Ir para conteúdo

Inovações Científico-Tecnológicas E O Vício Em Ideias: A Inconstitucionalidade Da Inserção Do Thc Na Portaria N. 344 Da Anvisa


BC_Bud

Recommended Posts

  • Usuário Growroom

Inovações científico-tecnológicas e o vício em ideias: a

inconstitucionalidade da inserção do THC na Portaria

n. 344 da ANVISA 1

Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes2

Resumo:

O trabalho demonstra a falta de motivação do ato administrativo que proíbe a maconha no Brasil. Isso é feito pela análise dos atuais conhecimentos científicos sobre a planta que demonstram sua baixa nocividade.

Palavras-chave: Maconha; Racismo; Motivação do ato administrativo; Norma penal em branco; Inconstitucionalidade.

[Nota: publicado em: Alethes: Periódico Científico dos Graduandos em Direito - UFJF - nº 3 - Ano 2 - link:

http://periodicoalet...4-da-anvisa.pdf ]

Abstract:

The work demonstrates the lack of motivation of the administrative act that prohibits

marijuana in Brazil. This is done by analyzing the current knowledge about the plant to

demonstrate its low harmfulness.

Keywords: Marijuana; Racism; Motivation of an administrative act; Blank criminal rule;

Unconstitutionality.

1 Introdução

A legalização3 da maconha é um tema cujo debate tem se arrastado por décadas. Muitas contribuições foram dadas por pesquisadores médicos, sociólogos, economistas, psicólogos, juristas. Entretanto, como pretendemos demonstrar, parece que a maioria dessas pesquisas não tem sido absorvida pela população. O povo é alvo da (des)informação costumeiramente veiculada pela mídia hegemônica, tendo a opinião formada não pelos pesquisadores acima referidos, mas pelo preconceito perpetuado por empresas mais comprometidas com o sensacionalismo do que com a verdade.

Sendo notório que o ideário popular se embasa mais na mídia do que na ciência, o inadmissível é que permitamos que o Estado faça o mesmo. A instituição estatal brasileira, cuja uma das funções constitucionais é garantir uma educação de qualidade, não pode se valer da ignorância popular para implementar políticas desarrazoadas e imprestáveis a garantir os direitos fundamentais. Portanto, é urgente que os dados empíricos das ciências deixem de ser propositalmente ignorados pelo Estado e deixem, também, de ser ocultados da população4.

Pretendemos demonstrar como a evolução científica dos estudos sobre a maconha exige sua retirada da portaria da ANVISA, bem como exige a alteração do imaginário popular. Para isso nos valeremos de informações históricas, médicas, antropológicas, jurídicas e sociológicas.

Certamente o objetivo deste artigo poderia se valer da mais sofisticada linguagem filosófica, tematizando a liberdade, o controle popular do Estado, o alcance da paz social, etc. Entretanto, evitaremos o vocabulário filosófico para demonstrar que esse tema de relevância social cotidiana, também pode ser trabalhado por meio de raciocínios claros e inteligíveis pela maioria da população.

Esse eufemismo cumpre a função de driblar as barreiras mentais que impedem a maioria da população de refletir criticamente sobre o assunto. Entretanto, por se tratar de trabalho científico e não político, manteremos o termo “legalização”, vez que expressa melhor a ideia de tornar algo lícito, tal qual são lícitos o álcool e o tabaco sem prejuízo às regulamentações legais, como a proibição de ambos aos menores de 18 anos, a proibição do primeiro aos motoristas e do segundo em locais sem ventilação.

2 Um minuto de história

Parece-nos interessante iniciar este trabalho com considerações sobre a história da proibição à maconha no Brasil. Tal abordagem é especialmente relevante para os que acreditam na interpretação histórica da norma jurídica como um relevante método hermenêutico.

