir que o zagueiro do São Caetano jamais poderia continuar a jogar futebol? A resposta é "não necessariamente".

Supondo que ele tenha sido devidamente alertado a respeito da doença e estivesse ciente dos riscos que corria ao jogar, essa é uma decisão que compete ao atleta. Embora exercícios físicos sejam sempre contra-indicados nessa patologia, cabe ao paciente, exercendo a sua autonomia, escolher se vai ou não seguir as advertências médicas.

Isso não significa que o clube precisaria manter em seus quadros profissionais um atleta portador de moléstia que em princípio inabilita para o esporte. Os danos que a imagem da agremiação vem sofrendo com o episódio são a prova de que, para o São Caetano, o afastamento teria sido a melhor opção.

Ainda assim, recusar tratamento ou ignorar conselhos médicos é um direito --nem sempre respeitado-- de todo cidadão. Fumar comprovadamente mata, mas daí não decorre que cigarros devam ser proibidos nem que todos os fumantes sejam loucos. Cabe à medicina orientar, não coagir.

Tentar responsabilizar o clube, seu presidente e seu médico pela morte do jogador é uma idéia consonante com a burocracia futebolística e com delegados de polícia. A injustiça de tirar pontos do São Caetano é auto-explicável. Pior mesmo só o indiciamento por homicídio por omissão (deixar de agir) e com dolo eventual (ainda que os autores não tivessem como objetivo primário a morte da vítima, assumiram o risco de produzi-la). Se a proposta do policial prosperar, o presidente e o médico do São Caetano ficam sujeitos a penas de seis a 20 anos de reclusão. Ora, como sabe qualquer um que já tenha aberto um livro de direito penal, o homicídio por omissão só se aplica quando o agente tinha o dever jurídico de evitar o óbito. O presidente do São Caetano, é óbvio, não está nessa condição. Em relação ao médico, a situação é mais complexa, mas é evidente que não se trata de um assassinato. Tipicamente, médicos que erram (se é que houve erro aqui) cometem no máximo o crime de homicídio culposo (não-voluntário). No mais, basta um elemento da ética médica para demonstrar que Serginho é o responsável por seu próprio infortúnio: se o jogador tivesse requisitado, os resultados de seus exames no Incor seriam sigilosos e não poderiam ter sido divulgados para ninguém, nem para o médico do clube.

O caso nas narco-salas se inscreve nesse mesmo capítulo da autonomia do indivíduo. Não é função do Estado fazer as vezes de babá dos cidadãos. O poder público precisa informar e por vezes deve induzir comportamentos, mas não cabe a ele determinar que todos vivam de modo saudável, por exemplo. Cada indivíduo tem a faculdade --e deveria ter também o direito-- de escolher seus próprios caminhos. Só o que se deve exigir é que o faça munido da melhor informação disponível sobre os possíveis efeitos de suas decisões.

Drogas estão entre os mais antigos problemas da humanidade, e nada indica que conseguiremos acabar com o fenômeno da dependência química. Reconhecido esse fato difícil de contestar, o que resta ao Estado nesse campo é aconselhar, com argumentos objetivos, as pessoas a nem experimentarem certas drogas, cuidar, através de políticas fiscais, que as substâncias mais nocivas tenham circulação restrita e oferecer tratamento aos que quiserem abandonar o vício. Nesse contexto, a política de redução de danos que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pensa em adotar é muito mais razoável e factível do que a linha proibicionista que sempre foi a do Brasil.

Uma verdade nem sempre dita sobre as drogas é que elas proporcionam prazer (pelo menos no início) e que é possível utilizá-las de forma não muito patológica. Assim como nem todo mundo que toma uma dose de uísque é um alcoólatra, nem todos os que eventualmente fumem maconha ou cheirem cocaína são dependentes. As narco-salas, que se tornaram o símbolo da política de redução de danos, são uma pequena parte dessa abordagem.

