Parece que a absurda confusão de terça-feira no Posto 9 pode ter rendido algo de positivo na discussão a respeito da postura que as autoridades que combatem o tráfico de drogas devem ter quando lidam com usuários. Ontem, os ministros da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, e do Meio Ambiente, Carlos Minc, anunciaram ao repórter Jaílton de Carvalho, da sucursal do Globo em Brasília, que negociam no governo uma proposta para ampliar o alcance da nova lei de entorpecentes. Por “ampliação”, entenda-se estabelecer regras que deixem mais claro para os agentes da lei que os usuários devem receber tratamento diferenciado ao de traficantes quando flagrados com entorpecentes.
Na teoria, a lei já determina que isso aconteça. O porte de drogas para consumo pessoal, segundo reza o artigo 28 da Lei Anti-Drogas de 2006, é considerado um delito menor, não passível de prisão em flagrante, mas de “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Na prática, porém, o tratamento dado a usuários continua sendo pautado pelo contrangimento e pela ameaça, o que muitas vezes é o estopim, inclusive, para atos de corrupção e extorsão.
Uma das razões para esse problema é de cunho cultural, subjetivo, mas poderosíssimo: a maioria dos agentes de polícia consideram pessoalmente o porte de drogas uma ofensa gravíssima, e que a prisão do portador não deve sequer ser questionada. “Maconheiro”, “drogado”, “viciado” e “criminoso”, no universo da maioria dos agentes da lei, são praticamente sinônimos. Esse conceito tem sido reforçado ultimamente pela teoria – questionável – de que os usuários são os responsáveis primários por financiar o tráfico de drogas, e por conseguinte a violência que ele gera.
Tudo isso sozinho já é muito complicado. E a lei antidrogas, que poderia servir como elemento esclarecedor dessa questão – e uma regra clara que precisaria ser cumprida pelos agentes da lei, concordando eles ou não com ela – não está ajudando muito. De fato a lei, por mais bem intencionada que seja, confunde mais do que orienta. Não deixa claro, por exemplo, o procedimento a ser tomado quando se flagra um usuário: deve-se acompanhá-lo à delegacia? A droga deve ser confiscada? O usuário deve ser autuado? Um inquérito deve ser aberto? Qual é a quantidade máxima de entorpecente que pode ser considerada para consumo próprio e a quem cabe fazer essa medição? A lei não esclarece nada disso, e ainda confunde mais: pelo código penal brasileiro, conceitos como “prestação de serviços á comunidade” são penas alternativas, mas são penas, e devem ser aplicadas, por definição, como sanções legais contra atos criminosos. Mas e aí? Consumir drogas ilícitas, afinal, é ou não é crime por definição? O uso de maconha está ou não está discrimininalizado no Brasil? Eu, sinceramente, não sei. E fiquei ainda mais confuso depois de ler a lei de cabo a rabo (clique aqui para conhecer a atual Lei Antidrogas brasileira na íntegra).
Diante disso, a atitude dos ministros Minc e Vanucchi é, de certa forma, a admissão tácita de que a nova lei tem falhas que precisam ser sanadas. Segundo o Globo, os dois terão uma reunião na semana que vem com o ministro da Justiça, Tarso Genro, e da Saúde, José Gomes Temporão, para aprofundar o assunto.
Que esse encontro resulte num processo que ajude a melhorar a lei e, consequentemente, a sua aplicabilidade.
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Para quem não quiiser ler a lei inteira, seguem abaixo os artigos específicos sobre posse de drogas para uso próprio na lei:
TÍTULO III
DAS ATIVIDADES DE PREVENÇÃO DO USO INDEVIDO, ATENÇÃO E REINSERÇÃO SOCIAL DE USUÁRIOS E DEPENDENTES DE DROGAS
CAPÍTULO III
DOS CRIMES E DAS PENAS
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Capítulo III – DO PROCEDIMENTO PENAL
§ 2o Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
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Leia abaixo uma crítica à lei, publicada pelo advogado e professor de Direito da UNB Aldo Campos da Costa, pouco depois da sua aprovação, em 2006:
Porte de entorpecentes já não é infração de menor poder ofensivo
Aldo Campos da Costa Advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)
Ao excluir a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade e cominar sanções como “advertência sobre os efeitos das drogas”, “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo” e prestação de serviços à comunidade àquele que adquirir guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regu lamentar, a Lei nº 11.343, sancionada no dia 23 de setembro próximo passado pelo presidente da República, ao contrário de avançar na diferenciação no tratamento legal conferido a usuários e traficantes, acabou retrocedendo nos progressos até então alcançados no enfrentamento do problema.