A maioria dos dados históricos foi retirada de rica obra editada pela Universidade Federal da Bahia, intitulada “Rodas de fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas” (MACRAE; SIMÕES, 2000, pp. 18-27), os demais serão devidamente citados. Randall Kennedy, de forma geral, afirma que o “racismo, historicamente, influenciou a formulação da política de drogas”5 (KENNEDY, 1997, p.366). Isso parece ter sido verdade em nosso país. O hábito de fumar maconha foi introduzido no Brasil por escravos africanos, tendo se difundido entre populações rurais e indígenas do norte e nordeste. Gilberto Freyre chegou a considerar a maconha um elemento cultural de resistência à “desafricanização”. São expressivas as palavras de Raul Francisco Magalhães:

Há um dado em sua criminalização [da maconha] histórica que transcende o discurso médico. Trata-se do caráter explicitamente racista do seu processo de criminalização, quando foi associada a uma perversão própria dos descendentes dos africanos que teriam trazido tal doença para a sociedade civilizada. (MAGALHÃES, 1994, p.107)

Desta forma, a proibição da maconha foi mais uma tentativa de repressão à cultura negra, entretanto devemos mencionar que nem só de racismo foi forjada a lei. Houve ainda a necessidade de controle social de segmentos marginalizados da população, que àquele tempo6 se estabeleciam nas cidades (SIMÕES; MACRAE, 2003, p. 95). Por fim, houve razões médicas que embasaram a medida proibicionista.

Nos estudos médicos oficialmente considerados da época a maconha era apontada como causadora de agressividade, violência, delírios furiosos, loucura, taras degenerativas, degradação física, idiotia e sensualidade desenfreada. Suas propriedades farmacológicas foram identificadas às do ópio e seus derivados, o que levou a qualificar o consumo da erva como “uso compulsivo”. Resta aí a pergunta que pretendemos trabalhar: caso essas razões médicas forem equívocos científicos, o que restará para embasar a proibição, além do racismo e do controle da classe pobre por meio de sua criminalização?

3 A maconha no atual contexto científico

Não teríamos espaço suficiente nesse artigo para expor todos os casos históricos em que as informações médicas foram manipuladas intencionalmente para denegrir a imagem da planta. Citaremos apenas um episódio protagonizado por Harry Anslinger, considerado um dos principais responsáveis pela política proibicionista estadunidense e mundial.

O caso favorito de Anslinger era o de Victor Licata, um jovem de 21 anos, que, depois de fumar um baseado, matou os pais e os três irmãos a machadadas. O que ninguém contou na época é que o exame psiquiátrico de Licata revelou que ele sempre tivera alucinações seguidas de impulsos homicidas e que já havia sido internado num hospício uma vez, após um ataque de agressividade sem relação nenhuma com a maconha. Isso não impediu Anslinger de escrever, no artigo “Marijuana: assassina de jovens”, publicado em 1937 na revista American Magazine, que o rapaz “era tido como um jovem razoável e tranquilo” antes de começar a fumar maconha. (BURGIERMAN, 2002, p.35-36) negrito nosso.

