PHD EM THC
No começo desse ano, o Sergio Vidal (também fundador do Growroom e espécie de PhD em THC) botou na roda um dos livros mais importantes desse 2011 da marofa. Chama Cannabis Medicinal — Introdução ao Cultivo Indoor, e, apesar de o título ser bem autoexplicativo, vale ressaltar que se trata simplesmente do primeiro guia de técnicas em português brasileiro de como fazer da semente (do vizinho) um tremendo matagal. Ele até enviou um exemplar pra cá, mas uma ave de rapina passou pela redação, levou pro ninho e só foi desovar muito tempo depois — então ficamos sem ter como embasar uma entrevista dados os preceitos básicos do jornalismo de qualidade e informativo e opinativo. Daí que, até isso acontecer, o Vidal já tava um tanto quanto puto por não termos conversado com ele. Mas acabamos fazendo. Aí vai outra conversa elucidativa com um maconheiro.
VICE: Seu livro leva “Cannabis Medicinal” no título, mas no fundo é um manual de cultivo da planta. Por que isso? Pra se livrar de alegações de apologia?
Sergio Vidal: Primeiro, eu queria fazer uma provocação. Pouca gente sabe, mesmo especialistas relutam em discutir isso, mas a cannabis medicinal já está legalizada no Brasil. Pela lei atual, a 11.343, a Anvisa já pode dar autorização pra cultivo, venda, pesquisa etc. para fins medicinais, e os médicos já podem prescrevê-la. Mas, não só a Anvisa não dá autorização, como nenhuma instituição pediu a autorização — e nenhum médico prescreve a planta. Na Califórnia eles têm uma lei muito menos avançada que a nossa, e é uma lei estadual. No entanto, a mentalidade é outra: os ativistas saíram na frente e brigaram na justiça pra fazer toda a revolução que temos visto por lá, apenas com uma proposição aprovada que é muito menos forte que a nossa lei sobre o tema. Se eles tivessem uma lei como a nossa em nível federal, estariam exportando maconha pra o mundo todo. Então, eu queria dar uma provocada nisso aí, fazer as pessoas pensarem sobre isso e também ver se alguma instituição pede essa autorização.
O segundo ponto foi pra me salvaguardar. Porque, se a lei define tudo isso que falei, então é possível cultivar legalmente para fins medicinais. E se é possível alguém com a autorização poder cultivar para fins medicinais, eu posso publicar um livro destinado a esse público autorizado. Gosto de brincar, falando que é como um livro sobre cirurgia. Todos podem ler um livro sobre cirurgia, mas só quem pode fazer uma cirurgia dentro da lei é um médico cirurgião. Mas é claro que sei que a maior parte das pessoa que compram o livro não trabalham em instituições ligadas à medicina ou pesquisa. São usuários querendo plantar sua própria maconha.
Essa instituição pode ser uma ONG, por exemplo? Eu posso fundar uma ONG, ir atrás da autorização e começar a plantar minha própria maconha?
Sim, pode ser uma ONG, e em tese você poderia. É preciso ter uma instituição formalizada, que tenha o espaço preparado para o cultivo. Daí é preciso apresentar toda a documentação registrada, incluindo os documentos dos profissionais envolvidos, à Anvisa local e pedir que ela vá fazer uma vistoria pra verificar se o estabelecimento tem condições de realizar o que se propõe. É muito parecido com o requerimento da autorização para produzir qualquer outro medicamento fitoterápico ou não-fitoterápico. Meu sonho é ver o País pipocando de ONGs e instituições sendo formadas pra decidirem fazer esse pedido e de fato atuar no cenário da cannabis medicinal. Você não vai poder fazer isso e vender pra qualquer um, só pra quem tiver receita médica, saca? O medicinal da história estaria até mesmo no estatuto da ONG. É maconha medicinal. Na prática, a lei de drogas é a mesma que regula farmácias, por exemplo.
E por que isso não acontece, então?
