Reflexões sobre o caso Marco Archer Cardoso Moreira, o primeiro brasileiro executado – no exterior – por tráfico de drogas.
No período de tempo entre o início e o fim da escrita deste texto, o primeiro brasileiro condenado à morte em um país estrangeiro terá sido assassinado pelo estado indonésio. O instrutor de asa delta Marco Archer Cardoso Moreira viveu hoje, 17 de janeiro de 2015, seu último dia. Sentenciado por tráfico internacional de drogas, o caso foi acompanhado de perto por mais de dez anos pela diplomacia brasileira, sem render qualquer forma de clemência por parte de sucessivos governos indonésios.
Ao assumir seu mandato no fim de 2014, o novo presidente da Indonésia, Joko Widodo, decidiu dar o exemplo de que seu país não irá tolerar o malefício causado pelas drogas ilícitas e passou a negar clemência a todo e qualquer condenado por esse crime. O assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, ao divulgar em entrevista coletiva os esforços infrutíferos da presidente brasileira em conseguir a comutação da pena de Marco, declarou, desoladamente, que somente um “milagre” poderia salvá-lo da execução por fuzilamento.
No mundo ficcional de Jorge Luis Borges há uma história que vale a pena ser contada sobre um milagre e um fuzilamento. Em um conto que está no livro ‘Ficções’, Borges conta a história de Jaromir Hladík. Hladík é um escritor e literato que tem o infortúnio de ser meio-judeu, ter escrito sobre temas judaicos, ter se manifestado contra o nazismo e estar em Praga quando a cidade é invadida pelo exército alemão em 1939. O oficial germânico responsável pelas execuções decide, rápida e cartorialmente que Hladík deverá ser morto por fuzilamento para, como remete o texto original em francês, encourager les autres. Mas, para também deixar clara a banalidade administrativa de seu ato, marca a execução para dez dias depois, agindo “impessoal e pausadamente, como os vegetais e os planetas”.
Na véspera de sua morte, à noite, Hladík lembra-se de sua peça inacabada, um drama em versos chamado Os Inimigos. Repete mentalmente a parte pronta da obra, que sabe de memória, e decide, na escuridão, falar com Deus: “Se de algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como autor de Os Inimigos. Para levar a bom termo este drama, que pode justificar-me e justificar-Te, requeiro mais um ano”, e dorme profundamente, tendo um sonho revelatório em que ouve a resposta – também particularmente cartorial: “O tempo do teu trabalho foi outorgado”. E acorda.
Levado a um pátio, a ordem de fuzilamento é dada às nove horas e dois minutos, com um atraso pouco maior do que uma centena de segundos em relação ao instante marcado para que Hladík seja moído pela engrenagem alemã. Quando vai gritar, o tempo se congela, porém a sua consciência continua desperta. Ele vê a fumaça de seu cigarro imóvel no ar, e percebe uma gota de chuva que não escorre de seu rosto. Não se mexe, mas não sente qualquer desconforto.
É necessário mais de um dia nesse estado para que Hladík entenda que Deus atendera sua prece. Ele agora tinha o tempo que precisava para terminar sua obra. Trabalhava diariamente, com pausas para dormir dentro de si mesmo, em sua peça. Muda trechos e chega a refazer completamente um dos atos. Completa os dois atos finais, e, por fim, lhe falta resolver apenas um derradeiro epíteto. Encontra os versos, a gota de chuva lhe desce pela bochecha, ele grita, e quatro tiros lhe matam.
Não teremos qualquer notícia se um milagre secreto aconteceu a Curumim, o apelido de Marco Archer. Enquanto isso, ecos nada ocultos nos chegam por conta dessa triste história. No ambiente selvagem dos comentaristas de internet, que repete algumas conversas que se ouve no país, dos carros de táxi às bancas de jornais, há um apoio entusiasmado pela morte do brasileiro. Os argumentos não são muito distantes daqueles usados por Widodo e seu governo, basicamente os de que as drogas são um mal a ser combatido em si a todo custo, e que o exemplo da execução para a juventude que irá coibir esse mal. Mesmo em seu apelo por clemência divulgado à internet, esse ideal era reiterado na voz do próprio Marco Archer, que desejava sobreviver para alertar aos jovens do Brasil que as drogas só levam “à cadeia ou à morte”.