Seria ingênuo imaginar que a atualidade já teria superado, por completo, as mentiras tão amplamente veiculadas nas gerações passadas, e não nos referimos apenas ao imaginário popular, algumas obras contemporâneas ainda ecoam a ignorância e o preconceito do passado. O mais assustador é que não se tratam de obras renegadas e esquecidas, mas de obras utilizadas no ensino jurídico de faculdades de excelência pelo país. A título de exemplo, são lamentáveis as afirmações colocadas por Delton Croce e Delton Croce Júnior em seu manual de Medicina Legal. Sem qualquer menção a estudos científicos os autores cometem desde vários erros médicos, como a afirmação de que maconha “não serve para tratar glaucoma” (CROCE; CROCE JÚNIOR, 1995, p. 544), até erros interdisciplinares, como a afirmação de que o usuário crônico de maconha seria um “verdadeiro arremedo de ser humano à margem da sociedade” (CROCE; CROCE JÚNIOR, 1995, p. 543)7. Um dos pontos mais relevantes no atual contexto científico da cannabis é seu uso medicinal, embora essa consideração não seja nada atual, havendo registros do uso da planta como remédio desde 2800 a.C. na China, onde era remédio para gota, malária, reumatismo, beribéri, problemas de memória e problemas menstruais (EARLEYWINE, 2002, p. 169); (IVERSEN, 2000, p. 122). Atualmente são inúmeras as possibilidades de tratamentos proporcionáveis pela Maconha. Em debate realizado pela Folha de São Paulo em 20/10/2010, o neurobiólogo, doutor em neurociência, Renato Malcher considera possível potencializar diversos princípios ativos presentes na planta gerando espécies sedativas, analgésicas, antipsicóticas, estimuladoras de apetite, antieméticas, anticancerígenas, antiespasmódicas, anti-inflamatórias e broncodilatadoras. A visão da maconha como remédio prevaleceu até suas recentes proibições no século XX. No tocante ao tratamento de glaucoma, citado acima, a maconha se mostra como extremamente eficaz. Entretanto, como seria necessário fumar vários baseados por dia, considerou-se melhor fazer um remédio específico extraído da planta, embora alguns pacientes tenham continuado preferindo a inalação. Um desses casos ficou famoso nos EUA com a ação de Randall contra o Estado para que lhe fosse garantido o direito de tratar seu glaucoma com a única coisa que lhe deu resultado, a maconha. Venceu o pleito em 1978, adquirindo o direito de receber aproximadamente 300 cigarros de maconha por mês do próprio governo. Tomando o referido manual de Medicina Legal como exemplo, notamos como a literatura atual ainda pode ser problemática ao abordar a maconha, aproveitamos para recomendar ao leitor que evite se embasar nos amplos manuais de psiquiatria ou outros ramos. É extremamente preferível que se busque informações em livros específicos sobre a planta, que tragam não apenas informações livres, mas que remetam e descrevam os estudos científicos que os embasam.

O mais relevante no tocante à proibição é o uso recreativo, muitas vezes considerado pela literatura preconceituosa como um sintoma de fraqueza de personalidade. Entretanto, pesquisa realizada na Inglaterra demonstra que os usuários têm uma visão bem diferente sobre o motivo que os levam a usar a maconha, dos 522 britânicos: 306 disseram que a planta os proporcionava prazer, diversão, relaxamento e aumentava a sociabilidade; 167 consideravam a cannabis mais barata e menos prejudicial que o álcool e outras drogas; 131 atribuíram o uso à maximização da consciência e do entendimento; 128 disseram que consumiam apenas porque gostavam (IVERSEN, 2000, p. 236). Uma das contribuições trazidas pela ciência da atualidade foi a possibilidade de comprovação da segurança do uso recreativo responsável da cannabis. Tal já havia sido afirmado em diversas pesquisas científicas ao longo da história, sem qualquer reflexo nas políticas legislativas, Iversen elenca diversos estudos que foram sistematicamente ignorados pelo legislador, como: “The Indian Hemp Drugs Commission Report, em 1894” (IVERSEN, 2000, p. 241); “Mayor La Guardia’s Report, em 1944” (IVERSEN, 2000, p. 243); “The Wootton Report, em 1968” (IVERSEN, 2000, p. 245); “La Dain Report, em 1970” (IVERSEN, 2000, p. 246). Diversas foram as pesquisas que demonstraram a baixa nocividade da planta ao organismo humano, o problema é que o legislador silenciou a essas pesquisas, negando sua cientificidade ou mesmo ignorando-as. Hoje, com o desenvolvimento dos métodos de pesquisa, e com a facilidade de circulação da informação, não é tão simples permanecer na ignorância.

