Em agosto de 2017, aos 28 anos de idade, Marco Antonio Barreto faleceu muito jovem, mas deixou um legado que vai perdurar por gerações. Da cidade interiorana de Governador Valadares, MG, ele atingiu milhares de pessoas com sua coragem e determinação. Eu o conheci em 2014, quando Marco me concedeu uma entrevista por Skype e generosamente me contou sua história de luta, que aqui reproduzo. A seguir, contarei como um tímido mineiro acabou ajudando centenas de pacientes, ativistas e usuários de maconha, até mesmo da cama de um hospital.
Aos dezesseis anos de idade, o coração de Marco parou pela primeira vez. Ele estava na escola. Os colegas o assistiram cair no chão e tremer descontroladamente por vinte minutos, enquanto os professores chamavam uma ambulância. Ele foi desfibrilado a caminho do hospital. Não se lembra de nada, não houve túnel, luz ou experiência extracorpórea. Acordou no hospital sentindo como se tivesse sido atropelado por 25 caminhões. Essa havia sido a primeira manifestação da epilepsia; e não seria a última.
Marco recebeu a prescrição de medicamentos para controlar a doença, mas eles não pareciam funcionar.
– Não fez efeito – disse ele em 2014, durante nossa entrevista por Skype – Tomei por um ano e não fez efeito. Continuei tendo crises. Dava três vezes ao mês, aí passava um mês sem, dava outra.
As crises não eram leves ou curtas, Marco convulsionava por mais de vinte minutos e, em algumas ocasiões, mais de uma hora. Mais tarde, uma nova combinação de medicamentos conseguiu controlar melhor as crises, que diminuíram um pouco.
Em 2010, no entanto, aos 22 anos de idade, Marco começou a sentir dores abdominais e articulares.
– Eu tive muito vômito, muita diarreia. Vomitei demais. Emagreci vinte quilos em um mês, dois meses.
Ele já não era dos mais gordinhos. Antes de emagrecer, Marco pesava 65 kg; a perda de peso o deixou extremamente fraco. No hospital, as coisas aconteceram rapidamente. Ele recebeu o diagnóstico de doença de Crohn em novembro; em dezembro, Marco já havia passado por três cirurgias. A doença causara uma inflamação séria no cólon intestinal e, como o intestino estava comprometido, seria necessário desviar o curso da digestão. Foi instalada uma bolsa de colostomia, onde são eliminados as fezes e os gases. Uma fissura foi aberta no cólon e no abdômen de Marco, para que a bolsa tivesse acesso ao intestino. A situação não era agradável, mas melhorava o quadro em que ele se encontrava. Mais medicamentos foram prescritos.
Marco fumava maconha de vez em quando desde os quinze anos de idade, e estava preocupado que a erva tivesse tido algum papel em causar ou agravar a doença de Crohn. A maior parte da informação disponível sobre o assunto se encontrava em inglês. Marco, contudo, dominava a língua bem o suficiente para compreender um texto científico e iniciou sua pesquisa. Na mesma conversa que tivemos em 2014, ele conta sobre sua surpresa ao descobrir que a cannabis poderia ajudá-lo:
– Aí eu comecei a pesquisar e foi então que eu descobri que, muito pelo contrário, que ela poderia ajudar. Mas, não, no caso, essa maconha prensada que a gente compra no tráfico aí. A maconha medicinal mesmo, que a gente planta e tudo mais. Aí eu comecei a plantar. Me ajudaram bastante, as minhas colheitas. Eu fui atrás e comecei a plantar, porque a gente não pode brincar com a saúde.
A cannabis não ajudava apenas com a doença de Crohn, mas com a epilepsia. Durante anos, fumando através de um vaporizador e ingerindo o óleo medicinal, Marco conseguia ficar até sete meses sem uma convulsão; sem, no entanto, interromper a medicação convencional. Ele passou rapidamente de usuário recreativo para usuário medicinal, dedicado cultivador e devoto ativista.
Em 2011 Marco recebeu a notícia de que havia passado no vestibular para cursar Turismo na Universidade Federal de Jaguarão, no Rio Grande do Sul, cidade fronteiriça com o Uruguai. Se mudou para lá; e moraria sozinho.
Mais tarde naquele ano, Marco seria dado como morto pela primeira vez.
Nesse dia, por volta das 8 horas, ele teve uma convulsão. A namorada, Dieniffer, que estudava Letras na mesma universidade, ligou para Marco algumas vezes pela manhã. Estranhou não obter qualquer resposta e chamou alguns colegas para ir com ela procurá-lo. Pela janela, podiam vê-lo deitado no chão e forçaram sua entrada na casa, já chamando os bombeiros. Marco parecia morto. Já era uma da tarde. Quando os bombeiros chegaram, para o horror de Dieniffer, o coração de Marco havia parado.
– Ele está em óbito, afasta – disse o bombeiro, preparando a maca para levá-lo ao hospital.
Dieniffer o acompanhou durante todo o tempo, sem perder as esperanças.
