O blog Trabalho Sujo traz uma matéria sobre a João Gilberto (Zé Maconha), a bossa Nova e a maconha. Trazendo um belíssimo retrato da situação do uso da maconha nos anos 50, presente no livro “Chega de Saudade”
Vai dizer que você não sabia? Tá no Chega de Saudade!
“Comprava-se maconha quase abertamente na Lapa em 1951. Um dos points era a calçada do bar Primor e do cinema Colonial, no largo da Lapa, defronte ao ponto do bonde. Os fornecedores eram os garotos que vendiam cigarros nos tabuleiros. Nesses tabuleiros, entre os inocentes Lincoln, Caporal Douradinho, Liberty Ovais e outras marcas comerciais, podia-se escolher entre os cigarros que já vinham enroladinhos em três diâmetros e preços diferentes: “fino”, “dólar” e, o mais grosso, “charo”.
Não há registros de cotações da época, mas diz-se que eram até baratos, considerando-se a sua excepcional qualidade – sem dúvida, para conquistar freguesia. Na intimidade, a maconha era chamada de “mato”, “erva” ou, só pelos iniciados, de “Rafa” – uma abreviatura da expressão “O Rafael tá ai?”, para saber se havia fumo no pedaço.
Ninguém corria grandes riscos ao fumá-la em lugares públicos. Embora não fosse exatamente “crime”, era só aconselhável não fazer isto muito perto da polícia, porque esta poderia ter idéias. Quanto aos circunstantes, tudo bem: poucas pessoas sabiam identificá-la pelo cheiro.
E, as que sabiam, curiosamente não viam a maconha como um tóxico (que todos pronunciavam “tóchico”), mas como um “alucinógeno”. (Para o vulgo, havia uma importante diferença nas duas classificações). Como quase ninguém sabia de verdade o efeito que aquilo provocava, o máximo de atribulações que alguém poderia ter se fosse apanhado fumando era a de adiquirir certa fama de “maluco”.
Ou seja: nada contribuísse muito para piorar a imagem que já se tinha dos músicos e cantores.
Apesar do aparente liberalismo, poucos músicos e cantores brancos estavam nessa nos primeiros anos 50. Os sambistas de morro sempre tiveram maconha à sua disposição, mas ela custou a descer para a cidade, e quando isto aconteceu, logo depois da Segunda Guerra, foi em pequena escala.
No principio, seus consumidores foram os soldados americanos, que já desembarcavam fissurados na praça Mauá. Ali eles fizeram contato com embarcadiços cubanos, sempre espertos quando se tratava dessas coisas, e resolveram o seu problema. Muitos desses soldados ficaram amigos dos músicos da rádio.
O Zica (não confudir com o futuro Zicartola, na rua da Carioca) não era um ponto de drogas, limitando-se a um ativo comércio de dólares ou uísques de contrabando. Mas, naquele vaivém entre marines, cubanos e músicos, o interesse pelo produto teria de ser despertado até em quem não fumava ciganos comerciais. A orquestra de Tommy Dorsey veio ao Rio naquele ano e introduziu a turma da Rádio Tupi nas diversas utilidades do produto.
Quase todos os Garotos da Lua eram chegados ao “Rafa” e, quando eles ofereceram o primeiro a João Gilberto, no apartamento do Bairro de Fátima, este viu na coisa qualidades que os ciganos comuns, que tentava fumar com certo orgulho, decididamente não tinham. Ela lhe dava a impressão de aguçar a sua sensibilidade, fazendo-o perceber sons e cores de que nunca suspeitava.
Além disso, parecia despertar-lhe uma coisa mística, meio inexplicável, que, até então, aos vinte anos, ele represara sem saber. Foi uma conquista fácil. Desde então, nunca mais fumou Lincoln, Caporal Douradinho ou Liberty Ovais.”
E o apelido do cara?
“Um dos grandes momentos, segundo Carlinhos Lyra, era quando, à luz do lampião na porta do Plaza, formava-se um improvável quarteto vocal composto pelo próprio Carlinhos e mais Alf, Donato e João Gilberto – cujo apelido, recorda ele, era Zé Maconha, Carlinhos também descreve o figurino de João como invariável – terninho azul da Ducal, camisinha branca e calças de pescar siri – e não se lembra de tê-lo ouvido tocar violão naquele tempo.”