As pesquisas da atualidade demonstram que o grau de nocividade da cannabis é relevante e merece controle estatal, mas é menor do que o do álcool e menor que o do tabaco na maioria dos aspectos, não merecendo, portanto, a ilicitude. Estudos comparativos da nocividade de várias drogas foram reunidos no livro Cannabis Policy (HALL et al., 2010, p. 41-42), os resultados, em síntese, foram os seguintes8:

1. Quanto à dosagem necessária para ocorrência de morte, a cannabis se mostrou a menos nociva.

2. Quanto ao nível de intoxicação produzido pela substância, a despeito da dose e condições de consumo, o álcool foi classificado como o mais nocivo, a maconha ficou com a quarta colocação e o tabaco, logo após, com a quinta.

3. Quanto a quão difícil seria abandonar o uso, no referente aos critérios de desistência de usar, desenvolvimento de tolerância, necessidade de ajuda e nível de dependência.

O resultado foi a demonstração de que a cannabis seria a menos nociva, enquanto o tabaco qualificou-se como o mais problemático, seguido da heroína, em segundo lugar, ficando o álcool com a quarta colocação.

4. Quanto ao grau de dependência psicológica, a maconha ocupa, mais uma vez, a posição de menos nociva entre as substâncias analisadas, sendo qualificada como fraca, enquanto os estimulantes são considerados como medianos. O álcool e o tabaco são classificados como muito fortes nesse quesito quantitativo de dependência psicológica.

5. No que se refere à toxidade em geral, levando em conta efeitos do uso a longo prazo sobre a saúde, bem como efeitos da utilização razoável da droga e outras consequências, o resultado detectou a maconha como possuidora de uma toxidade geral muito baixa, enquanto o álcool foi considerado possuidor de uma forte toxidade e o tabaco de uma muito forte.

6. No que toca à danosidade social, considerados os critérios de estimulo a condutas violentas, bem como outras desordens, como brigas e roubos, ou mesmo casos de direção irresponsável de veículos, a maconha classificou-se como fraca. O tabaco teve uma danosidade social considerada nula. Porém, o álcool, outra droga lícita, demonstra ter uma danosidade social bem acima da maconha, sendo qualificada como forte.

7. O último quadro comparou as substâncias em diversos critérios, atribuindo um asterisco às hipóteses tidas como menos comuns ou menos comprovadas e dois asteriscos às hipóteses consideradas como efeitos importantes. O resultado na distribuição foi o seguinte: a cannabis recebeu um asterisco no tocante a acidentes de trânsito e outros acidentes, doenças respiratórias, cânceres, doenças mentais, efeitos sobre o feto; dois asteriscos foram recebidos pela erva no tocante à dependência psicológica. Nota-se que, novamente, a maconha foi considerada a droga menos problemática, vejamos a classificação do tabaco: um asterisco para efeitos sobre o feto e dois asteriscos para doenças do coração, doenças respiratórias, cânceres e dependência psicológica. Lembrando que os quesitos não mencionados são os que não receberam nenhum asterisco, vejamos a situação do álcool: um asterisco para morte por overdose, infecções do fígado, doenças do coração, cânceres; e dois asteriscos para acidentes de trânsito e outros acidentes, violência e suicídio, cirrose hepática, doenças mentais, dependência psicológica e efeitos sobre o feto.

4 O vício em ideias e a portaria 344 da ANVISA

Por diversas vezes os usuários de maconha foram acusados de estarem se afastando da realidade, mas o que é a realidade? Certamente não é o mundo fictício no qual maconha causa agressividade, violência, delírios furiosos, loucura, taras degenerativas, degradação física, idiotia e sensualidade desenfreada. Com isso chegamos a uma conclusão curiosa, os que tanto clamam pela realidade estão submersos em um oceano de ignorância e preconceito que os impedem de ver a própria realidade. É o que chamamos de vício em ideias, algo que nos parece socialmente mais danoso que o vício em maconha. Não é aceitável que nossas instituições permaneçam contaminadas por esse vício, quando, na realidade, sua função seria combatê-lo. A ANVISA, como agência reguladora, deveria ser uma entidade “politicamente neutra e tecnicamente especializada” (BINENBOJM, 2008, p. 247). Por meio de sua competência técnica, tal agência reguladora deveria ter se negado a manter a cannabis na referida portaria que complementa a norma penal em branco da lei de drogas. É sabido que os motivos que, na prática, levaram nossa agência reguladora a proibir a maconha, não foram pesquisas realizadas em respeito a sua competência técnica. A ANVISA fechou os olhos para a ciência e, em respeito a tratados internacionais de índole política, – portanto incompatíveis com a natureza das agências reguladoras que se prestam a prover pareceres técnicos – inseriu a maconha no rol das substâncias proibidas.

