Para jornalista da New Yorker, Rio é uma calamidade
Desde maio, o jornalista e escritor americano Jon Lee Anderson está no Rio de Janeiro para tentar entender como atuam as organizações do tráfico de drogas. A reportagem será publicada até o final do mês, na prestigiada revista The New Yorker. O repórter André Miranda, do jornal O Globo, entrevistou o jornalista.
Ao longo da conversa, o americano conta que conversou com traficantes e visitou favelas que há sete anos não recebem a visita de policiais. “A situação do tráfico não é vista como uma calamidade nacional. E, no meu ponto de vista, é o que o Rio é: uma calamidade nacional”, disse o jornalista ao Globo.
“Há gangues fora de controle em muitos territórios. O que as diferencia das guerrilhas do passado é que antes havia ideal político. Há uma estranha acomodação e conveniência entre a criminalização da sociedade e o asfalto. Isso é uma perversão da normalidade. Depois de um tempo, você se adapta e se acostuma com essa deformação. Não é apenas no Rio. Eu já vi isso em outros lugares”, afirmou.
Sobre traficantes, ele entende que “se o Estado não lhes dá condições para deixar de ser criminosos, tudo o que podem fazer é continuar sendo criminosos e sobreviver. É uma escolha amoral de uma existência amoral”.
Leia a entrevista concedida ao jornal O Globo.
Por que fazer uma reportagem sobre os problemas do Rio?
Jon Lee Anderson — Minha reportagem não será um texto de um americano dando respostas para os problemas brasileiros. Eu não tenho essa pretensão. O que acontece no Rio faz parte de uma história maior, que não é exclusiva do Brasil e que já aconteceu em outros lugares, em tempos diferentes. Se você observar a Chicago dos anos 1930, vai entender o que quero dizer: lá também havia corrupção e não havia Justiça. Vale a pena escrever sobre o Rio porque a cidade é um exemplo extremo do que acontece em outros lugares.
O senhor entrou nas favelas sozinho ou acompanhado?
Anderson — Acompanhado. Eu tive acesso a algumas favelas. Eu fui para o Alemão, por exemplo, e algumas outras. Mas prefiro não dar detalhes sobre isso antes de minha reportagem ser publicada.
E o senhor falou com traficantes?
Anderson — Sim.
O que eles disseram?
Anderson — Não existe um discurso único. O que eu achei mais interessante foi como eles se assumiram como criminosos, literalmente como criminosos. Não houve tentativas de fingir que têm outro papel. Mas eles tentaram se justificar de alguma forma, como se buscassem redenção, explicando que as pessoas dependem deles. Segundo suas descrições, é uma relação parecida com a estabelecida pelas máfias. Se as senhoras ficam sem gás, eles compram gás para elas, essas coisas. O interessante para mim é como isso é permitido, como a sociedade está acomodada com essa situação.
Por que acomodada?
Anderson — Eu fui a favelas em que não aparecia polícia desde 2003. Há mil favelas no Rio. Eu acho que a situação do tráfico não é vista como uma calamidade nacional. E, no meu ponto de vista, é o que o Rio é: uma calamidade nacional. Há gangues fora de controle em muitos territórios. O que as diferencia das guerrilhas do passado é que antes havia ideal político. Há uma estranha acomodação e conveniência entre a criminalização da sociedade e o asfalto. Isso é uma perversão da normalidade. Depois de um tempo, você se adapta e se acostuma com essa deformação. Não é apenas no Rio. Eu já vi isso em outros lugares. E não é apenas um problema brasileiro, é um problema que ocorre na América Latina. Resolvi buscar essa história aqui porque acho o Rio um lugar maravilhoso e problemático.
Quando os traficantes tentaram se justificar, o senhor acreditou neles?