Porque ainda não saímos da Matrix com relação ao tema. Porque a imprensa chama o cara que vende maconha de traficante, mas o processo judicial não fala em tráfico. Todo processo judicial sobre “traficantes” fala que ele estava fazendo comércio não-autorizado, saca a sutileza? A lei tá no papel, mas os médicos acham que não podem, os pacientes acham que não podem, os cultivadores acham que não podem. Então, não podem de fato. Se eu posso fazer algo, mas acho que não posso, então estou limitado. Mas a morfina não é proibida? Não é como maconha? Só que em hospitais as pessoas tomam morfina quando o médico receita. Tomam em casa, quando têm autorização pra comprar medicamentos pra casos específicos. É o mesmo com a maconha. Eu sempre falo isso e acham que sou louco. Ninguém publica essa minha visão vanguardista da lei porque não tem ninguém fazendo isso na prática. Se eu disser a você que a morfina medicinal já é regulamentada no Brasil, não tem como você duvidar, porque os hospitais estão fazendo isso já. A maconha é a mesma coisa. Estão na mesma lei.
De certa forma já tá regulamentada, então.
Sim. Para o uso medicinal e religioso ela já é legalizada. Esse seria o termo correto. Já está constando na lei. Faço essa discussão, mas, de fato – até mesmo dentro do movimento, entre os ativistas –, são muito poucos os que entendem que ela já está legalizada. Porque as pessoas estão acostumadas a contar apenas com o que já está funcionando, querem tudo mastigado. Nego só vai achar que tá legalizado quando tiver uma farmácia vendendo. Só que, pra ter isso, alguém tem que se jogar, criar, fazer acontecer. Romper o preconceito e fazer a lei, que já tá lá, sair do papel e funcionar. Mas o movimento em si luta por uma ampla regulamentação da cannabis, que envolva não só o uso medicinal e religioso, como também o industrial e recreativo.
Legalizar e regulamentar são bem parecidos. Legalizar é por nas leis as regras de como algo deve funcionar. Regulamentar pode ser feito usando-se leis, decretos, portarias etc. Por exemplo: a cannabis medicinal é legalizada. Tá na lei. Mas o ideal é que fosse melhor regulamentada, ou seja, que também fosse criado um decreto, via Anvisa, Min. da saúde etc., tornando mais explícito e detalhado o como é possível produzir, distribuir e utilizá-la para fins medicinais. Acho que os dois andam juntos. Primeiro se cria a lei que trata do tema. Depois, os decretos, portarias e tal que auxiliam no funcionamento dessa lei. Por exemplo, a Lei de Drogas atual já tem pelo menos duas ou três portarias e decretos que funcionam junto. Então o regulamentar é o termo mais correto, porque mais abrangente – e engloba o legalizar. Além disso, regulamentar não está estigmatizado como legalizar. Se você fala em legalizar, tem gente que acha que significa botar maconha na merenda escolar, o que seria uma maluquice total. Regulamentar ainda é um termo pouco usado, que estrategicamente é melhor pra ser usado por agora.
Alguma vez já te acusaram de apologia? Tanto pelo seu livro quanto pela sua posição em relação ao tema?
Então, o Mercado Livre e a Livraria Cultura se recusaram a vender o meu livro. Já a questão da apologia teve um caso, mas não foi muito pra frente e eu espero que não vá. Em fevereiro fui participar do julgamento de um cultivador, na qualidade de perito técnico sobre o tema. Não fui defendê-lo, só prestar esclarecimentos sobre o cultivo, os usuários e essa cena no Brasil. Respondi perguntas da promotoria, do juiz e da defesa. No fim do julgamento, o promotor mandou encaminhar denúncia contra o livro para o Ministério Público do Estado onde moro atualmente, Sergipe. Como não recebi intimação alguma até hoje, acho que não vai dar nada. Mas é sempre muito preocupante a minha situação.
Você se vê como um mártir do movimento?