Muitos dirão que Curumim conhecia seus riscos, e nisto poderão ter certa razão. Morando há anos em Bali e falando bahasa fluentemente, ele racionalmente teria condições de saber o que poderia lhe acontecer, ainda que qualquer um que se aventure neste tipo de loteria nunca ache que será pego. Pode-se também argumentar que transportar drogas não é a mesma coisa que pertencer a um grupo étnico-religioso como no caso de Hladík, e isso também é verdade. Há ainda os que tomaram o cuidado de verificar um pouco da biografia do condenado e antipatizam com o fato de ele já ter feito milhares de viagens como “mula”, e com isso sustentar uma vida de luxo em diversos países.
Preciso pausar um pouco, aqui. A partir de agora, para os que têm em sua vida a necessidade odiar alguém de forma assassina, não sei se posso ter qualquer tipo de apelo. Argumentos que defendam a sacralidade da vida humana são muito recentes e, considerando-se a população do mundo, provavelmente minoritários. A história do mundo é uma toada de infindáveis mortes humanas por diversos fins: bélicos, políticos, ideológicos, religiosos, étnicos, econômicos, burocráticos e até cosméticos, e as pessoas que desejam a morte de outrem estão mais afinadas com a canção da tradição do que eu. Se você pensa assim e não está disposto a questionar seu pensamento, acho que já pode parar de ler o texto por este parágrafo e transpor a sua indignação em letras maiúsculas para o epitáfio da civilização que são as caixas de comentários.
Voltando, portanto, à história de Curumim, que é complexa como a história de todo ser humano, não nos cabe aprofundar nos eventos que o transformaram de um atleta de voo livre jovem e de classe média em um traficante internacional de drogas. No entanto, há um elemento muito claro que conecta a vida baladeira de Marco Archer e os conceitos usados para justificar a sua morte: dinheiro.
Enquanto houver dinheiro que pague pessoas suficientemente desesperadas ou superconfiantes (como parece ser mais o caso em questão) para transportarem drogas pelas fronteiras do mundo, não haverá execuções que findem o tráfico de drogas. Esse é o mesmo dinheiro que move helicópteros cheios de cocaína, arquiteta as propinas que corrompem os sistemas de segurança ou financia riscos desse tipo. E esse dinheiro aumenta quanto mais intransigente for a proibição.
A revista científica mais importante no campo das substâncias psicoativas, a Addiction, publicou um editorial no ano de 2009 em que pediu o fim da execução da pena capital para o tráfico de drogas. Os dois principais argumentos em que os editores sustentam esse pedido são o da eficácia e da proporcionalidade.
Se fôssemos ser absolutamente rigorosos em relação à proporcionalidade, um país que condena traficantes à morte teria que matar fabricantes de carros e produtores de bebidas alcoólicas. O risco de morte associado de alguma forma ao uso de drogas ilícitas em geral não é maior do que o risco de acidente automobilístico ou atropelamento e é consideravelmente menor que o de se morrer por uso direto ou indireto de álcool. A maioria dos usuários de substâncias ilegais não é dependente e não executa atividades violentas associadas ao uso. Matar traficantes é claramente desproporcional ao impacto à vida humana da atividade que eles realizam, a despeito das teorias da criminalidade cuidadosamente cultivadas nos programas televisivos vespertinos. E, é claro, a quase totalidade das atividades violentas ligadas ao tráfico acontecem unicamente devido à ilicitude do comércio de alguns – e não outros – psicotrópicos.
Quanto à eficácia, a Addiction deixa claro que não só não há evidências de que penas de morte para tráfico tenham qualquer impacto na redução do tráfico de drogas ilegais. A revista também lembra o óbvio: os grandes traficantes não estão carregando drogas através das fronteiras dentro de suas bagagens ou de seus corpos, e não são eles os que estão em maior risco de execução. Mais do que isso, há a substancial evidência que indica que a chance de ser flagrado em ato irregular é que reduz a chance de alguém realizá-lo. Não é à toa que o Rio de Janeiro teve uma queda de 44% nas mortes no trânsito, enquanto em São Paulo foram somente 8% entre os anos de 2012 e 2013. O rigor e frequência das blitze da Lei Seca já influenciou o hábito dos cariocas, que evitam com mais frequência do que os paulistas o ato de dirigir depois de beber. Ninguém precisa ser preso ou executado no Rio de Janeiro para que um importante dano ligado ao uso de álcool seja reduzido.
