Sociedade
Drogas
É hora de pensar diferente
A repressão militar consumiu dinheiro e gerou
violência sem conter a expansão do poder do narcotráfico. Até os EUA
parecem dispostos a abandonar a política da "guerra às drogas"
por Willian Vieira—
publicado
02/06/2013 11:49
A repressão militar consumiu
dinheiro e gerou violência sem conter a expansão do poder do
narcotráfico. Até os EUA parecem dispostos a abandonar a política da
"guerra às drogas"
Na sempre atrasada América do Sul, cabe ao pequeno
Uruguai do presidente José Mujica levar adiante um debate que avança
mais depressa em outras regiões do planeta. Diante da falência da guerra
às drogas – o planeta não reduziu o número de dependentes ou consumo de
entorpecentes, ao contrário –, qual política seria capaz de amenizar os
efeitos deletérios, entre eles a violência e a corrupção?
O Uruguai quer testar uma alternativa. O projeto para legalizar o
consumo de maconha e estatizar sua produção e distribuição é um passo
além em uma nação onde as leis há muitos anos isentam de pena a posse e o
consumo de entorpecentes. Um modelo liberal centrado em ações de saúde
em relação ao usuário sem abandonar a repressão ao mercado ilegal. Na
Europa, esse tipo de abordagem tem se tornado cada vez mais comum. Há 12
anos, Portugal liberou a posse de drogas de forma geral para uso
próprio. A política portuguesa é hoje uma referência mundial e tem o
apoio da ONU. Ao menos no caso da maconha, leis similares foram
aprovadas em mais de 20 países, entre eles Espanha, República Tcheca,
Holanda, Argentina, Colômbia e Guatemala. Até nos Estados Unidos,
mentores da “guerra às drogas”, dois estados legalizaram no ano passado o
uso recreativo da cannabis.
O mundo não se tornou mais liberal da noite para o dia. O modelo
repressivo é que se mostrou um fracasso retumbante. Segundo um estudo da
Transform Drug Policy Foundation de 2012, só os EUA gastaram mais de 1
trilhão de dólares na guerra às drogas nos últimos 40 anos. Como
resultado, o número de presos em território americano por violações
saltou de 38 mil para 500 mil. O país gasta 30 mil dólares ao ano por
preso e só 11 mil dólares por aluno da rede pública. Apesar da
repressão, o tráfico não diminuiu. O país vive agora uma epidemia de
heroína, não apenas concentrada nos grandes centros urbanos, segundo
descreve de Nova York o colaborador Eduardo Graça, em texto publicado
no site da revista (www.cartacapital.com.br).
Se regulamentasse o consumo, aponta o Instituto Cato, os EUA
recolheriam em impostos 46 bilhões de dólares por ano. Cansados da
ineficiência do modelo, 49% dos americanos aprovam a legalização da
maconha (o dobro de 20 anos atrás) e 79% acreditam que a cadeia não é o
melhor para os usuários. No Colorado e Washington, o consumo recreativo
de maconha foi legalizado, o que deve injetar 1 bilhão de dólares de
impostos na economia. Em outros 18 estados, o uso medicinal está
autorizado.
Meio século após a Convenção sobre Drogas da ONU de 1961, que definiu
a repressão generalizada como modelo, até o governo de Barack Obama
mudou o nome de “guerra às drogas” para “combate ao tráfico”. A mudança
não é somente retórica. “É impressionante o presidente afirmar que a
legalização é um debate legítimo”, diz Steve Rolles, analista da
Transform Drug Policy Foundation. Com a repressão interna mais frouxa
dentro dos EUA, declara o analista, a autoridade norte-americana para
impor a guerra em suas relações bilaterais e na ONU desaba.
Já era tempo. Os piores resultados da política norte-americana estão
no próprio quintal, para usar uma expressão utilizada recentemente pelo
democrata John Kerry. Desde o recrudescimento da guerra ao tráfico em
2006, financiado por Washington, 60 mil mexicanos morreram no conflito.
Apesar da violência, os cartéis do México e de outros países nunca
tiveram tanto poder e dinheiro, como relata um novo livro do escritor
italiano Roberto Saviano, especialista em máfia e crime organizado
(texto à pág. 34). Um único dado atestado pela ONU: o narcotráfico
movimenta mais de 400 bilhões de dólares por ano.