Por não se tratar de contravenção penal nem de crime a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, atrelada ou não a uma multa, a conduta prevista no artigo 28 da nova Lei Antitóxicos — aná loga àquela descrita no artigo 16 da revogada Lei nº 6.368/76 — deixou de ser considerada uma infração de menor potencial ofensivo.
A nova formatação do crime de porte de entorpecentes, por incrível que pareça, impede até mesmo a proposta e a aplicação de institutos despenalizadores, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, na contramão de todos os princípios que parecem ter norteado a elaboração da nova lei.
Essa incoerência ocorre porque nem a “advertên cia sobre os efeitos das drogas”, tampouco a “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, sanções atribuídas para os infratores do artigo 28 da Lei nº 11.343/06, encontram-se previstas em nosso sistema punitivo como espécies de pena. E a prestação de serviços à comunidade, por sua vez, de acordo com o Código Penal, só pode ser utilizada para substituir penas privativas de liberdade — que o legislador fez questão de eliminar quando da elaboração do novo diploma — e, como s e não bastasse, apenas nas hipóteses estabelecidas no artigo 44 daquele estatuto.
Nem mesmo a adoção do procedimento sumaríssimo previsto na Lei nº 9.099/95 para o processamento e julgamento dos crimes de porte de entorpecentes, fixada no § 1º do artigo 48 da nova Lei Antitóxicos, permite a formulação de proposta de transação penal pelo Ministério Público nesses casos. Em nosso prisma, esse benefício só seria aplicável se a infração não ultrapassasse o limite legal de dois anos de pen a máxima cominada em abstrato. As sanções atribuídas ao artigo 28 da Lei nº 11.343/06, entretanto, sequer dispõem de balizas que determinem o cumprimento de seu prazo mínimo de duração.
Ademais, o objetivo da transação penal é justamente o de se evitar a imposição da pena prevista para o tipo penal. Não faria sentido, portanto, permitir que o autor do fato transacionasse para que, ao final, lhe fosse aplicada a mesma sanção que poderia lhe ter sido imposta caso recusasse a aceitação d o benefício. Por essas razões, a disposição contida no § 5º do artigo 48 da nova Lei Antitóxicos, além de inócua, causa perplexidade, e é, de toda forma, inconstitucional.
Careceria de sustentação também a afirmação de que o crime de porte de entorpecentes é uma infração de menor potencial ofensivo porque o § 6º do mesmo dispositivo prevê a aplicação de multa para “garantia do cumprimento” das sanções referidas no tipo secundário do artigo 28 — o que deslocaria a competência para o pro cesso e julgamento do crime de porte de entorpecentes para os Juizados Especiais Criminais.
A multa prevista no § 6º do artigo 48 da Lei nº 11.343/06 não tem natureza jurídica de sanção penal. É, ao revés, uma medida de caráter civil, um mecanismo de coerção patrimonial imposto ao executado, no sentido de induzi-lo ao cumprimento de uma ordem judicial, que visa, em última instância, preservar a dignidade da Justiça.
O Direito Processual Penal brasileiro, além do mais, não adm ite que o descumprimento de uma sentença penal seja “garantido” pela cominação de uma medida à semelhança da astreinte francesa, da Zwangsgeld alemã ou do contempt of court, previsto no direito americano, em função da ausência de previsão legal para tanto.
Depreende-se de todo o exposto, por conseguinte, que a natureza jurídica das sanções atribuídas ao crime de porte de entorpecentes não prestigia a opção de enquadrar a conduta descrita no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 como sendo de menor potencial ofensivo, conforme inicialmente pretendido pelo legislador, razão pela qual o seu processo e julgamento seguramente serão de atribuição da Justiça comum.
Isso é claro, se a flagrante inconstitucionalidade do dispositivo não for declarada antes por nossos tribunais.
Fonte: Correio Braziliense, 16OUT06, Caderno Direito & Justiça
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