O hospital ligou para a mãe de Marco em Governador Valadares e informou que só a estavam aguardando para desligar os aparelhos. Desesperada, ela implorou para que não desligassem nada e entrou em contato com o convênio para que enviassem uma ambulância e o transferissem para Porto Alegre.
– Aí conseguiram uma ambulância para me levar para Porto Alegre – contou Marco – e chegando em Porto Alegre me levaram para um hospital excelente. Aí eu tive um tratamento bacana. Lá em Jaguarão eu sofri muito. O pessoal não sabia que eu usava bolsa, tal. Foi uma confusão danada. E lá, é cidade vizinha com o Uruguai, o pessoal não está nem aí mesmo. O pessoal mata mesmo. Não dão assistência ambulatorial nada. O hospital era bem ruim e só tinha um hospital. Terrível.
Marco ficou mais de um mês internado na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, acompanhado pela mãe e Dieniffer. Depois ficaram mais um tempo em um hotel, esperando o resultado de alguns exames. Marco voltou para Minas Gerais são e salvo, mas teve que largar a faculdade. Em uma das primeiras demonstrações da incrível devoção de Dieniffer a Marco, ela fez o mesmo; se mudou para Governador Valadares e continuou estudando lá, mas teve que começar o curso novamente.
A frágil saúde de Marco nunca abalou sua coragem. Como ativista, debateu até com a polícia para passar a informação adiante.
Em momentos em que não podia plantar, ou ainda não tinha uma colheita, Marco recorria ao tráfico para obter maconha. Comprar a maconha de traficantes nem sempre é uma tarefa tranquila, a biqueira é um ambiente repleto de drogas ilegais, armas e sujeitos desconfiados.
– Eu ia com o coração na mão – disse Marco – É horrível você ir num lugar desses comprar maconha. E eu não vou usar recreativamente, vou usar para tentar melhorar a minha saúde. E você tem que correr para lugares desses, sendo que na farmácia vende coisa muito pior. E a gente podia estar comprando igual no Uruguai, controladamente, na farmácia.
Certa vez, enquanto buscava maconha em uma boca de fumo dentro da favela, houve uma batida policial. Ele foi preso com o resto dos traficantes, mas conseguiu explicar aos policiais que era usuário, o que não os impediu de dar o típico sermão:
– Você fica aí comprando droga, financiando essa merda de tráfico! – dizia o policial.
– Tem razão, o ideal seria poder plantar, né? – retrucou Marco, tranquilo.
O policial ficou furioso, começou a gritar e chamá-lo de vagabundo, até que o colega interviu:
– Por um lado faz sentido, se ele plantar quieto na casa dele não tem por que financiar o tráfico.
Marco assistiu aos dois policiais discutindo energeticamente. Os argumentos voavam de um lado para o outro. Por vezes, Marco contribuía, explicando que não gostava de ter contato com o tráfico, e que se não tivesse que dar dinheiro a criminosos se sentiria melhor, plantando em casa e não contribuindo para a compra de armas e o financiamento de outros crimes. No final, o policial nervoso concordou.
– É, realmente. Se olhar por esse lado, tinha que plantar mesmo.
– Planta em casa, moleque – disse o outro – não fica dando dinheiro para esses caras, não.
Pequenos debates como esses fazem uma grande diferença, forçando as mentes mais acomodadas a pensar um pouco em um outro ponto de vista.
A contribuição de Marco, contudo, foi mais vasta do que isso. Mesmo da cama de um hospital, ele nunca deixou na mão um paciente – de Crohn, epilepsia, ou qualquer outra enfermidade – que precisasse de conselho. Quando os médicos não sabem o que dizer sobre um medicamento ainda ilegal e com informações conflitantes aparecendo por todo lado na internet, pacientes dependem uns dos outros para saber como obter, como usar, qual dosagem consumir, etc. Essas redes de troca de informações acabam sendo extremamente importantes.
Sempre que um paciente com epilepsia me procurava, atrás de informações desse tipo, eu recomendava uma conversa com o Marco; e ele respondia prontamente todas as perguntas. Para que as informações e a sua experiência atingissem mais pessoas, Marco deu diversas entrevistas à imprensa, apoiou associações, grupos de pacientes, grupos ativistas e sempre falou abertamente sobre o seu uso de uma substância ilegal, sem se deixar intimidar pelo perigo de ser preso.
Através da mídia, em especial da revista Superinteressante de fevereiro de 2014, o Brasil conheceu a história de Marco. Apesar de dois enfartos, seu grande coração atingiu milhares de pessoas, que através de sua história puderam se informar, se inspirar, ou até se mobilizar por um mundo mais justo.
Apesar das recentes e consecutivas hospitalizações de Marco, sua morte foi um choque. Ele deixou um vazio no coração das duas mulheres que mais se dedicaram a ele, sua mãe e Dieniffer; as quais devemos nossa gratidão e admiração. Esse vazio é sentido também por toda a comunidade cannábica, que agora sofre com a perda de um de seus mais fortes guerreiros.
Esperamos que esteja em paz, Marco. Estamos em débito com a sua contribuição que, acredite, não será esquecida.
Da equipe Growroom, os mais sinceros sentimentos de força e carinho à família de Marco nesse momento difícil.