Em 2008, estima o Fundo Monetário Internacional, 352 bilhões de
dólares do comércio ilegal de entorpecentes foram absorvidos pelo
sistema bancário do planeta, o equivalente a um terço das perdas
financeiras na crise iniciada naquele ano. A lavagem funciona como em um
sistema de matrioska. Diversas camadas escondem a origem. Online, o
dinheiro é repassado de banco para banco, de país para país, até sair
totalmente limpo em alguma região do mundo. Um processo em curso nos
Estados Unidos investiga a informação de que alguns bancos
norte-americanos só escaparam da falência por causa da fortuna
movimentada pelos traficantes mexicanos.
Provavelmente, o tráfico é o negócio mais lucrativo do mundo. Saviano
compara o retorno do investimento em ações da Apple, a gigante em
tecnologia, e os lucros dos narcóticos. Em 2012, os papéis da empresa
subiram 29%. Quem investiu mil euros, lucrou 290 em 12 meses. Se os
mesmos recursos fossem aplicados em cocaína, o retorno seria de 181 mil.
Um quilo de coca pura vale 1,5 mil dólares na Colômbia, diz o livro, de
12 mil a 16 mil no México, perto de 47 mil na Holanda, 57 mil na Itália
e até 77 mil no Reino Unido. No varejo, a droga é misturada a outras
substâncias e rende muito mais.
O cartel mexicano de Ciudad Juárez dispõe de uma frota de Boeings 727
para trazer cocaína da Colômbia, além de uma companhia de táxi aéreo
com uma frota de Cessnas para cruzar a fronteira com os EUA. Entre 2005 e
2007, 18 submarinos foram apreendidos pela Marinha colombiana na costa
do Pacífico. Outros 30 foram identificados e estima-se a existência de
mais de cem. No início, descreve o escritor, o tráfico usava pequenas
máquinas tripuladas por um único indivíduo. Atualmente, vale-se de
submarinos dignos do nome.
Como atestam as inúmeras informações reunidas por Saviano, uma rede
de interesses beneficia-se do mercado ilegal. A liberação das drogas
afetaria mortalmente o narcotráfico e, por extensão, bancos dedicados à
lavagem de dinheiro e à máquina da corrupção policial e política. A mais
provável consequência seria, portanto, a redução da violência e o
controle mais eficiente do consumo. E não o aumento desbragado de
viciados, tese principal do discurso contrário à liberalização.
O discurso pró-guerra perde fôlego até no quintal dos EUA, ou melhor,
na América Latina. Em 2012, Felipe Calderón, então presidente do
México, admitiu na Assembleia-Geral da ONU a falência do modelo. O
colombiano Juan Manuel Santos concordou: “É nosso dever determinar, com
dados científicos, se agimos certo ou se há alternativas melhores para
combater esse mal”. A próxima reunião da Organização dos Estados
Americanos (OEA), em junho na Guatemala, discutirá o tema. Luis Fernando
Castro, ministro guatemalteco das Relações Exteriores, foi a Brasília
em busca de apoio para reformas mais profundas nas políticas do
continente. Saiu de mãos vazias. A Guatemala não desiste, porém. “Os
americanos querem guerra ao Sul, onde o resultado tem sido mortes e
violência”, diz Julio Martini, embaixador no Brasil. “Nós não.”
Dois programas surgem como modelos, o holandês e o português. Por meio da
legalização da venda e do consumo de maconha em locais regulados pelo
Estado, a Holanda conseguiu separar o mercado da maconha daquele de
drogas pesadas, de forma a evitar que usuários da primeira se exponham à
cocaína e à heroína. “Na Suécia, onde a droga é criminalizada, 52% dos
consumidores de maconha dizem se expor a outras drogas com suas fontes.
Na Holanda, 14%”, afirma Kasia Malinowska-Sempruch, diretora do programa
de políticas sobre drogas da Open Society, líder em iniciativas sobre o
tema.
O liberalismo holandês inspirou outras iniciativas. Nos EUA, o
direito de pacientes de câncer e Aids ao uso medicinal de maconha foi
aprovado por plebiscito. Quem compra maconha nos dispensários não se
defronta com drogas mais pesadas. Na Espanha, a legislação aprovada à
base de protestos nas ruas não apenas permite portar droga para consumo
como plantar maconha para uso pessoal ou coletivo, por meio de
cooperativas.