Mas é claro, Rio de Janeiro, São Paulo ou em muitos lugares de nosso país, não é bem assim que as coisas funcionam quando o assunto é drogas ilegais. É consenso entre os estudiosos da criminalidade que a pena de morte para tráfico de drogas existe no Brasil de maneira informal. O recurso dos autos de resistência permite que muitos policiais tenham ações de extermínio justificadas perante a lei, agindo, com a conivência da sociedade, como se fossem o fictício Juiz Dredd, personagem britânico de histórias em quadrinhos que tem poderes para decidir e imediatamente executar a pena de morte de desordeiros.
A ojeriza aos traficantes de drogas que apoia a morte do compatriota Curumim cuidadosamente cultivada no país é um efeito colateral do processo perverso da proibição. Ao mesmo tempo em que move o comércio de determinadas substâncias para uma zona de operação onde a demanda e a economia de escala irão ditar a violência como uma ferramenta, a proibição se nutre dos efeitos deletério das drogas e dessa violência que ela mesma causa para justificar a carnificina e o encarceramento de populações marginalizadas. Sob qualquer ângulo que se encontre para se olhar esse fenômeno, é praticamente impossível encontrar qualquer efeito positivo desse sistema. Mas ele é mantido pela clássica litania que usa o pânico moral como sustento para todos os abusos no mundo por: “sem repressão isso seria muito pior”.
A versão burocratizada de nossos medos ganhou tintas polarizadamente radicais nesta cabeça de século. Nunca se clamou tanto por maior rigor contra os crimes de drogas e, ao mesmo tempo, se pediu de forma tão insistente que as leis que proíbem as drogas sejam revistas ou mesmo revogadas. Entretanto, a força dos costumes estabelecidos e da burocracia ainda suporta que a prevenção dos danos das drogas se dê causando danos maiores que os promovidos pelas drogas.
Por mais que possa parecer exagerado, o angustiado literato da história de Borges e o bon vivant Marco Archer tiveram suas mortes unidas pela marca da intolerância. O marco da execução indonésia não é um ato deliberado contra uma etnia (apesar de cinco dos executados hoje serem estrangeiros), mas há pistas suficientes no Brasil para se desconfiar que as aplaudidas execuções ao estilo Capitão Nascimento sejam fortemente influenciadas pela cor da pele do criminoso. Oficialmente, somos contra a pena de morte. Oficiosamente, acontece o que se pode descrever como um genocídio dos jovens negros do sexo masculino.
Marco Archer não deve ser visto como um mártir. Mas sua morte certamente marca o paroxismo de uma política que nós apoiamos como nação, na surdina, e que justifica a Auschwitz escondida nas nossas vetustas instituições. Há uma enorme contradição entre o telefonema da presidente Dilma a Widodo e a declaração recente do Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo de que o governo sequer irá debater mudanças nas políticas de drogas. Se por um lado se cumpre o protocolo diplomático, por outro se demonstra que a estrutura de alianças políticas que mantém a parca governabilidade brasileira está sediada em um conservadorismo que não é de esquerda ou de direita. Trata-se, nesse caso, de um pacto com raízes profundas no autoritarismo e em um fundamentalismo religioso que ainda não chegou a compreender o significado da palavra compaixão.
Em um ambiente como esse, não é o caso de esperar que uma força superior venha interceder por nós. É necessário que aqueles que são contra a matança e buscam políticas de amparo às pessoas que fazem uso problemático de drogas e seus familiares não se aquietem e tomem posição, seja em fóruns públicos, seja discutindo a questão com seus próximos. É somente por meio da discussão franca, incessante e honesta que se poderá mudar a história da Guerra às Drogas que narcotiza a nossa percepção sobre este problema. Definitivamente, quando isso vier a acontecer, não será em segredo – e nem por milagre.
Campinas, 17/01/2015 18:00h