A redução de danos nada mais é do que o reconhecimento de nossa impotência sem o abandono dos elos de solidariedade e responsabilidade social. Se a pessoa vai beber, devemos convencê-la a não dirigir embriagada. Se vai cheirar cocaína ou tomar um comprimido de ecstasy, é fundamental que não saia por aí copulando sem proteger-se contra moléstias sexualmente transmissíveis. Se fuma muito crack, devemos tentar persuadi-la a trocar essa droga por outra menos prejudicial à saúde. Se já está se valendo de cocaína injetável ou de heroína, é preciso oferecer-lhe um espaço onde possa drogar-se sem correr outros riscos, isto é, as narco-salas que disponibilizam seringas descartáveis e alguma supervisão médica. Com isso, reduzem-se os índices de contaminação por doenças como Aids e hepatites. Mais, cria-se um canal de comunicação entre o dependente grave e equipes médicas, que poderá, no futuro, favorecer uma decisão de tratamento abstinente.

É claro que, no contexto brasileiro, em que a heroína é muito rara e o advento do crack reduziu o número de viciados em cocaína injetável, as narco-salas não são uma prioridade. A rigor, as drogas ilícitas, cuja dependência afeta menos de 1% da população, são um problema pequeno diante do alcoolismo, por exemplo, que atinge entre 10% e 15% dos brasileiros adultos. Mesmo assim, devemos implantá-las em projetos-pilotos. Beneficiariam algumas pessoas que precisam de ajuda e nos dariam a "expertise" para atuar em escala maior caso ocorram mudanças no perfil epidemiológico da narcodependência.

Voltando à discussão da autonomia, é estranho que que ela tenha se tornado uma bandeira da esquerda e não da direita. Enquanto a primeira passou várias décadas tentando se convencer de que o indivíduo era o produto de seu meio, os representantes da segunda corrente sempre enfatizaram o peso das escolhas individuais.

Paradoxos e filiações políticas à parte, precisamos tornar cada um responsável pelas suas próprias decisões, ou conceitos tão fundamentais para a vida em sociedade como responsabilidade e culpa perdem todo o sentido. O estuprador não seria responsável por suas ações, que surgiriam como fruto de uma infância complicada. Até acredito que, em alguma medida, o meio determine o comportamento dos agentes, mas não podemos aceitar esse princípio como um absoluto. Os resultados poderiam até voltar-se contra o criminoso-vítima. O passado, ao contrário do presente, é imutável. Se as ações do estuprador são o resultado de uma combinação de fatores pretéritos e não de decisões atuais, a única forma de conter seus impulsos --e proteger a sociedade-- é a pena de morte ou a segregação perpétua, seja numa cadeia ou numa clínica.

Felizmente, temos o dom do livre arbítrio, que prefiro, como Kant, chamar de autonomia. Não podemos, porém, querer ficar apenas com as conseqüências positivas desse princípio, como a noção de liberdade. Precisamos também aceitar suas implicações incômodas, como admitir que Serginho é o responsável por sua morte, que em princípio era evitável, e que pessoas possam caminhar voluntariamente para o abismo da narcodependência.

Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Escreve para a Folha Online às quintas

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata...lt510u173.shtml

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  • Usuário Growroom

caralho... o maluco escreve bem pra kct... virei fã dele

ele ta mais que certo... tem vezes onde não adianta ficar procurando um culpado, porque ele é a propria "vítima", so que a maioria das pessoas não aceita isso... principalmente no caso do serginho

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  • Usuário Growroom

'' ele ta mais que certo... tem vezes onde não adianta ficar procurando um culpado, porque ele é a propria "vítima", so que a maioria das pessoas não aceita isso... principalmente no caso do serginho ''

Isso se dá também pelo fato das pessoas não aceitarem a morte. As pessoas não se conformam com a morte, do rancor vem a raiva e daí a vingança...

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  • Usuário Growroom

exatamente

tava vendo ontem no fantastico... os caras so faem reportagem de defunto (ontem foi o serginho e o roberto marinho)

a mulher do serginho com um discurso típico de advogado (que os presente me perdoem)

ela deve ta querendo é arrancar uma idenização bem gorda do são caetano

em nenhum momento a mulher expressou serquer uma cara de tristeza pela preda do marido

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