Anderson — O que me impressionou foi ver que eles realmente fazem algumas coisas pela população. Acontece que apenas algumas poucas pessoas são completamente más. A maior parte delas, mesmo criminosas, não o é. Até os criminosos precisam criar alguma compensação moral, por mais distorcida que seja. Isso está relacionado a um tipo de ordem que não é fornecida pelo Estado. Dar gás para a senhora que está precisando é uma boa forma de propaganda. Mas também é uma necessidade, porque eles precisam do apoio dessas pessoas, de um jeito ou de outro. Um guerrilheiro me disse certa vez: “Pode-se ganhar uma guerra de duas maneiras, a boa e má, e as duas funcionam.” Só que também é possível usar as duas maneiras ao mesmo tempo. E, de fato, é o que acontece no Rio. Você pode intimidar toda uma população para que ela faça o que você ordenar. Para os traficantes, não importa tanto quem vai vencer. Isso é secundário. É mais uma questão de sobrevivência por um tempo. É sempre uma questão de sobrevivência. Se o Estado não lhes dá condições para deixar de ser criminosos, tudo o que podem fazer é continuar sendo criminosos e sobreviver. É uma escolha amoral de uma existência amoral.
A culpa, então, é do Estado?
Anderson — Não, não estou pondo toda a culpa no Estado. Mas também não acredito que ele seja uma vítima. Há uma perversão patológica que permite que a criminalização da sociedade continue. Isso é perturbador. No Rio, o comportamento criminoso visa sobretudo a ganhar dinheiro. É inteiramente materialista. É uma humilhação imensa para a existência humana. Eles não lutam ou arriscam suas vidas para mudar a sociedade. Eles arriscam suas vidas para vestir um Emporio Armani. E me assusta ver que o resto da sociedade, que também gosta de vestir um Emporio Armani, está feliz em deixá-los fazer isso. É claro que a sociedade vai dizer que não está feliz, mas sua inércia diz o contrário. E é claro que há uma relação entre eles, de fornecedores e consumidores, e também das redes corruptas do Estado que não ocupam aquele vácuo.
O Estado se mostra disforme e corrupto quando aceita fazer contato com eles. A polícia se torna assassina ou vira milícia, o que também é um tipo de máfia. E os juízes, o que fazem? Por que os assassinos de Tim Lopes estão nas ruas? Os jornalistas hoje têm medo de entrar nas favelas porque eles são torturados e mortos. OK, se é errado torturar e matar, por que eles são soltos depois de dois ou três anos? Não estamos falando de um assaltante de banco que atirou em alguém acidentalmente, estamos falando de uma pessoa que torturou a outra até a morte por horas. O Estado não está funcionando, e os criminosos sabem disso. Os criminosos estão se tornando mais fortes, perderam todo o respeito pelas leis e pela sociedade.
O senhor procurou alguém do governo?
Anderson — Sim, eu conheci algumas pessoas interessantes. Algumas me pareceram excepcionais e parecem ainda tentar descobrir como consertar o problema. Também falei com alguns policiais e com pessoas envolvidas na segurança do estado. Existe um documentário brasileiro chamado “Notícias de uma guerra particular”, dirigido por João Moreira Salles.
O senhor viu este filme?
Anderson — Sim. Eu me encontrei com João logo que comecei a apurar a história. Ele me disse que se afastou do tema nos últimos anos. E disse que muitos dos jovens do filme já estão mortos. Vendo o filme, percebe-se que a situação do Rio já era emergencial há 12 anos. Só que, de 12 anos para cá, o número de mortos só cresceu. Eu fui ao enterro de um policial. Enquanto eu estava no Rio, cinco policiais foram mortos. Parece que atirar e matar policiais é um esporte. Isso deveria chocar as pessoas. Mas talvez as pessoas não se choquem porque elas também não enxergam os policiais como uma força de lei e ordem. É horrível pensar que a população pode enxergar os policiais como criminosos. O Estado não aplica a Justiça, então a polícia mata. E, em resposta, os criminosos matam de volta. O que acontece na América Latina parece aquela cidade distópica do Batman. Os criminosos são personagens que têm rostos, que se escondem e que entram em guerra contra a cidade. O Pinguim virou realidade. Não deveria ser assim, mas é, e as pessoas se acomodaram com essa situação. Quando João Moreira Salles lançou seu filme, ele foi criticado por ter mantido contato com traficantes.
O senhor acha que o mesmo pode acontecer com sua reportagem?