Não, e acho isso uma furada. O movimento é feito por milhares, milhões, que dão a cara à tapa. Que trabalham muito ou pouco pela causa. Sempre tem aquele que vai querer ser o Imperador da Maconha. É algo comum no movimento, de vários países. Na Holanda tem o King of Cannabis, no Canadá o Prince of Pot, enfim. Fico puto com a postura de alguns de sentir como se o movimento fosse reflexo apenas de suas próprias ações. O movimento é maior que todos nós.
E sobre Quebrando o Tabu, o que tem a dizer?
Ainda não assisti, porque não está passando aqui em Sergipe, mas na verdade acho bom e ruim ao mesmo tempo. Tipo, é perigoso ver neoliberais como ele e o Eike Batista defendendo isso. Não quero a maconha legalizada pra virar mais um objeto de poder dos capitalistas. Além disso, ele não tá falando nada de novo – não fala tão bem sobre o tema, não tem tanto embasamento como uma porrada de outras pessoas que estão nesse debate há muito tempo. Por outro lado, é o FHC. Se minha avó ouvir ele falando, muda de opinião. Ele atinge pessoa que eu e outros especialistas não atingimos. Então, é importante. Como já dizia Jesus (segundo a Bíblia, claro): “Se não é seu inimigo, está do mesmo lado”. Ele não é proibicionista, ou melhor, não está proibicionista agora, então está do meu lado. Mas estar do meu lado não significa estar junto comigo, saca? É só pra quebrar tabus mesmo. Ele serve pra isso. É porque é o FHC, ex-presidente, e conseguiu convencer outras personalidades do mesmo peso a falar. Mas não é o debatedor mais afiado, ou mais preparado, para um segundo momento – quando precisaremos discutir o modelo de legalização.
E qual o maior entrave, na sua opinião, no que diz respeito a toda essa discussão no Brasil?
Acho que o maior entrave mesmo é estrutural. Não é a lei, não é a cabeça do Congresso. É a cabeça da sociedade, tanto dos usuários quanto dos não-usuários. Os não usuários têm enorme aversão a discutir o tema. E os usuários têm medo, de sair do armário, de se envolver com a militância. Pô, na Argentina, Espanha, Califórnia, etc – até mesmo na Holanda – não há legalização. Lá o que existe é um avanço na jurisprudência, que foi consequência direta da militância dos usuários e dos envolvidos com o tema. No Brasil nego tem medo até de ir à Marcha pra não tomar bala de borracha. Já na Espanha os cultivadores fundaram uma ONG, ainda no começo da década de 90, começaram a plantar pra distribuir sem fins lucrativos entre os associados, e chamaram a imprensa e a policia, pra criar um fato político e levar a discussão sobre a legalidade dos Clubes Sociais Canábicos (as Cooperativas, como chama o Paulo Teixeira), na Justiça! Ficaram presos, lutaram e ganharam! Imagina se os usuários brasileiros iam fazer isso? Preferem ficar torcendo pelo Paulo Teixeira e fumando maconha podre escondido em casa do que ir pra o enfrentamento. Então o principal entrave somos nós mesmos, na minha opinião. Costumo dizer que a legalização começa em casa. A legalização da própria mente, depois a legalização da mente dos pais, dos amigos, dos parentes, depois legalizar seu bairro, sua faculdade, os espaços que frequenta… Mas, principalmente, a legalização começa dentro da própria cabeça.
Com isso você quer dizer que as pessoas têm que plantar?
Cara, isso é o básico. Um usuário que não faz nada pra mudar a realidade da sua relação com a maconha, na minha opinião, não tem o direito de fumar. Pra mim, toda pessoa adulta que fuma maconha atualmente tem obrigação moral, ética, política e existencial, de tentar ficar auto-suficiente. Pode até não conseguir, mas tem que tentar.
E é fácil cultivar?
É tão complicado quanto cuidar de um cão, gato ou aquário. Qualquer um com predisposição aprende.
Tá, mas é mais fácil que cultivar azaleia?
Acho que sim. Não sei cultivar azaléia [risos].
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ENTREVISTA POR BRUNO B. SORAGGI
IMAGENS: CORTESIA