Daí se fazer necessário o controle judicial do ato administrativo da ANVISA que insere o THC no referido rol, tendo em vista que “a validade do ato estará condicionada à existência dos fatos apontados pela Administração como pressuposto fático-jurídico para sua prática, bem como à juridicidade de tal escolha” (BINENBOJM, 2008, p. 206). Portanto, pela natureza técnica das agências reguladoras, a mera existência de tratados internacionais não justifica o ato administrativo, devendo haver uma fundamentação técnica. Obviamente, respeitado o Estado de Direito, a administração não pode ser arbitrária em seus atos, adentrando ao âmbito científico não bastaria a ANVISA mencionar os danos gerados pela cannabis, teria de enfrentar a questão de confrontar tais males com os de substâncias que ela permite, como o álcool e o tabaco, do contrário, sem tal confrontamento, permaneceria a repressão cultural materializada na proibição de uma substância menos nociva enquanto outras mais danosas, por razões políticas e não técnicas, são permitidas.

5 Norma penal em branco e as inovações científico-tecnológicas

Como é sabido, no direito brasileiro adota-se a chamada norma penal em branco para o tema das drogas. A lei de 11.343 não define quais são as substâncias objeto de sua tutela. Deixa tal tarefa para a ANVISA, na portaria 344. Muito se questiona sobre a utilização dessa técnica que acaba por deixar a cargo de uma agência reguladora a tipicidade de uma conduta criminal. Entretanto, há boas justificativas para sua utilização. Inicialmente, é de se constatar que “a norma penal em branco se destina a objetos mutáveis” (LOPES, 1993, p. 46), portanto, a justificativa de sua utilização estaria em garantir um trâmite mais célere e fundamentado a questões mutáveis que não deveriam estar sujeitas às contingências do jogo político legislativo. Entretanto, sabe-se que a lei penal em branco não é uma carta branca outorgada a outro poder para que este decida como bem entender (MARQUES, 2002, p. 160). Desta forma, a norma penal em branco não pode ser interpretada apenas no sentido de possibilitar o acréscimo de condutas criminalizadas, deve também abarcar a possibilidade da descriminalização. É o que parece exigir a ciência, ao demonstrar que a maconha não deveria estar elencada na portaria da ANVISA.

As inovações científico-tecnológicas permitem, não somente a descoberta da baixa nocividade da cannabis, mas também a divulgação dessa descoberta. Isso surte um efeito social que propicia a superação do antidireito instituído na atualidade. A população, aos poucos, toma ciência de que foi enganada, de que a consciência jurídica que possuem foi determinada por inverdades intencionalmente veiculadas com a finalidade de inebriar sua razão. Apesar disso, deve-se ressaltar que esse debate não deve ser resolvido pelo critério da maioria, não se deve esperar até que a parte majoritária da população descubra que foi enganada. Sendo uma questão de direito e não de política, a legalização da maconha é uma exigência da integridade esperada de um Estado Democrático de Direito, que não pode abandonar o multiculturalismo, muito menos por meio da adoção de uma política culturalmente repressiva, sem o devido respaldo na ciência médica. Quanto à possível hipótese de uma proibição legislativa direta à maconha, não se aplicaria a tese aqui defendida no tocante à necessidade de correta fundamentação do ato administrativo, visto a maior liberdade conferida ao legislador. Entretanto, entendemos que esta maior liberdade não lhe daria o direito de positivar normas racistas de evidente repressão cultural. Uma vez estabelecido pela ciência majoritária que a nocividade da maconha é menor que a do álcool e que a do tabaco, qual seria a fundamentação de uma lei que a proibisse? Excluindo a hipótese de que a lei também proibisse o álcool, o fato seria que tal ato normativo apenas estaria reprimindo um costume estranho ao ideário judaicocristão, enquanto permite outros mais nocivos, mas abarcados pelo costume ocidental.