Em Portugal, o número de viciados em heroína caiu 50% na comparação
com 1997. Os índices de criminalidade despencaram, assim como o número
de presos e de infectados com o vírus da Aids. “Atacamos a droga, não o
usuário”, afirma João Goulão, mentor da reforma portuguesa e atual
presidente do Observatório Europeu de Droga e Toxicodependência. “O
problema deixou de ser a maior preocupação social do país.”
Caitlin Hughes, pesquisadora-chefe do Drug Policy Modelling Program,
da Universidade de Sydney, aprova: “A descriminalização, combinada com
uma expansão do tratamento ao usuário, diminuiu os casos de HIV, de
overdose, o número de presos e a percepção da droga como problema
nacional, mostram as evidências”. Referência mundial em políticas sobre
drogas, o programa comandado por Hughes estudou as políticas portuguesas
por 11 anos e defende: ao contrário do modelo repressivo atual, ele
seria menos perverso para a América Latina. “Os países com disparidades
sociais sofrem mais danos com políticas punitivas.”
Enquanto o mundo avança, o Brasil está parado no tempo. “O País está
muito atrasado e desconectado da discussão liderada por países
latino-americanos, como se não tivéssemos os problemas que temos”,
desabafa Ilona Szabó de Carvalho, fundadora da Rede Pense Livre. “Somos
campeões em números de homicídios, rota do tráfico internacional e um
dos maiores mercados consumidores de drogas ilegais do Hemisfério Sul.
Cerca de 20 países tiraram o consumo de drogas da esfera criminal sem
aumento do uso, e sim com diminuição de mortes por overdose e
contaminação de doenças transmissíveis.” Mais importante, argumenta, a
descriminalização permitiu a aproximação dos dependentes do sistema de
saúde.
Quando em 2006 o Brasil aprovou sua nova Lei de Drogas, as
perspectivas eram promissoras. Em tese, o usuário não seria confundido
com um traficante. A falta de regulamentação cria, porém, uma distorção.
Cabe à polícia e à Justiça decidirem quem é quem. “Um cidadão branco de
bairro rico pego com maconha será visto como usuário. O pobre será
visto como marginal, traficante, ficará na cadeia até um juiz decidir. E
não se livrará mais do estigma de criminoso”, diz Paulo Gadelha,
presidente da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD).
Nos últimos sete anos, o número de presos por tráfico no País cresceu
quatro vezes, de 32 mil para 138 mil. No mesmo período, a população
carcerária passou de 294 mil para 548 mil. O custo é alto. Cada vaga nas
prisões estaduais consome 21 mil reais por ano. Nas federais, alcança
40 mil. Em comparação, o investimento por aluno do ensino fundamental na
rede pública passa um pouco de 2 mil reais. “Droga é uma questão de
saúde pública. Abordar o problema do ponto de vista criminal é um erro”,
diz o padre Valdir Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária da
CNBB. Gadelha levanta outro ponto: “O País vive uma explosão do consumo
de tranquilizantes, mas esses abusos não vêm associados à marginalidade,
pois tais drogas não são criminalizadas, o que mostra que a condenação é
moral e social”.
É onde entra o crack, as imagens de cracolândias tomadas por “fantasmas”
em andrajos, relacionadas de forma apressada a índices de violência.
Dominada pelo pânico moral, a rubrica “drogas” banaliza o debate e
transforma qualquer proposta não repressora como apoio ao tráfico e à
ilegalidade. Isso provoca uma covardia institucional. O programa Crack, É
Possível Vencer, lançado no ano passado pelo governo federal, prevê
gastar 4 bilhões de reais em cuidados integrativos e ações policiais
inócuas. Está previsto, por exemplo, o treinamento “especial” de
policiais pelas secretarias de Segurança estaduais e a compra de armas
de choque para lidar com viciados. “Com tanto poder nãos mãos do
policial, houve um aumento sistêmico da corrupção, uma inversão de
papéis entre juiz e policiais”, afirma o defensor público Leandro de
Castro Gomes.
