Em entrevista a ÉPOCA, o jornalista britânico Misha Glenny, autor do livro McMáfia, que aborda as ligações do crime organizado no mundo, diz que é preciso descriminalizar a droga por um período para saber se as conseqüências serão tão ruins como se imagina.
Por: Rafael Pereira, de Paraty (RJ)
Autor do livro McMáfia, Uma Viagem pelo Submundo Global, um dos mais completos estudos sobre as ligações do crime organizado pelo mundo, o jornalista britânico Misha Glenny veio ao Brasil especialmente para a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). Junto com Guilherme Fiuza, blogueiro de ÉPOCA que escreveu Meu nome não é Johnny, ele participou de um debate sobre crime e violência. Um dia depois do encontro com Fiuza, em entrevista a ÉPOCA, o escritor disse que é “uma situação estúpida” proibir o uso de entorpecentes diante da facilidade de obtê-los para consumo próprio. Glenny sugere uma experiência: “Vamos começar legalizando uma droga que sabemos que causa menos danos sociais, a maconha. Legalizamos por cinco anos e vemos se o mundo vai mesmo desabar à nossa volta. Se isso não acontecer, vamos repetir a dose com outros tipos de narcóticos.”
Leia a seguir a íntegra da entrevista com Misha Glenny.
ÉPOCA – Em McMafia, o senhor aborda vários crimes praticados no mundo inteiro, mas o tráfico de drogas é preponderante. No Brasil, uma das principais discussões é sobre a responsabilização dos consumidores de drogas como patrocinadores da violência decorrente do tráfico. Qual a sua opinião?
Misha Glenny – Não acho certo responsabilizá-los. A razão da violência não é o fato de haver usuários, mas sim porque o Estado não regulamenta esse mercado, a não ser com a força da polícia. Isso significa que tal mercado precisa de auto-regulação, e é assim que nasce uma máfia. Aqui e no mundo inteiro. Quem faz uso de violência, no caso brasileiro, são traficantes armados, que estão agindo como uma força policial paralela, criada para defender esse mercado ilegal. É assim que eles regulam: com armas. Portanto, essa discussão é irrelevante.
ÉPOCA – Outro debate nacional gira em torno da legalização das drogas…
Glenny – O Guilherme (Fiuza) disse algo muito interessante. As drogas não são permitidas por lei, mas são permitidas de fato. No Brasil ou na Inglaterra, se você quer qualquer tipo de droga não existe nenhuma dificuldade em consegui-la, não corre nenhum risco. É proibido, mas ninguém proíbe você. É uma situação estúpida. A sugestão que eu faço é começar legalizando uma droga que sabemos que causa menos danos sociais, a maconha. Legalizamos por cinco anos e vemos se o mundo vai mesmo desabar à nossa volta. Se isso não acontecer, vamos repetir a dose com outros tipos de narcóticos.
ÉPOCA – Drogas e violência sempre andam juntas?
Glenny – Não. O Canadá é um bom exemplo. No norte do país, existe um importante comércio de cocaína, regulado principalmente por membros dos Hells Angels, uma gangue de motoqueiros. Eles regulam seu mercado com a violência. Mas no sul, vemos pessoas de classe média, que nunca estariam associadas ao crime organizado, plantando e vendendo maconha para ter renda extra, comprar um segundo carro, fazer uma viagem. De certa forma, costumo perceber que a cocaína produz muito mais violência que outras drogas, como maconha e até heroína. E isso tem a ver com seu custo. É uma droga cara, quase sempre importada da América do Sul para a América do Norte.
ÉPOCA –O senhor enxerga uma solução para acabarmos com as drogas, ou o destino é mesmo convivermos com elas e apenas tentarmos evitar que seu comércio e seu consumo se liguem à violência?
Glenny – Sempre teremos pelo menos algum grau de crime, e as drogas, desde que continuem ilegais, terão algum tipo de associação à criminalidade.È praxe que a maioria dos produtos no mundo vêm de países em desenvolvimento para o consumo nos países desenvolvidos. Com as drogas é igual. Portanto, a redução da pobreza é a única solução que consigo imaginar a longo prazo. A curto prazo, é preciso melhorar a comunicação entre os agentes da lei dos países na rota do crime organizado. É o que está começando a acontecer entre os países da União Européia, mas só lá. Os criminosos sabem que a maioria das polícias não conversa entre si.
ÉPOCA – Em seu livro, ao falar do Brasil, o senhor deixou de lado o tráfico de drogas e abordou os crimes pela internet. Por quê?
Glenny – Eu queria muito falar sobre cybercrime, e quando comecei a pesquisar a respeito, descobri rapidamente a importância do Brasil nessa área. As pessoas sabem que isso acontece na Rússia, na China e na Índia, mas poucos sabiam sobre o Brasil. Foi uma maneira de trazer informação nova sobre o assunto. Já se falou muitas vezes sobre o tráfico de drogas no Brasil. Por que não escrever algo novo? Pode soar paradoxal, mas em certa medida os crimes de internet refletem coisas boas sobre o Brasil. As pessoas envolvidas nesses crimes são brilhantes e jovens. E também não matam ninguém. O que percebi é que essas pessoas claramente querem um emprego, precisam de alguém que lhes dê uma oportunidade. Acho uma questão importante a ser debatida no país, em vez de falarmos apenas em tráfico de drogas e pessoas com armas.
ÉPOCA – Como você conseguiu chegar aos hackers brasileiros?
Glenny – Foi por meio de amigos que eu tinha aqui, a maioria jornalistas, e que já haviam trabalhado com hackers. A tática foi me aproximar de hackers não-criminosos, mas que conhecem pessoas que são. Aliás, em todos os países pesquisados, o principal é achar os intermediários certos. Demorou poucos meses por aqui.
ÉPOCA – É realmente fácil acessar a conta bancária das pessoas?
Glenny – É. Mas é importante saber que não é fácil porque é tecnologicamente viável. É mais do que simples tecnologia. É uma arte de persuadir pessoas a fazer coisas que elas não querem, é engenharia social. Essa foi a principal lição que tirei dos hackers. Eles dizem que qualquer um com um mínimo de conhecimento técnico tem a capacidade de acessar todos os cantos escuros da internet. A chave é a persuasão. Tanto hackers quanto pessoas que tentam dar segurança a sites concordam que a diferença de tempo entre o lançamento de um sistema de segurança novo e o sucesso dos hackers em encontrar um ponto vulnerável nesse sistema é de dias, no máximo semanas. Há uma corrida entre esses personagens. Um dado impressionante que eu pesquisei: em 2007, foram detectados mais vírus de computador com intuitos criminosos do que o total entre 1994 e 2006. É um problema novo, e que merece importância.
ÉPOCA – Quais foram suas impressões sobre a Flip?
Glenny – A Flip é fantástica. Meu livro é vendido em cerca de 30 línguas diferentes, então tenho que ir a vários lugares no mundo para promovê-lo. E posso dizer que a Flip é diferente de todos os outros lugares que visitei. É mais prazeroso. Primeiro porque eles convidam nossos parceiros – minha mulher veio comigo. Segundo porque os organizadores cuidam dos convidados com muito carinho. E também porque o público é muito dedicado, e vem em multidões. Uma das primeiras coisas que me falaram sobre o Brasil é que esse é um país com muita gente, mas com uma porcentagem pequena de leitores. O que percebi foi que essas pessoas que gostam de literatura e de comprar livros são fanáticas por isso. Como escritor, é maravilhoso estar aqui.
Fonte: Revista Época