Teríamos, portanto, uma inconstitucionalidade não por falta de válida motivação do ato administrativo, como no caso da ANVISA, mas uma inconstitucionalidade pela proibição de normas racistas que apenas visariam reprimir culturas minoritárias desprovidas que qualquer danosidade social intolerável.

6 A gravidade do problema

É importante evidenciar a relevância do enfrentamento deste tema que, por uns e outros, costuma ser apontado como de relevância secundária. De início, há uma urgente necessidade de veiculação de informações verídicas sobre a cannabis. A desinformação é tão grande que em 2001, em pesquisa nacional realizada pelo CEBRID, verificou-se que 43% dos entrevistados consideraram um risco grave usar maconha uma ou duas vezes na vida (CARLINI, 2002, p. 102), resultado totalmente desconectado do atual saber científico sobre a planta. Esse pavor social voltado à maconha reflete-se contra os maconheiros, que sofrem diariamente a perda de dignidade pela necessidade de esconderem seu hábito pouco nocivo de fumar cannabis, enquanto drogas muito mais nocivas recebem o aceite social financiado pela indústria farmacêutica. É preciso que se note a injustiça de julgar a capacidade produtiva de alguém por seu uso de maconha, é necessária a percepção de que esta injustiça é tão séria quanto as que julgam tal capacidade embasando-se na cor da pele do indivíduo.

Tais preconceitos e a consequente discriminação social são alimentados pela desastrosa forma com que a ONU lida com o problema. Seus relatórios são recheados de catalisadores da discriminação, um trecho pode esclarecer bem este ponto: A linguagem dos relatórios, em especial atenção aos dois primeiros, legitima argumentos de combate às drogas de cunho moral (“monstro”; as drogas “atormentam” o mundo), de caráter médico (“epidemia” de uso de drogas) ou mesmo de inspiração militarista (o “inimigo” contra o qual lutamos; a “batalha” contra as drogas; os vínculos entre crime organizado, terrorismo e consumo de drogas). Assim contribui tanto para a (re)produção sistemática do discurso de pânico social como para o recrudescimento do sistema penal em matéria de drogas. (SABADELL; ELIAS, 2008, p. 226)

Além da mencionada discriminação social, ocorre algo que poderíamos chamar de discriminação institucional. Como a atual lei de drogas não estabelece critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante, deixando à discricionariedade judicial tal classificação, acaba ocorrendo um fenômeno bem denominado de criminalização da pobreza. Não analisamos estatísticas específicas, mas cremos que nas tão numerosas zonas limítrofes entre tráfico e uso, o indivíduo pobre e morador da favela terá muito mais dificuldade para convencer o juiz de que não estava vendendo drogas do que o indivíduo não periférico. Daí o portador de drogas favelado ser sempre um traficante em potencial.

Por fim, há a questão do orçamento público. Os gastos com o suposto combate ao narcotráfico envolvem gigantesco volume monetário que poderia estar sendo investido, por exemplo, em saúde, mas a atual política insiste em construir penitenciárias, ao passo que deveria estar edificando hospitais. Além disso, a arrecadação oriunda da regulamentação da produção e consumo da maconha seria de grande valia aos cofres públicos, principalmente tendo-se em vista as múltiplas utilidades industriais da maconha.