Anderson — Eu acho que sim. Na Colômbia, o presidente Uribe, que tem uma popularidade imensa, chama todos os guerrilheiros de terroristas. A população ficou apática e não quer saber o que acontece nas selvas, onde ficam esses guerrilheiros. Então, um grupo de jornalistas entrou nas selvas para se encontrar com os guerrilheiros e fazer um documentário. Aí o presidente passou a chamar esses jornalistas de terroristas também. Eu não sei exatamente o que aconteceu com João Moreira Salles aqui. Só li sobre o caso muitos anos depois e soube de várias versões diferentes. Mas me parece problemático quando o governo ataca verbal ou judicialmente jornalistas que cruzam a linha para informar à população o que acontece do outro lado.
Espero que as pessoas não cometam esse erro comigo e me acusem de qualquer coisa só porque eu conversei com criminosos. Eu não criei esse problema. Foram as supostas autoridades que permitiram que isso ocorresse. As favelas às quais eu fui não veem autoridade há sete anos. E eu também entrei em favelas em que passei por pequenos postos policiais completamente nas mãos de grupos criminosos armados, vendendo cocaína abertamente, com armas na mão. Tudo em frente à polícia; também vi policiais lá. Eu conheci uma traficante muito simpática, que me contou que tinha sido estuprada por um grupo quando criança. Ela não estava justificando sua atividade. Ela é uma traficante. Não é porque eu vou escrever sobre ela, humanizar essa personagem, que isso significa que eu estou fazendo apologia ao crime. Não concordo. Não escrever sobre ela é não lidar com o problema. E escrever não é desculpar seu crime.
Quando o senhor conversou com os traficantes, em algum momento eles trataram da relação que é criada entre eles, que são fornecedores, e os usuários de drogas?
Anderson — Eles se justificam dizendo que só vendem porque há demanda. É um argumento antigo, mas não é desculpa. Você acaba deixando de lado o problema real. Você poderia dizer que, se não houvesse crianças, não haveria pedofilia. Passa pela psicologia do crime culpar a sociedade por seus atos. É dizer que a polícia é cruel, então tenho que matá-la; que os ricos nos exploram, usam drogas e são moralmente decadentes, então sou melhor do que eles, porque sou pobre e há virtude em ser pobre. Só que não há virtude em ser pobre, a pobreza não tem a ver com virtude. Da mesma forma que não há virtude em ser uma vítima.
Eu me lembro que, no Iraque de Saddam, todos culpavam o Saddam. Só que a população era cúmplice. No fim, ela se tornou parte de sua repressão porque, com sua violência, ele fez com que todos aceitassem suas regras. Se você não lutar para consertar um problema logo, todos acabam vivendo juntos e todos são culpados juntos. No fim, a diferença entre bons e maus é pequena. Fica difícil identificar quem é culpado ou inocente. Na essência, qualquer crime organizado funciona assim. Se você deixá-lo continuar, você cria um ambiente deformado.
O senhor acha possível fazer uma comparação do Rio com Bagdá?
Anderson — É difícil estar com criminosos porque você não sabe o que eles podem fazer. São imprevisíveis. Eles não têm um ideal político. Nesse sentido, é sempre mais perigoso estar perto de criminosos.
O senhor tem filhos?
Anderson — Sim, três adolescentes.
Se algum deles lhe dissesse que está pensando em tirar férias sozinho no Rio, o que o senhor diria?
Anderson — Eu diria não.
E ponto final?
Anderson — Não, não seria ponto final. Eu tentaria arrumar uma garantia de que eles poderiam viajar com segurança. Tentaria marcar com amigos que conhecem o Rio, essas coisas. E explicaria a eles o porquê. Eu viajei pela África com 13 anos de idade sozinho, sem meus pais saberem. Nada de ruim aconteceu comigo. E meus filhos sabem disso. Meu filho agora tem 16 e quer fazer o que eu fiz, mas eu digo a ele que o mundo mudou. Eu tento não fazer com que eles tenham medo, mas também não quero que se machuquem. Como qualquer pai, eu tento permitir que eles façam coisas, mas em segurança. Estou com dois de meus filhos aqui em Paraty e vou levá-los ao Rio nos próximos dias.