Entre as dezenas de casos de prisão por tráfico, enviadas ao gabinete
de Gomes, a maioria tem como prova basicamente o testemunho policial e
não envolvem contexto violento. As defensorias não têm, porém, condições
estruturais de mudar casos que demandam mais investigação. “Temos uma
carga infinita de processos. Então, nos cabe ser o escudo protetor dos
vulneráveis em ações paradigmáticas.” Em 2010, o defensor levou ao
Supremo Tribunal Federal (STF) o processo de um homem preso com 3 gramas
de maconha. A lei de 2006 contraria o artigo 4º da Constituição, que
assegura a todo cidadão a inviolabilidade da vida privada, argumenta.
Além disso, como o uso de drogas não lesa o Estado ou um bem jurídico de
terceiros, não seria passível de criminalização. Se aprovado, o recurso
poderia servir de base para a liberação da posse. O caso está no
Supremo. Em 16 de abril, sete ex-ministros da Justiça dos governos FHC e
Lula enviaram um documento ao STF no qual defendem a descriminalização.
Sem um posicionamento claro do governo federal, o Congresso trata o
assunto ao sabor da ideologia. Enquanto o Judiciário apega-se à
Constituição de 1988 (libera, por exemplo, as Marchas da Maconha), a
proposta de uma comissão de juristas para descriminalizar o uso e a
posse enfrenta resistências, em especial da bancada evangélica.
Dificilmente deve passar incólume pela Câmara dos Deputados, onde ganha
força o projeto nebuloso do peemedebista gaúcho Osmar Terra. A proposta é
um retrocesso em relação à Lei de Drogas e prevê a criação de um
medieval cadastro nacional dos usuários. Profissionais de saúde ficariam
obrigados a informar sobre seus pacientes, assim como professores a
respeito dos alunos. Sugere ainda aumentar a pena para traficantes, sem
definir quem é e quem não é.
No Executivo, o debate sobre a descriminalização iniciado por um
grupo de trabalho no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
estacionou. Três integrantes foram exonerados, inclusive Paulina Duarte,
da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Sua saída foi
atribuída ao lobby das comunidades terapêuticas, entidades de cunho
religioso e sem fiscalização, em prol da internação compulsória. A
secretaria repassa cerca de 130 milhões de reais por ano a essas
entidades.
Na contramão, o deputado petista Paulo Teixeira vai apresentar em
breve um projeto semelhante ao modelo adotado em Portugal. A ideia é
descriminalizar o uso e estabelecer quantidades para cada droga, o
suficiente para dez dias de consumo. Dentro desse limite, um policial
não poderia prender o usuário. Quem vende para manter o vício tampouco
seria condenado. “Não podemos levá-los ao sistema prisional, de onde
sairão traficantes de verdade.” O deputado quer ainda legalizar o uso
medicinal. “Hoje, por preconceito e ignorância alheios, os pacientes em
quimioterapia não podem amenizar sua dor com um remédio sem tantos
efeitos colaterais.” Quais as chances de aprovação? Teixeira é realista e
conhece a força dos conservadores e temerosos. “Aos poucos a população
vai perceber que a atual política é pior para o País do que a própria
droga.”
No exterior, cresce o consenso a respeito da impossibilidade de
livrar o planeta das drogas. Por isso, o essencial seria reduzir os
danos ao consumidor, controlar a violência e atacar o poder ilegal do
narcotráfico, os maiores beneficiários da proibição. “Ao contrário da
repressão, a redução de danos cumpre o que promete. Ela salva vidas e
melhora a saúde”, afirma Damon Barret, diretor do International Centre
on Human Rights and Drug Policy. Barret propõe legalizar drogas leves
como a maconha, de modo a equiparar sua regulação ao álcool e ao
cigarro. Elas seriam taxadas e o dinheiro, revertido para projetos de
saúde.
Um avanço maior é proposto pelo Transform Drug Policy. No estudo
“After the war on drugs”, de 2012, a entidade sugere formas de
regulamentação da produção e da distribuição, como a venda em farmácias e
sob prescrição médica. O Estado teria total controle do mercado, o que
permitiria asfixiar o tráfico, financiar a redução de danos e projetar
programas de saúde. Tal grau de liberação, a ser testado pelo pequeno
Uruguai com a maconha, permanece uma incógnita. Os primeiros passos rumo
à descriminalização ampla e irrestrita parecem, porém, questão de
tempo. Até no Brasil.
phonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/e-hora-de-pensar-diferente-1489.html/view