7 Conclusão

Inúmeros pensadores já chegaram à conclusão do terrível fracasso da atual política de drogas, notando que “criminaliza-se o que a lei quer que seja criminalizado, independente do dano causado ao bem jurídico saúde” (GIACOMOLLI, 2008, p. 573), de forma que “a história da criminalização das drogas indica, como, em poucas décadas, o sistema de justiça penal, por meio do proibicionismo, constrói um grave problema social a fim de justificar sua intervenção, gerando violação de direitos fundamentais dos cidadãos” (SABADELL; ELIAS, 2008, p. 218).

No caso da maconha, que representa a maior parte do uso ilegal de drogas, a proibição se mostra inconstitucional, ao menos se estiverem corretas as pesquisas científicas consultadas neste trabalho. Nossa bibliografia, ao constatar a disparidade de nocividade entre a maconha e o álcool, exige que a ANVISA demonstre quais as razões técnicas para a proibição do primeiro e permissão do segundo.

O efervescente desenvolvimento tecnológico permite que a informação circule com maior facilidade, possibilitando discussões que por décadas não obtiveram o devido tratamento da mídia hegemônica. Desta forma, o judiciário não deve permanecer fossilizado, ignorando as descobertas da ciência e sua circulação, sendo um bom momento para o direito evidenciar seu potencial emancipador. O multiculturalismo é essencial ao Estado Democrático de Direito, e a dignidade dos maconheiros não tem encontrado a devida proteção jurídica. Não há dignidade quando se é forçado a praticar escondido um determinado ato que não provoca qualquer dano social relevante, não há dignidade quando se é obrigado a colaborar com o tráfico para permanecer realizando uma prática cultural legítima. Os maconheiros são pessoas que utilizam uma substância menos nociva que outras legalizadas, só sendo um grupo fora da lei por ela estar afastada da justiça.

1 Dedico esse artigo a todas as pessoas, vivas ou mortas, que não abdicaram da própria consciência e, portanto, fizeram o certo, ainda que fosse ilegal. Agradeço a Letícia Fonseca Braga Machado, por me incentivar e acompanhar na busca crítica pelo correto.

2 Graduando em Direito pela UFJF.

3 Tendo em vista os preconceitos sociais, é politicamente recomendável a substituição do termo “legalização” por “regulamentação”.

4 Lamentáveis tentativas de impedir a instauração de um debate social sobre o tema têm sido feitas pelo próprio judiciário. Houve inúmeras proibições judiciais da Marcha da Maconha, – movimento pacífico pela legalização da cannabis – alguns juízes classificavam o movimento como apologia ao crime. É preciso que tais magistrados repensem seu entendimento

sobre a Constituição Federal, pois seus atos foram repudiados pela unanimidade do plenário do Supremo Tribunal Federal, que declarou a licitude da Marcha na ADPF 187.

5 Tradução livre do trecho: “racism has historically influenced the formulation of drug policy”.

6 A primeira proibição ocidental à maconha foi posta no Brasil por uma lei municipal do Rio de Janeiro em 1830, mas foi somente em 1934 que seu uso passou a ser nacionalmente penalizado por lei federal.

7 A edição citada é de 1995, mas as mesmas informações continuam presentes até a edição de 2010, última que conseguimos consultar.

8 Daremos ênfase nas comparações entre a cannabis o álcool e o tabaco, vez que para nosso propósito é crucial demonstrar a discrepância entre tais substância. O livro citado apresenta três quadros sinópticos de comparação. No primeiro são confrontados: cannabis, MDMA, estimulantes, tabaco, álcool, cocaína e heroína. No segundo: cannabis, valium, ecstasy, estimulantes, tabaco, álcool, cocaína e heroína. No terceiro: cannabis, tabaco, heroína e álcool. Os trabalhos sintetizados no primeiro quadro são: GABLE, R.S. (2004) Comparison of acute lethal toxicity of commonly abused psychoactive substances. Addiction, 99: 686-96; HILTS, P. H. (1994) Is nicotine addictive? It depends on whose criteria you use: Experts say the definition of addiction is evolving. New York Times 2 August: p. C3.; STRATEGY UNIT (2005). Strategy Unit Drugs Report, May 2003. London: Prime Minister’s Strategy Unit. Available at:

http://www. strategy.gov.uk/work_areas/drugs/index.asp (Full report at http://image.guardia...dian/documents/ 2005/07/05/Report.pdf).; ROQUES, B., chair (1999). La Dangerosité de Drogues: Rapport au Secrétariat d’État à la Santé. Paris: La Documentation française-Odile Jacob. O segundo quadro é referente a esse último livro. O terceiro é uma síntese de HALL, W. D. (1999). Assessing the health and psychological effects of cannabis use. In: Kalant, H., Corrigall, W., Hall, W.D. & Smart, R. (eds.), The Health Effects of Cannabis. Toronto: Centre for Addiction and Mental Health, pp. 1-17.

Referências bibliográficas

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BURGIERMAN, Denis Russo. Maconha: Super Interessante, coleção para saber mais 4. São Paulo: Abril, 2002.

CARLINI, Elisaldo; et al. I levantamento domiciliar sobre uso de drogas psicotrópicas no Brasil. São Paulo: CEBRID e UNIFESP, 2002.

EARLEYWINE, Mitch. Understanding Marijuana: A New Look at the Scientific Evidence. New York: Oxford, 2002.

HALL, Wayne; ROOM, Robin; FISCHER, Benedikt; LENTON, Simon; REUTER, Peter. Cannabis Policy: Moving Beyond Stalemate. New York: Oxford and Beckley Foundation, 2010.

IVERSEN, Leslie L. The Science of Marijuana. New York: Oxford, 2000.

KENNEDY, RANDALL. Race, Crime, and the Law. New York: Pantheon Books, 1997.

LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

MACRAE, Edward; SIMÕES, Júlio Assis. Rodas de fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas.

Salvador: EDUFBA; UFBA / CETAD, 2000. Disponível em <

http://www.giesp.ffc...ba.br/Textos%20 Edward%20Digitalizados/24.pdf > Acesso em 24/06/2011.

MAGALHÃES, Raul Francisco. Crítica da razão ébria. São Paulo: Annablume, 1994.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Millennium, 2002.

SABADELL, Ana Luci; ELIAS, Paula. Breves Reflexões sobre a Política Internacional de Drogas: o Papel das Nações Unidas. In: Direito Penal no Terceiro Milênio. Org. Cezar Roberto Bitencourt. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

SIMÕES, J. A. ; MACRAE, Edward . A subcultura da maconha, seus valores e rituais entre setores socialmente integrados.

In: Marcos Baptista; Marcelo Santos Cruz; Regina Mathias. (Org.). Drogas e pós-modernidade: faces de um tema proscrito. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2003, v. 2, p. 95-107.

Disponível em <www.neip.info/downloads/t_edw13.pdf> Acesso em 24/06/2011.

@Percoff, obrigado pela dica sobre este excelente trabalho ;)

  • Like 6
Link para o comentário
Compartilhar em outros sites

  • 2 weeks later...
  • 1 year later...
  • Usuário Growroom

Obrigado pessoal, fiquei muito contente em ver os comentários! Escrevi esse artigo enquanto ainda estava na graduação e me surpreendi ontem ao ver um juiz trazendo à decisão judicial os argumentos levantados nesse trabalho. Aí vai o link da notícia com link para a sentença: http://www.conjur.com.br/2014-jan-28/proibicao-maconha-ilegal-fruto-cultura-atrasada-juiz-df

Abraços.

  • Like 1
Link para o comentário
Compartilhar em outros sites

Join the conversation

You can post now and register later. If you have an account, sign in now to post with your account.

Visitante
Responder

×   Pasted as rich text.   Paste as plain text instead

  Only 75 emoji are allowed.

×   Your link has been automatically embedded.   Display as a link instead

×   Your previous content has been restored.   Clear editor

×   You cannot paste images directly. Upload or insert images from URL.

Processando...
×
×
  • Criar Novo...